sábado, 29 de setembro de 2012

“A ciência não tem como papel tirar Deus de ninguém”

Na contramão do ativismo antiteísta de pesquisadores americanos e britânicos, professor brasileiro radicado nos EUA diz que fé e ciência são complementares e têm raízes em profundas necessidades humanas

Numa época em que cientistas de renome como Richard Dawkins e Sam Harris se dedicam a ampliar o fosso entre ciência e religião, o brasileiro Marcelo Gleiser assume a delicada tarefa de estender pontes entre os dois lados. Graduado em física pela PUC do Rio e doutorado em física teórica pelo King’s College, de Londres, esse carioca de 53 anos acredita que o entendimento entre as partes é o caminho natural.

– Ciência e fé devem coexistir – resume.

Radicado nos Estados Unidos – desde 1991 é professor do Dartmouth College, uma das mais renomadas universidades americanas – , onde o fundamentalismo cristão desempenha um papel político de primeira grandeza, Gleiser sabe que nem sempre é possível evitar choques. Ele se opõe com vigor às tentativas de setores religiosos de definir a agenda científica. Discorda, porém, daqueles que, do alto das cátedras e dos fundos públicos e privados de financiamento à pesquisa, pretendem vingar Adão e expulsar o Criador do Paraíso do conhecimento.

Na próxima semana, Gleiser proferirá conferência e participará de mesa redonda na Universidade do Vale do Sinos (Unisinos) (veja quadro). Por telefone, de Hanover, New Hampshire, nos Estados Unidos, ele falou na quarta-feira a Zero Hora sobre os temas a serem debatidos. A seguir, uma síntese:

Zero Hora – Quando se discute a relação entre ciência e religião no universo acadêmico, o polo religioso é sempre o mais frágil. Nos últimos 50 anos, porém, a posição da ciência tem sido muito questionada. Como o senhor vê hoje a posição da ciência diante da religião?

Marcelo Gleiser –
Não existe uma posição da ciência em relação à religião. Existem posições de cientistas em relação à religião, e essas posições são muito diferenciadas. Num extremo, você tem os novos ateístas, como Richard Dawkins, Daniel Dennett e outros, que acham que ser religioso é ser louco ou estar completamente iludido em relação ao real. Eles fazem um ataque bastante agressivo em relação à fé. No outro extremo, você tem cientistas que são perfeitamente religiosos e veem em seu esforço científico uma aproximação com Deus, se forem judeus, cristãos ou muçulmanos, ou com uma espiritualidade que pode ser budista, hinduísta etc. Para eles, quanto mais aprendem sobre o universo e a natureza, mais se aproximam de Deus. Entre essas duas posições extremas, você tem uma porção de outras posições. No meu caso, vejo essa cruzada antirreligiosa que certos cientistas estão fazendo como uma completa perda de tempo, que não vai levar a nada e ignora o papel essencial que a religião tem na sociedade e em nossa cultura. As pessoas sabem muito pouco sobre história, filosofia e menos ainda sobre o espírito humano para entender o quanto a fé é importante na vida das pessoas. É muita presunção de certos cientistas achar que a ciência pode, dentro da posição dela, acabar com o papel da religião na vida das pessoas. Isso é um absurdo, por vários motivos. Entre eles, e é algo que vai ser assunto do meu próximo livro e vou abordar na minha conferência, o fato de que a ciência também tem limitações na sua concepção e no seu funcionamento.

ZH – Quais seriam essas limitações?

Gleiser –
Certos cientistas que escrevem para o público, como Stephen Hawking, Bryan Greene e outros, ficam tão empolgados com certas ideias científicas que esquecem de onde elas vêm e quais são seus limites filosóficos e metafísicos. Existe muita distorção sobre o que a ciência pode fazer e já fez quanto à explicação de questões fundamentais, também tocadas pela religião, como a origem do universo, da vida e da mente. Dizer que a ciência entende a origem do universo é uma grande bobagem. A ciência tem teorias que explicam uma porção de coisas maravilhosas sobre o universo, e todos devemos ter muito orgulho delas. Mas a gente ainda não entende a origem do universo, e eu, particularmente, nem sei se a gente conseguiria, dentro do processo científico, entender.

ZH – Os EUA, onde o senhor está radicado, assistem à tentativa de interferência de setores religiosos na pesquisa e no ensino de matérias científicas. Como vê esse fenômeno?

