Eliana Cardoso*

Hoje me arrisco. Temo que os admiradores de Gandhi me
rejeitem por lembrar palavras que gostariam de ver enterradas e
esquecidas. Vou devagar. Antes de chegar ao líder carismático, traço
paralelos entre a economia do Brasil e a da Índia.
A onda de reformas chegou aos dois países no começo da década de
1990, motivada por recorrentes crises externas. Os resultados foram
bons. Na Índia, dez anos de crescimento acelerado resultaram em mais
crianças na escola, menos analfabetos, menos pobreza rural, mais
estradas e cada um de seus habitantes com um celular ao ouvido, apesar
da crescente disparidade da renda. No mesmo período, apesar do
crescimento menos vigoroso que o da Índia, partindo de uma renda per
capita bem mais alta que a do gigante asiático, o Brasil também viu
progresso social com menos pobreza. E, ao contrário da Índia, conseguiu
reduzir a desigualdade.
O ano de 2012 produziu investidores desanimados, déficit fiscal em
alta e piora da conta corrente do balanço de pagamentos na Índia. No
Brasil, também. Lá e aqui, ouvimos queixas sobre o governo que mal
governa e congela reformas. O Estado indiano culpa os empresários que
não investem pela piora dos indicadores. O nosso acusa o Fed (Federal
Reserve, o banco central dos EUA). Lá e aqui, como os habitantes do
inferno de Dante, ministros empurram para longe de si a responsabilidade
dos próprios atos.
Nos dois países, governos estaduais bloqueiam a unificação dos
impostos indiretos, com receio de que o poder central não distribua as
receitas de forma equitativa. A Índia, mergulhada na corrupção, vê o
medo de acusações paralisar os burocratas, que se protegem cruzando os
braços. O Brasil lamenta ineficiências administrativas que entravam os
investimentos.
Tanto no Brasil como na Índia, a imprensa é livre. O voto, limpo e
honesto. Mas as campanhas eleitorais são custosas e sujas. Desvios
populistas talvez expliquem como democracias vibrantes podem conviver
com enormes disparidades. Calcula-se que 30% da população indiana
sobrevive em pobreza abjeta, ao mesmo tempo que (atrás apenas da Rússia)
a Índia ocupa o segundo lugar entre os países que têm os maiores
números de bilionários no mundo. Parece que a desigualdade indiana se
deve (em boa parte) ao sistema de castas. E é triste constatar que
Gandhi - líder que ainda hoje inflama a imaginação e a admiração de
muitos - sempre defendeu esse sistema.
Treinado como advogado britânico, depois de viver na África do Sul,
onde foi importante líder comunitário, Gandhi voltou para a Índia, onde
repensou o hinduísmo através do espiritualismo ocidental de sua época,
enfatizando ideias como a reencarnação, o aperfeiçoamento pelo ascetismo
e a fusão com o divino. Seu objetivo na vida? Alcançar o estado de
perfeição em que o ciclo de renascimento chega ao fim e a alma se une a
Deus. O caminho para a perfeição? A crucificação da carne. No sexo
residia o perigo primeiro para a libertação final. Gandhi misturava o
medo cristão do pecado com a fobia hinduísta de poluição. Aos 65 anos,
uma ejaculação involuntária virou assunto para um comunicado angustiado
ao público. Aos 77, testou a si mesmo dormindo nu com sua sobrinha-neta.
O extremismo de suas convicções não se limitava à cama. Enumerando
suas crenças fundamentais, explicou que as máquinas representam um
grande pecado. As ferrovias espalham a peste bubônica e aumentam a fome.
Hospitais propagam o pecado. O camponês não precisa saber ler, pois o
conhecimento das letras o tornaria descontente com sua sorte.

No seu tempo, o caminho da virtude exigia a expulsão da civilização
ocidental da Índia e em 1920, usando seus dons excepcionais de energia e
organização, Gandhi lançou uma campanha de não cooperação: renúncia de
todos indianos às honrarias conferidas pelos britânicos e às posições no
serviço público, na polícia e no exército, seguida pelo não pagamento
de impostos. A campanha e o boicote à compra de bens estrangeiros
eletrizaram o país. E em 1.º/2/1922 Gandhi anunciou que chegara a hora
de iniciar o não pagamento de impostos. Quatro dias depois, a polícia de
Chauri Chaura (no Estado de Uttar Pradesh) disparou contra
manifestantes, matando três deles. A multidão contra-atacou e destruiu o
local de refúgio dos policiais. Ao saber do ocorrido, Gandhi declarou
um jejum de cinco dias e cancelou o movimento nacional.
Seu desgosto genuíno não parece ter determinado sua decisão, pois ele
assumiria a postura contrária em 1942, ao declarar a jornalistas: "Se
Deus quer destruir o mundo por meio da violência e me usar como seu
instrumento, como posso impedir isso?" Parece que a razão para sua
retirada súbita em 1922 estava ligada ao temor de que a revolta popular
levasse a uma revolução socialista.
Do lado positivo, não nos podemos esquecer de que a imagem do líder
semeou movimentos pacifistas ao redor do mundo e nele Aung San Suu Kyi
encontrou inspiração para a revolta não violenta contra a ditadura de
Mianmar.
Do lado negativo, precisamos lembrar a posição de Gandhi quanto ao
sistema de castas. Embora condenando a ideia dos intocáveis, sempre
defendeu e pregou a divisão da sociedade em quatro castas. Acreditando
na transmigração e na reencarnação, afirmava que a natureza, sem nenhuma
possibilidade de erro, faz as correções necessárias. Um brâmane que se
comporta mal reencarna em divisão inferior: "Não há necessidade de
ajustes nesta vida".
A bala de um assassino embalsamou Gandhi no papel de mártir e ainda
hoje faltam à Índia políticos indianos que desafiem seus ensinamentos e
condenem o sistema de castas. Converter um líder carismático em
super-herói atrasa reformas benéficas ao progresso. O peronismo, na
Argentina, é o exemplo mais próximo de idolatria política. Teremos sorte
se o julgamento do mensalão vier a livrar a sociedade brasileira do
lulismo.
-----------------------
* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-heranca--do-carisma-,943418,0.htm
Imagens da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário