segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um fabulador realista

Eliana Cardoso*

"O conto vai muito além da sátira.
Funciona como metáfora da relação da arte
com o comércio e também como
fábula da separação entre
o corpo e o espírito."
Meu querido: mil perdões. Sei que deveria ter enviado este e-mail ontem, mas fez sol, coisa rara em São Paulo, e a piscina me chamou. Estou de volta e precisamos falar sobre Kafka, mas antes devo acertar alguns ponteiros. Recebi reclamação da irmã caçula: "Tem muito autor e muita referência na coluna. Você vai, volta, rodopia, me deixa perdida e digo mais: minhas amigas também não estão entendendo nada". Valha-me minha Nossa Senhora! As amigas dela também... A advertência delicada e implícita ficou clara: posso perder leitores. E por coincidência, no mesmo dia, um amigo me avisou que sir Isaiah Berlin não era - como eu afirmara na coluna do dia 20/1/2012 - "pensador inglês". Mandou a foto da casa onde o filósofo nasceu. Fui ver na Wikipédia. Sir Isaiah Berlin, filho de abastada família judia de Riga (Letônia), aos 10 anos emigrou para o Reino Unido. Estudou em Oxford, onde iniciou sua carreira acadêmica. Fez e aconteceu e virou sir. Se isso não é um intelectual inglês, não sei o que é uma banana. Ou - quem sabe? - Berlin nunca abandonou a antiga cidadania, mesmo com seu país de origem trocando de mãos. Estamos diante de um caso de dupla cidadania? Não quero investigar essa história, acho que o amigo estava procurando pelo em casca de ovo e volto aos ponteiros. Tomei decisão de deixar satisfeitos gregos e troianos, a irmã e o amigo sabido: de agora em diante as informações sobre autores, tradutores, editoras e outros detalhes aparecem em notas no fim da página que as amigas da irmãzinha podem ignorar. E os intelectuais podem pular a coluna inteira e ler apenas o rodapé.
Como avisei logo no começo, hoje é dia de Kafka, escritor dotado de senso de humor. Humor negro, mas ainda assim humor, como a moda de quando éramos adolescentes. A mãe mandava o filhinho tomar a sopa depressa... Antes que coagulasse. O cara com a espinha de peixe atravessada na garganta dizia: "Só dói quando rio". Humor nada sofisticado em relação ao do polonês que escrevia em alemão. Mas nos fazia rir, ao passo que Kafka nos arrepia.
Bons exemplos do humor à moda de Kafka ocorrem no conto "Um Artista da Fome"(1). Além dos espectadores, que admiravam a exibição pública do jejum, havia vigilantes escolhidos para a tarefa de observá-lo dia e noite para que ele não se alimentasse, embora ele se amargurasse com a falta de confiança, logo ele, tão leal à sua arte. E quem eram os vigilantes? Em geral, açougueiros. O conto satiriza o artista faminto, que tudo sacrifica por sua arte sem ser devidamente compreendido pelo público. O clichê "os artistas passam fome" se comprime no título "Um Artista da Fome".
Durante as apresentações, às quais o empresário impunha um limite de 40 dias, o público insensível observava o artista com grande interesse. "Havia espectadores que ficavam sentados dias inteiros diante da pequena jaula." A moda passou. A primeira frase do conto já nos adverte que os tempos mudariam: "Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante". E, mais adiante, o conto dá uma virada, o artista deixa de ser popular e termina no circo. Livre do limite imposto pelo empresário, jejua até a morte. Agonizando, confessa que jejuar para ele era uma necessidade, porque nunca conseguira encontrar um alimento que o satisfizesse. O inspetor manda limpar a jaula e dela toma posse uma jovem pantera.
O conto vai muito além da sátira. Funciona como metáfora da relação da arte com o comércio e também como fábula da separação entre o corpo e o espírito. Atormentado, isolado e faminto de reconhecimento, o artista da fome sofre ainda com a maneira que sua arte se transforma em comércio. O empresário impõe o limite de 40 dias de jejum em benefício da credibilidade do espetáculo, enquanto o artista deseja desesperadamente continuar a jejuar. O artista faminto de jejum talvez seja alegoria à mortificação da carne para elevação do espírito, uma estratégia condenada ao fracasso.