Gleiser –
Aqui, essa questão, infelizmente, é muito politizada, e não deveria ser. Principalmente durante o governo George W. Bush, quando a direita religiosa foi ao poder, houve várias medidas que interferiam na liberdade de pesquisa científica. Isso causou indignação na maior parte da comunidade acadêmica, que não aceita interferência religiosa na pesquisa científica. Proibir pesquisa com células-tronco porque estão sendo extraídas de fetos é algo inaceitável. Quando isso acontece, parece que estamos voltando ao início do século 17, quando a Igreja foi atrás de Galileu. Por outro lado, é óbvio que a pesquisa científica sempre tem um aspecto moral que não podemos deixar de lado. Temos de pensar sobre as implicações sociais, culturais e morais da pesquisa científica, e isso é verdade tanto no mundo da engenharia nuclear quanto no da engenharia genética. A questão da clonagem de humanos, que é extremamente complexa, desperta contrariedade na maioria absoluta da comunidade científica. Não existe nenhum uso médico disso. Se você quer ter filhos, há outros procedimentos e você não vai querer ter um filho que tenha o código genético igual ao seu. Dizer que a pesquisa com células-tronco interfere na vida dos fetos é uma besteira porque muitos dos embriões utilizados em clínicas de fertilização in vitro são descartados depois de algum tempo, e junto com esses embriões vão as células-tronco que poderiam ter sido usadas e não o foram. Ninguém está tirando a vida de ninguém. Além disso, hoje em dia há outros modos de obter células-tronco que não recorrem a embriões. Você tem de acoplar sempre a discussão sobre a implicação moral da pesquisa de ponta dentro do quadro político e social, e também como uma questão de ética científica. O cientista não é imune a essas questões éticas, muito pelo contrário – ele e ela devem refletir sobre a implicação ética do que estão fazendo. Por outro lado, o Estado também tem de tomar muito cuidado se for interferir no processo de descoberta e de pesquisa e científica a partir de uma moral que é calcada em religiões antiquadas.

 "Quase metade da população mundial que acredita 
em alguma coisa crê em deuses completamente diferentes desse Deus judaico-cristão-muçulmano. 
Mesmo no Brasil, as comunidades nativas
 não acreditam nesse Deus, a não ser por 
terem sido forçadas durante 
anos de evangelismo."

ZH – Muitos religiosos, porém, se dizem portadores de uma espécie de ética suprema.

Gleiser –
Basear qualquer tipo de ética ou de moral na religião é extremamente obscurantista. Uma das críticas ao ateísmo, que considero infeliz, é achar que só quem é religioso é moral. Você pode ser uma pessoa perfeitamente moral, ética, correta, respeitosa da vida e dos que estão a seu lado sem ter que acreditar em Deus. Usar a religião como uma justificação moral superior não faz o menor sentido. Todo ser humano, religioso ou não, deveria aceitar como preceito fundamental o respeito ao próximo e à vida, e isso não depende de acreditar ou não em Deus. Qualquer tipo de argumento calcado no discurso religioso como sendo superior a uma ética perfeitamente humana e social, para mim, não faz o menor sentido.

ZH – Como deveria ser fundamentada a convivência entre fé e ciência?

Gleiser –
As fronteiras têm de ser respeitadas. O problema se inicia quando a religião começa a se meter no processo científico. Quando conselhos educacionais resolvem que não se pode mais ensinar a teoria da evolução de Darwin porque não é religiosa ou quando o Estado, controlado por interesses religiosos, decide interferir nos fundos de pesquisa científica básica porque afetam algum princípio religioso. Quando a religião interfere em algum aspecto do conhecimento, ela está andando para trás e não fazendo o papel importante que pode fazer na vida das pessoas. Por outro lado, quando a ciência faz pronunciamentos grandiosos do tipo “Deus não é mais necessário porque já entendemos tudo sobre o universo”, está abusando do que realmente sabe para fazer uma propaganda indevida. Essa coexistência tem de ser de respeito mútuo. Os cientistas têm de entender que existem 4 bilhões de pessoas no mundo que acreditam em alguma forma de Deus. A ciência não tem como papel tirar Deus de ninguém, e sim explicar como o mundo funciona e talvez minorar um pouco o sofrimento humano. Nesse quadro, as coisas poderiam funcionar bem. Isso prescinde uma separação da Igreja e do Estado, obviamente. A minha cruzada é mostrar que é uma perda de tempo os cientistas acharem que vão convencer as pessoas de que elas não precisam de religião. A religião atua em esferas além da ciência. Se morre alguém querido para você, você vai buscar consolo na sua família, no seu padre, no seu rabino ou seja lá em quem for. A religião oferece um sentido de comunidade, de pertencer, que é um grande antídoto contra a solidão humana. Nesse sentido, ela é extremamente importante. O que atrapalha, no discurso religioso, é a fé em entidades sobrenaturais, que eu acho desnecessária. Mas, certamente, a fé religiosa tem um papel importante na história e na cultura humana. Negar isso é não entender a história e a filosofia.

