quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sobre detetives e brasileiros

LIVROS
Escritores deveriam escrever histórias interessantes.
Que eu saiba, essa é a única lei
inviolável do processo.
Uma marca de Dennis Lehane é seu olhar realista e compassivo para a classe operária (enquanto os empresários e os ricos, em geral, são vistos como predadores inescrupulosos). O escritor americano tem experiência no assunto. Egresso de um bairro de trabalhadores braçais em Boston, passou por vários empregos para sustentar seu início de carreira. Foi garçom e vendedor em livraria, ajudou crianças abusadas e doentes mentais, carregou caminhões e estacionou carros. Em estacionamentos, conheceu um monte de brasileiros e aprendeu a xingar em português, como Lehane conta nesta entrevista sobre o romance Estrada Escura, concedida por e-mail a ZH:

Zero Hora – Fazia mais de 10 anos que o senhor não escrevia sobre a dupla Patrick Kenzie e Angie Gennaro. O que o levou a voltar aos personagens? E o que o fez reabrir o caso Amanda McCready?
Dennis Lehane – Eles voltaram a conversar comigo. Não sei de que outra maneira descrever isso. Durante 10 anos, eles ficaram calados. E, de repente, começaram a tagarelar outra vez. Para mim, Patrick sempre foi uma maneira de olhar para os fatos mais imediatos, e acho que uma parte de mim estava curiosa por investigar os efeitos da crise econômica mundial entre a classe trabalhadora. Quanto a Amanda, sempre quis saber o que havia acontecido com ela.

ZH – O senhor é pai de uma filha pequena. Em Estrada Escura, Patrick e Angie têm uma filha de quatro anos. A paternidade influenciou bastante o livro?
Lehane – Tornar-me pai dividiu minha vida em duas partes bem distintas: Antes de Ser Pai e Depois de Ser Pai. O que muda depois é que qualquer ilusão que você tivesse quanto a sua independência desaparece. E eu pensava que poderia ser interessante investigar isso por meio de dois personagens – Angie e Patrick – que sempre foram caracterizados por sua falta de dependência.

ZH – Seus livros transcendem o gênero policial. Para além de uma trama de suspense, abordam temas sociais, econômicos, políticos, culturais, pintando um retrato da sociedade americana contemporânea. O senhor inclusive já disse, em uma entrevista ao jornal britânico The Independent: “Posso fazer muito pela sociedade. Esse é o caminho que tomou o romance realista: virou ficção policial”. Qual é o seu papel como escritor? Ou melhor dizendo, que papel os escritores devem desempenhar?
Lehane – Escritores deveriam escrever histórias interessantes. Que eu saiba, essa é a única lei inviolável do processo. A partir disso, pode-se esperar que escrevam textos com profundidade e clareza, sem simplificá-los demais. Se isso levar alguém a questionar o senso comum, melhor ainda.

ZH – Um outro aspecto marcante de seus livros são os dilemas éticos e morais. O senhor poderia falar um pouco sobre seu processo criativo? O senhor pensa nos dilemas antes de escrever ou eles vão surgindo à medida que a história vai sendo escrita?
Lehane – Não fico obcecado pelos dilemas. Tenho uma obsessão inegável com o que um amigo meu classificou como o “dilema irreconciliável”, o problema que nunca poderá ser resolvido de modo a satisfazer a todos. Venho fazendo isso há tempo suficiente para acreditar que minha propensão a explorar esse tipo de dilema significa que vou encontrá-lo em qualquer situação que imagine. Então me concentro em contar a história, e o resto se resolve sozinho.

ZH – Patrick Kenzie narra suas aventuras. O que vemos de Angie é filtrado pelos olhos do personagem. Ela antagoniza Patrick em diálogos afiados. Pode-se dizer que ela representa a consciência dele?
Lehane – Não, ela não é a consciência dele. Ela é, ao mesmo tempo, um obstáculo e um apoio para ele, e é muito mais instintiva e mais expansiva. Eles interagem de uma maneira bem interessante, que ajuda a narrativa a se movimentar.

ZH – Qual seria a sua atitude no final de Gone, Baby Gone? Ou é uma daquelas situações em que, como Amanda diz a Patrick, mesmo fazendo o certo, você está errado?
Lehane – Esse é o dilema irreconciliável que mencionei antes. E não importa o que eu faria, mas sim o que Patrick fez, como Angie se sentiu e de que maneira o leitor reage a isso.

ZH – Certa vez, li que não lhe agrada a ideia de trabalhar na adaptação de seus livros para o cinema – “Seria como operar o próprio filho”, o senhor disse. E o que o senhor achou dos três filmes baseados em suas obras, Sobre Meninos e Lobos, Medo da Verdade e Ilha do Medo?
Lehane – Todos são filmes excelentes, cada um a sua maneira. E são muito fiéis a meus romances. Então, se eu reclamasse, pareceria um idiota.

ZH – Boston, onde o senhor costuma ambientar suas histórias, tem a maior comunidade brasileira nos Estados Unidos, com mais de 200 mil imigrantes. De que maneira os brasileiros são vistos na cidade? O senhor já pensou em criar um personagem brasileiro?
Lehane – Não fazia ideia de que era a maior do país. Todos os meus colegas quando trabalhei estacionando carros eram brasileiros, então tive um grande contato com a cultura deles sempre que os visitava em Allston ou Somerville (um bairro de Boston e uma cidade do Estado americano de Massachusetts, respectivamente). Assistimos a muitos jogos de futebol, e aprendi bem a dizer alguns xingamentos em português. Não os percebia isolados na cidade, de maneira alguma. Aprendiam rápido. Conheci um que abriu uma oficina mecânica e outro que começou uma lavanderia que deu muito certo. Não posso falar sobre todo o povo ou a cultura do Brasil, mas meus amigos brasileiros seguem sendo, até hoje, as pessoas mais trabalhadoras que já conheci, e também algumas das mais alegres. São também os melhores – e mais loucos – motoristas que já vi.

ZH – O senhor recorda de algum palavrão em português?
Lehane – “Cabrão”, “Come merda”, “Porra”, “Tá tudo fodido”.

ZH – Quais são seus próximos projetos?
Lehane – Acabei de concluir um romance de gângsteres que se passa nas décadas de 1920 e 30, em grande parte no Latin Quarter da cidade de Tampa, na Flórida, em um local chamado Ybor City. Depois, vou começar a trabalhar na sequência dele.

Lehane recomenda

Gosto de William Kennedy e Elmore Leonard, Richard Price e Hubert Selby, provavelmente porque todos eles escrevem sobre cidades, classes sociais, conflitos étnicos, coisas que obviamente também me interessam.

WILLIAM KENNEDY
Com 84 anos, é reconhecido como um dos grandes cronistas do submundo do jogo nos Estados Unidos. Em português, foram lançados recentemente Ironweed (que virou filme de Hector Babenco) e O Grande Jogo de Billy Phelan.

ELMORE LEONARD
Americano de 86 anos, começou nos anos 1950 com histórias de faroeste, para logo depois tornar-se mestre policial de prosa e trama ágeis, como Bandidos, Cárcere Privado e Hot Kid. Os filmes O Nome do Jogo, Jackie Brown e Irresistível Paixão são baseados em histórias suas.

RICHARD PRICE
Um dos grandes trunfos deste nova-iorquino de 62 anos é a qualidade de seus diálogos, cortantes e melódicos. É particularmente conhecido pelos romances Clockers (que virou filme de Spike Lee) e Vida Vadia.

HUBERT SELBY JR.
Nascido em Nova York em 1928, Selby morreu em 2004, aos 75 anos. É internacionalmente conhecido por Réquiem para um Sonho (que virou filme de Darren Aronofsky).
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Reportagem por TICIANO OSÓRIO
Fonte: ZH on line, 15/02/2012
Imagem da Internet

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