No pico de sua fama, insatisfeito, o artista permanece sozinho contra o mundo. Sua obsessão é permanecer fiel à sua arte e provar a própria grandeza. Há ironia no fato de que, quando quebra todos os recordes, ninguém se importa. Mas a ironia mais amarga aparece no seu conflito interno: achando fácil fazer jejum, pois não encontrara alimento de seu agrado, temia não merecer a admiração que almejava, já que, na verdade, era incapaz de abandonar o jejum.
Há quem afirme que elementos da vida do autor estão presentes no conto, pois, enquanto trabalhava no tema, estava Kafka a morrer de fome, minado pela tuberculose da laringe. Mas a crítica literária moderna nos adverte que é preciso analisar a criação artística e esquecer o artista ele mesmo. Tendo a desconfiar desse ardor a favor da abstração, capaz de ignorar fenômenos enraizados em nossa natureza e história. E, para contrariá-la, aqui vai um achado: o espetáculo do "jejum profissional" é fato histórico.
Breon Mitchell(2) mostrou que os detalhes da história contada por Kafka correspondem aos da profissão do jejum a troco de pagamento. A profissão existia entre 1880-1922. O primeiro artista da fome foi o dr. Henry Tanner - americano que, observado por médicos, jejuou durante 40 dias. O mais famoso de seus imitadores na Europa, Giovanni Succi, repetiu a façanha 30 vezes. Com o aparecimento de outras formas de entretenimento, o jejuador profissional perdeu status, ao mesmo tempo em que a exibição de animais selvagens ganhava proeminência.
Acostumados a ver o absurdo em Kafka, poderíamos lembrar o que escreveu Oscar Wilde: "A vida imita a arte mais do que a arte, a vida"(3). Wilde estava a considerar que quando nos deparamos pela primeira vez com uma experiência de vida estranha, muitas vezes ela nos parece familiar, porque já a conhecíamos através da literatura. Essa é nossa reação em situações burocráticas descabidas, tão comuns nos escritos de Kafka. Ainda assim, não acho que vamos encontrar um artista da fome da próxima vez que formos ao circo. Tudo bem. Não falta engolidor de fogo na rua quando os automóveis param em frente do sinal vermelho.
Mas "Um Artista da Fome" não é mera imitação da vida. Embora o autor use exibições que existiram de fato, a ambiguidade é o cerne da arte de Kafka e ele aproveita a história real para criar várias camadas de leitura. A pantera na cena final é - toda ela - a carne que falta ao artista da fome (em muitos sentidos). O total desligamento da realidade física acarreta não apenas a morte física, mas também a morte espiritual do artista.
Comida é vida e a incapacidade do artista de encontrar uma de que gostasse evidencia sua incapacidade de amar a vida. A ligação entre o apetite e a paixão pela vida fica evidente na imagem poderosa da pantera. Ao contrário do artista de corpo emaciado, sempre na fronteira da morte, o corpo luxuriante da pantera exprime alegria de viver. E, ainda ao contrário do artista - que poderia ser livre, mas escolhe ficar trancafiado e prisioneiro da própria mente, isolado tanto na jaula quanto no espírito -, a pantera, mesmo cativa, carrega a liberdade dentro do próprio corpo, "provido até estourar de tudo o que era necessário". Ela dava a impressão de carregar consigo a própria liberdade que "parecia estar escondida em algum lugar das suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava de sua garganta".
Um aforismo de Kafka diz que a literatura pode servir de machadinha para quebrar o oceano de gelo dentro de nós. Acho que ele tem razão. Vou almoçar. Não é para lhe fazer inveja, mas a Tina fez bobó de camarão. Quando você aparece? Beijo da sua amiga amantíssima.

Notas
(1) O conto "Um Artista da Fome" faz parte da coletânea "Franz Kafka Essencial" (trad.: Modesto Carone, Penguin Companhia, 2011).
(2) Breon Mitchell, "Kafka and the Hunger Artists", no livro "Kafka and the Contemporary Critical Performance", editado por Alan Udoff, Indiana University, 1987.
(3) "The Decay of Lying", ensaio de Oscar Wilde (na coletânea "Intentions"), contém quatro doutrinas: (i) a arte nunca exprime nada a não ser ela mesma; (ii) a arte ruim transforma a vida e a natureza em ideais; (iii) a vida imita a arte mais do que a arte, a vida; (iv) mentir é o objetivo da arte.
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* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com
Fonte: Valor Econômico on line, 12/02/2012

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