sexta-feira, 2 de março de 2012

A teologia e o direito dos pobres - Milton Schwantes


Milton Schwantes
Faleceu no dia de ontem, 1° de março,
o biblista Milton Schwantes.  
Milton viveu os últimos anos de sua vida com
sérios problemas de saúde, dando
um testemunho de resistência e de alegria. Desde agosto de 2002,
depois de uma delicada cirurgia
para retirada de um tumor na hipófise, conviveu
com sobriedade com graves limites físicos.
 Os últimos dois meses passou hospitalizado.
Livro de Milton sobre Gn 1-11 (CEBI).
Milton Schwantes é teólogo e pastor da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Biblista, Schwantes é uma das principais
referências do método de leitura popular da Bíblia
 na América Latina e autor de diversos livros,
alguns traduzidos em espanhol, alemão e inglês.

Transcrevemos abaixo entrevista concedida ao IHU.

IHU On-Line - O senhor pode falar um pouco da sua trajetória de vida?
Milton Schwantes - Nasci em Tapera, no Rio Grande do Sul. Meus pais eram agricultores em Lagoa dos Três Cantos. Tinham uma pequena gleba de terra e plantavam de tudo. Lagoa dos Três Cantos era uma pequena vila em meio às colônias de pequenos agricultores, todos evangélicos. A rigor não existia Igreja Católica lá. Havia um ou outro católico no meio. Trabalhei um pouco na roça, como agricultor, quando pequeno, mas, como era o último da família, fui o que menos recebeu influência da roça diretamente. Saí da roça antes dos 10 anos. Minha mãe procurou emprego na cidade, pois meus irmãos já haviam ido estudar como era a orientação do meu pai.

IHU On-Line - E sua trajetória intelectual?
Milton Schwantes - Estudei no Pré-Teológico, em São Leopoldo, que era uma formação anterior à teologia. Aprendia-se grego e latim além das outras disciplinas do atual Ensino Médio. Depois fui estudar Teologia, formando-me em meados de 1970. A Igreja, que tem muito contato com a Europa, me encaminhou para um estudo de pós-graduação na Alemanha, em Heidelberg. Estudei de 1971 a 1974 e terminei o doutorado em Antigo Testamento, com um professor que foi muito especial, Hans Walter Wolff. Voltei em 1974 e assumi uma paróquia em Santa Catarina, numa cidadezinha chamada Cunha Porã. Era uma cidade também evangélica do tipo dessas colonizações que alocavam católicos e evangélicos em povoados diferentes. No caso, Cunha Porã fora inicialmente prevista para evangélicos. Aí havia uma igreja evangélica bem numerosa, algo como mil e duzentas famílias, mais do que cinco mil pessoas. Eu acompanhava várias comunidades, 26 no total. Foi um trabalho muito bonito. Fiquei lá até 1978. Depois trabalhei nove anos aqui no Morro do Espelho, em São Leopoldo, de 1978 a 1987, na Faculdade de Teologia, na formação de pastores e pastoras, isso até 1988, quando me transferi para São Paulo. Lá atuei como pastor na comunidade luterana de Guarulhos e fui e sou professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. É o que faço até hoje.

IHU On-Line - A sua tese doutoral foi sobre "O direito dos pobres".
Milton Schwantes - Sim, o título em português será este, mas ainda não consegui publicar a tese no Brasil. Está em alemão, Das Recht der Armen, tendo sido publicada por uma editora de Frankfurt. A tese aborda o sentido social do conceito pobre. O que é sociologicamente o pobre e em que sentido ele tem direito? O que quer dizer, neste caso, direito? Direito, no caso da cultura semita, significa aquilo que corresponde a alguém que tem necessidade de obter coisas da sociedade. Este seria o significado político do termo hebraico que costumamos traduzir por direito. O pobre tem, pois, o direito também de receber comida e uma terra da sociedade. O direito é o de obter da sociedade o apoio na necessidade e na crise, em meio aos parentes e à comunidade. Igualmente quis saber quem são exatamente os pobres. O termo pobre é usado no Antigo Testamento e na Bíblia de modo diferente do que nós o usamos. Nós damos aos pobres o sentido de carentes. A Bíblia o entende como quem tem o direito de reivindicar os direitos sociais garantidos. Na tradição bíblica, um pobre não pede (não é pedinte), mas exige sua parcela da sociedade.