ZH – O que são entidades sobrenaturais?

Gleiser –
Qualquer entidade que viole certas leis fundamentais da natureza. Qualquer entidade que esteja além do espaço e do tempo, que seja onipresente e onisciente, eterna, sem extensão física ou temporal, para mim, é uma entidade sobrenatural.

ZH – Essa não é uma descrição de Deus?

Gleiser –
Esse é um Deus. Existem, em mitologias espalhadas pelo planeta, outros deuses que também são eternos e existem além do espaço e do tempo. No Brasil e no mundo ocidental, a gente tem um pouco de miopia em relação a isso. Quase metade da população mundial que acredita em alguma coisa crê em deuses completamente diferentes desse Deus judaico-cristão-muçulmano. Mesmo no Brasil, as comunidades nativas não acreditam nesse Deus, a não ser por terem sido forçadas durante anos de evangelismo. Entidades sobrenaturais incluiriam qualquer coisa além de como entendemos que a matéria se relaciona com as leis da natureza. Inclui deuses, fadas, fantasmas, alma e todas as coisas que têm uma existência de como a matéria se autossustenta por meio das interações fundamentais.

"É muita presunção de certos cientistas 
achar que a ciência pode, dentro da posição dela,
 acabar com o papel da religião 
na vida das pessoas."

ZH – Como o senhor vê a situação da pesquisa científica no mundo contemporâneo?

Gleiser –
A pesquisa científica é um dos maiores motivos de orgulho que a humanidade tem. Isso sempre foi verdade, desde que a ciência moderna começou, há 400 anos, e continua sendo. O discurso pós-moderno, da subjetividade, de que não existem verdades, tem de ser tomado com muito cuidado. É claro que a ciência está sempre avançando. Conceitos científicos são renovados e reformados, e é justamente essa a beleza da ciência, de estar sempre se reinventando a partir de uma compreensão cada vez maior do mundo. Por isso, qualquer cientista que se diz dono de uma verdade deve ser olhado com suspeita. O que era verdade há 200 anos certamente não é mais hoje, e o que é verdade hoje não vai ser daqui a 200 anos. Por outro lado, basta olhar em volta para nos vermos falando ao telefone, no computador, tecnologias digitais, sondas em Marte e curas de doenças. Isso mostra que a ciência é um bem profundo. Também tem um lado mau, mas aí é outra conversa. Há várias áreas novas na ciência, como a astrobiologia, que estuda a possibilidade de vida fora da Terra, as ciências neurocognitivas, que estão aprendendo cada vez mais como funciona o cérebro, a engenharia genética, que está redefinindo o que sabemos sobre como a vida funciona e como a gente pode criar outras formas de vida no laboratório, e a própria nanotecnologia, que estuda a física dos objetos muito pequenos. Achar que o discurso científico está falido é fechar os olhos para o mundo em que estamos vivendo.

ZH – O que seria o lado mau da ciência e o que seria possível fazer para, se não anulá-lo, pelo menos controlá-lo?

Gleiser –
O lado mau não vem da ciência, mas do caráter humano. Quando se fala do bem ou mal da ciência ou de a ciência ter feito mal à humanidade, é preciso lembrar que a ciência não fez bem nem mal. A ciência é um corpo de conhecimento que descreve como funciona a natureza. A escolha moral de como vamos usar esse conhecimento vem dos homens. São as pessoas que fazem escolhas e podem usar a radiação nuclear tanto para curar um câncer quanto para construir bombas. Esse lado de sombra ou luz da ciência é do ser humano, que também usa a religião para o bem ou para o mal. Essa escolha tem a ver mais com a natureza do ser humano do que com a da ciência. O que a comunidade científica pode fazer é tentar trazer esse discurso das implicações éticas e morais da ciência para a sociedade. E acho que isso acontece. Existe uma mobilização das comunidades científicas no Brasil e no mundo para que sejam debatidos os usos e abusos da ciência. E, de uma certa forma, isso está acontecendo. As guerras químicas e biológicas estão proibidas. O controle do armamento nuclear envolve uma porção de cientistas e tem algum sucesso. Pelo menos não temos nenhuma guerra nuclear desde 1945.
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Reportagem POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/29/09/2012
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