IHU On-Line - Como foi a sua descoberta da teologia da libertação?
Milton Schwantes - Quando estudei na Faculdade de Teologia, no que hoje é a Escola Superior de Teologia, ainda tínhamos muita aula em alemão. Na década de 1960, os professores vinham da Alemanha e não se entendiam muito bem com nossa língua, nem aprendiam muito português. A nós, alunos e alunas, cabia aprender alemão e inglês. A dependência da nossa teologia, até então, foi mais ou menos completa; as bibliotecas estavam cheias de livros em línguas estrangeiras. A teologia era importada, sua língua também. A nacionalização da teologia foi um dos temas muito importantes dos anos 1960. Sim, esse processo foi muito importante para a nossa geração. Não foram poucos os conflitos, em especial com professores que davam aulas em alemão. Tais insistências com o português não só eram um dos temas de nós, estudantes de teologia, a própria Igreja passava rapidamente ao português, porque as comunidades evangélicas se tornavam mais e mais urbanas, nos anos 1960 e 1970. Eram tempos de grande crise interna. A pobreza aumentava, principalmente na periferia dos centros urbanos. A Igreja corria o risco de perder o contato com o seu povo da periferia. Tivemos que reestruturar-nos. Uma igreja de imigrantes nas colônias e roças tornava-se urbana e periférica. Logo, o português tornava-se urgente dentro das comunidades e paróquias. E, simultaneamente, requeria-se, de nós, estudantes, uma teologia mais social, mais contextual. A teologia européia clássica e em língua estrangeira era percebida como deslocada, e como descolada de nossas comunidades eclesiais. Buscávamos naqueles dias por novas águas. A teologia da libertação foi vivida, por nós, como fonte de água fresca. Correspondia a um anseio que vivíamos, naqueles dias, no País, ocupado por militares desde 1964, e por teologias importadas em línguas estrangeiras. A teologia da revolução, formulada já nos anos 1950 e aprofundada nos anos 1960 por Richard Shaull[1], um teólogo norte-americano que atuou entre outros no seminário teológico presbiteriano de Campinas (SP), era muito lida entre nós, protestantes. Nos anos 1960, antes e durante o Concílio Vaticano II, o mundo protestante teve uma teologia que não se tornou muito conhecida pelos católicos. Nós a chamamos de "teologia da revolução" [2]. O conceito vinha deste teólogo e ético, Richard Shaull, professor em Campinas. Ele influenciou, com sua corrente inovadora, o movimento de jovens estudantes de teologia. Afinal, os acontecimentos revolucionários em Cuba, em 1959, punham na ordem do dia o tema da transformação social rápida na América Latina, seja para solucionar a grave crise de integração dos camponeses nas cidades, seja de distribuição de terra e renda. A "teologia da revolução" tematizava a participação cristã nestas transformações. No Brasil, o golpe de 1964[3] desmantelou mais e mais essa teologia, que representava os setores mais dinâmicos dos protestantes nos anos 1950 e 1960.

IHU On-Line - Como a "teologia da libertação" ajudou ou ajuda na interpretação da Bíblia?
Milton Schwantes - A "teologia da libertação" situa-se para mim na continuidade da "teologia da revolução". Encontrava-me em estudos doutorais em Heidelberg, quando Gustavo Gutiérrez[4] publicou sua obra. E, dizendo-o de modo abreviado, a magnífica obra da teologia da libertação inicialmente tende a apresentar uma dificuldade que já se podia observar na teologia da revolução: ambas enfocam principalmente os quadros da própria igreja, seus colaboradores mais diretos, bispos, padres, pastores, irmãs e irmãos de congregações. Inicialmente também a teologia da libertação é de quadros e não do povo. Sim, o livro de nosso querido Gustavo Gutiérrez é uma reflexão para os bispos e teólogos, e, a rigor, não tanto para o povo. Cita muitos autores europeus e franceses, situando-se ainda em parte, no âmbito da teologia "importada". A reflexão popular ainda não iniciou, de verdade e com força. A reflexão é antes sobre o povo, mas não popular. Assim, o livro da Teologia da libertação é tão espetacular quanto frágil. Penso que grande passo inovador e exemplar, culturalmente revolucionário é a segunda grande obra de Gustavo Gutiérrez: Teologia a partir dos pobres (1978). Essa reflexão completa a primeira e coloca a nova teologia em seu devido foco: os pobres como sujeitos teológicos. Este enfoque implica numa maravilhosa conversão: a igreja precisa ouvir os pobres, mulheres, crianças e homens, para poder teologizar. Sem escuta não há libertação. Na teologia da libertação, em seu sentido profundo, a Igreja é aprendiz do caminho dos empobrecidos. Estes, os últimos, são de verdade os primeiros. Entendo, pois, que nesta sua versão a partir de 1978, a teologia toda dá uma virada, encontra seu eixo, sua tarefa própria, a de ser seguidora de Jesus nos caminhos das manjedouras e das cruzes, das vidas sofridas e destruídas de nossos países. Quem tem vida são as "vidas secas". Dá-se uma virada radical e definitiva na vida teológica latino-americana. Passa a experimentar-se que os pobres são eixo de tudo. Antes a Igreja modernizada e mundanizada, a do aggionamento, era o eixo de tudo. Em 1978, Gustavo Gutiérrez alcançou formular a grande inovação que é o que de verdade impacta: não se trata de modernizar a Igreja, mas de retornar às manjedouras. Penso que estas luzes, que a teologia nos foi dizendo naqueles anos, continuam sendo nossas luzes. E o ciclo da teologia da libertação não está concluído, pois das luzes da manjedoura da pobreza de Belém e do crucificado emerge a profundeza da vida. O desafio permanece. E este está delineado em Teologia a partir dos pobres. Os cânticos nascidos deste desvendamento teológico, desta coragem de ver a verdade cristológica carregam nossa vida de fé. Dia a dia, Jesus nos arranca da morte para que, com alegria, vivamos com nosso próximo, pobre e destituído da vida em nossa América Latina. Nas terras latino-americanas, não se pode viver sem ser militante de uma fé centrada nos pobres.

IHU On-Line - Haveria uma crise da Igreja hoje?
Milton Schwantes - A crise se refere, a meu ver, à tarefa pastoral. Sem coração pelo social, a pastoral esfarela-se, esmigalha, despedaça-se. Movimento eclesial nenhum faz jus às terras brasileiras, se não tiver uma intuição social clara. Eis a crise das paróquias. Nelas, assim me parece, tende a esquecer-se de animar pessoas para a presença maciça nas periferias. Os pobres, aquele cinturão de empobrecidos que faz aumentar os cinturões ao redor das cidades, continua sendo prioridade. Nas periferias, não pode faltar mão-de-obra pastoral.

IHU On-Line - Quais as perspectivas do diálogo inter-religioso?
Milton Schwantes - Não me agrada muito o termo "diálogo inter-religioso", quando se pretende diferenciá-lo de ecumenismo. Ecumênico seriam as aproximações entre igrejas e tradições cristãs, enquanto "diálogo inter-religioso" seria a atividade ecumênica com não-cristãos. Pode-se acentuar tais diferenças por questões práticas, mas em seguida há que voltar a insistir em que em Deus todos e tudo se encontra. Aí não há departamentos. Logo, sou dos que têm criticado essa linguagem, em que o ecumênico reúne igrejas cristãs e em que o inter-religioso convoca pessoas religiosas de boa índole. Penso que o diálogo entre as igrejas sempre é uma forma do diálogo inter-religioso, não cria uma outra categoria. Prefiro designar também todo diálogo inter-religioso de ecumênico. Ambos têm a mesma qualidade. Afinal, no diálogo, seja ele ecumênico ou inter-religioso, queremos experimentar Deus, em sua compaixão com a humanidade e sua criação. Temos diversas experiências deste encontro com Deus, mas todas elas se complementam. O protestante e o católico se complementam ao buscarem o convívio ecumênico. Ambos se alteram! E ambos também encontram a si mesmos no outro. Ora, o encontro ecumênico com os muçulmanos nos permite dar novos passos de mutua admiração e alteração no que se chamaria de atividade inter-religiosa. Mas, por igual se poderá designar este encontro cristão-muçulmano de ecumênico, por ser da qualidade humana e teológica equiparável ao de atividades intracristãs. Não há aí uma grande diferença. No convívio, as distâncias criam novos espaços. A mãe-de-santo é tão profundamente dedicada ao encontro com Deus como nós o somos com o mesmo Deus, considerando que o Deus da Vida não existe em duas espécies, como Deus e não-Deus. Ele só subsiste como Deus "exodal", do qual estamos igualmente próximos e desesperadamente distantes. Outro dia escrevi um pequeno ensaio sobre este problema. Pensei-o com base em uma cena do metrô. Lá não tem setor ecumênico, ou setor inter-religioso. No metrô só há um lugar, simultaneamente excludente e coeso. Nele, o metrô nos torna um.

IHU On-Line - O senhor está num estado delicado de saúde. Como está enfrentando este momento, tendo uma história de vida cheia de fé?
Milton Schwantes - Para mim, está tudo bem. Dou risada. E muita. Fiquei com muitas seqüelas, com as quais agora vivo, mas não posso dizer que vida sob as condições de limites e restrições seja vida ruim. É vida boa, porque não canso de receber uma mãozinha, seja para atravessar uma rua ou entrar em um ônibus. Tenho experimentado muita graça. E descobri muitas pessoas que vivem com limites como os que experimento. Importa que os vivamos na alegria da fé em Jesus, na alegria da vida, doada por Deus.

IHU On-Line - O senhor completou 60 anos. Quais suas perspectivas profissionais e de vida?
Milton Schwantes - Andei limitando minha atuação. Ao menos, era este o meu desejo. Mas as tarefas continuam sendo muitas. Com grande alegria dou aulas. Convivo com alunos e alunas, e trato de mostrar que teologia é gratuidade, graça. Trabalho Universidade Metodista de São Paulo e gosto muito de dar aula. Tenho muitos orientandas e orientandos no mestrado e no doutorado. Vejo com grande felicidade que aumentam os sinais ecumênicos.

IHU On-Line - Na vida pessoal, há alguma coisa que o senhor queira fazer?
Milton Schwantes - Gostaria de ir a Israel, Palestina e Jordânia com meus alunos e minhas alunas. Mas, isso ainda não deu certo. Espero que o plano dê certo em 2007. Depois tenho muita alegria em viver com minha esposa. A Rosi é mesmo um encanto de pessoa. É bom demais conviver com ela. Graça gratuita! As meninas vão fazendo suas experiências na vida. De algumas aprendo; para outras prefiro preparar-me com bom humor. Afinal, cada qual precisa ter o direito de equivocar-se. Bater a cabeça é algo como um direito natural. De todo modo, somos uma bela comunidade, de muita risada.
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[1] Richard Shaull (1919-2002): teólogo presbiteriano norte-americano, levantou a questão sobre se a revolução teria um significado teológico. Escreveu Surpreendido pela graça - Memórias de um teólogo. Trad. Waldo César. Rio de Janeiro: Record, 2003. (Nota da IHU On-Line)
[2] Teologia da Revolução: título de um importante livro de José Comblin, de 1970. Comblin é teólogo católico belga, ensinou Teologia no Recife durante sete anos, sendo depois expulso do Brasil, em 1972. Hoje vive em João Pessoa, na Paraíba. Confira a entrevista que publicamos com ele, sob o título Uma radiografia da América Latina, na edição nº 176, de 17 de abril de 2006. (Nota da IHU On-Line)
[3] Golpe Militar: Movimento deflagrafo em 1º de abril de 1964. Os militares brasileiros, apoiados pela pressão internacional anticomunista liderada e financiada pelos EUA, desencadearam a Operação Brother Sam, que garantiu a execução do Golpe, que destituiu do poder o presidente João Goulart, o Jango. Em seu lugar os militares assumem o poder. Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar o IHU publicou o 4º número dos Cadernos IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. A memória do regime militar. Confira, também, as edições nº 96 da IHU On-Line, intitulada O regime militar: a economia, a igreja, a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964 - 2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota da IHU On-Line)
[4] Gustavo Gutiérrez (1928): padre e teólogo peruano, um dos pais da Teologia da Libertação. Gutiérrez publicou, depois de sua participação na Conferência Episcopal de Medellín de 1968, a Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, traduzida para mais de uma dezena de idiomas, e que o converteu num teólogo polêmico. Uma década mais tarde participou da Conferência Episcopal de Puebla (México, 1978), que selou seu compromisso com os desfavorecidos e serviu de motor de mudança na Igreja, especialmente latino-americana. Alguns dos últimos livros de Gustavo Gutiérrez são: Em busca dos pobres de Jesus Cristo. O pensamento de Bartolomeu de Las Casas. (São Paulo: Paulus, 1992); e Onde dormirão os pobres? São Paulo: Paulus, 2003. (Nota da IHU On-Line)
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Do BLOG: Fui aluno do Milton, quando estudante da PUC/RS de Teologia. Ele fazia encontros em sua casa em SLeopoldo. De uma humanidade tocante. Sábio de linguagem suave e terna. De atenção com tudo e com todos. Lia os textos bíblicos com profundidade e ouvia o que falávamos com o mesmo interesse. Perdemos um santo, porque de tão humano, só poderia ser santo.

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