Eugênio Bucci*

Mais uma vez, uma irracionalidade vem ganhando ares de
verdade no Brasil. Fruto, talvez, da polarização abrutalhada do debate
público, essa nova irracionalidade traz um potencial destrutivo
considerável. Podemos resumi-la numa frase curta: "A defesa da liberdade
de imprensa é coisa da direita, é uma agenda patronal". Trata-se de uma
proposição absurda, irrefutavelmente absurda, tanto quanto esta outra,
muito difundida na seara da direita, segundo a qual "essa conversa de
direitos humanos só serve para proteger bandidos". Mesmo assim, esse
absurdo comove pequenas multidões.
Nesse caldo de cultura marcado pela animosidade, a censura judicial
encontra uma estrada aberta, desimpedida, e cresce. "É o de menos",
dizem uns. Outros até comemoram: "Finalmente a grande imprensa vem tendo
o que merece". Foi assim no dia 31 de julho de 2009, quando este jornal
foi proibido pela Justiça de veicular informações sobre a Operação Boi
Barrica, então conduzida pela Polícia Federal. Logo apareceu quem
argumentasse que a violência da medida judicial não constituía censura,
que não se podia exagerar, que o episódio não era grave. Já se
conheciam, naquele ano, algo como 40 decisões judiciais impondo
proibições prévias a blogs e jornais de médio ou de pequeno porte, mas
nem isso estimulou os indiferentes a abandonarem a indiferença. Como
resultado, o quadro piorou.
Desde então a mentalidade censória só fez recrudescer. Em 2010 um
juiz eleitoral do Tocantins, Liberato Póvoa, proibiu 84 veículos de
comunicação de diversos Estados de publicar informações sobre
irregularidades no governo de Carlos Gaguim (PMDB) - que, não nos
esqueçamos, era candidato à reeleição. A decisão de Póvoa foi modificada
logo em seguida, mas serviu para ridicularizar a liberdade de imprensa.
De novo, os que achavam e continuam achando que falar de liberdade de
imprensa é coisa de direita não se abalaram.
Agora em setembro, em Macapá, outro juiz eleitoral mandou que fosse
suprimido do blog do jornalista João Bosco Rabello, no portal
Estadão.com.br, uma nota informando que um dos candidatos à prefeitura
respondia a ações penais. Outra vez a liberdade de imprensa saiu
desmoralizada. E a moda se alastra. A esta altura, já são dezenas de
processos, no Brasil inteiro, em que candidatos a cargos municipais
suplicam ao Judiciário que vete todas as notícias que lhes desagradam.
"O jornal Folha de S.Paulo, na sexta-feira passada,
afirmou em editorial que "a maior ameaça
à liberdade e expressão no
Brasil,
hoje, parte do Judiciário".
Há pouco mais de uma semana, em Mato Grosso do Sul, o juiz eleitoral
Flávio Saad Peron determinou que o Google retirasse do YouTube um vídeo
que criticava o candidato do PP à prefeitura de Campo Grande. Como não
foi obedecido no prazo de 24 horas, ordenou a prisão do executivo Fabio
Coelho, diretor-geral do Google no Brasil. Coelho chegou a ser detido no
dia 26 de setembro e só foi libertado porque o mesmo magistrado que
mandara encarcerá-lo mudou de ideia e, convencido de que o crime era de
"menor potencial ofensivo", expediu o alvará de soltura.
Passado o desgaste, o saldo é um só: em Campo Grande quem levou a
melhor foi o candidato do PP, pois o vídeo que ele queria vetar foi
efetivamente banido do YouTube. A censura venceu e, atenção, quem mais
perdeu não foi o Google. O gigante da internet enfrenta pendengas
semelhantes em 28 países, mas segue a todo o vapor, incólume. Quem
perdeu foi o eleitor. A liberdade do Google, nesse caso, não é a
liberdade privada de uma empresa: é a nossa liberdade, é o nosso direito
de ter acesso à informação. Se queremos defender o direito à
informação, precisamos defender a liberdade do Google.
Por certo, ninguém aqui vai argumentar que o diretor do Google agiria
bem se descumprisse a ordem do juiz. Na democracia, ordens judiciais
devem ser obedecidas. Mas, com a mesma legitimidade, podem também ser
questionadas na própria Justiça, como o próprio Google tenta fazer. A
batalha jurídica é necessária. Só ela, porém, não basta. Para superar a
mentalidade autoritária, que vem aumentando, precisamos superar também o
equívoco de acreditar que "a bandeira da liberdade de imprensa é uma
agenda da direita". O jornal Folha de S.Paulo, na sexta-feira passada,
afirmou em editorial que "a maior ameaça à liberdade e expressão no
Brasil, hoje, parte do Judiciário". É isso mesmo, o editorial tem razão,
mas falta dizer que essa ameaça conta com o apoio silencioso (e
confortável) de lideranças políticas - algumas das quais, aliás, se vêm
beneficiando das mordaças judiciais.
A liberdade de imprensa está longe de ser um consenso entre nós. O
Brasil unificou-se para derrotar a inflação, assim como agora se
articula para combater a pobreza, mas não enxerga na liberdade de
imprensa um direito fundamental de todos, independentemente da
preferência ideológica de cada um. Mais um pouco e correremos o risco de
ter o Poder Judiciário exercendo as funções de editar jornais e sites.
Será possível estancar essa onda censória?
A resposta passa pelo Supremo e pelo Poder Legislativo, mas, no
principal, depende dos agentes políticos. Do primeiro se espera uma
decisão que faça valer para todo o Judiciário o que foi definido com
total clareza, em 2009, no acórdão assinado por Carlos Ayres Britto
pondo fim à velha Lei de Imprensa. "A crítica jornalística", escreveu
ele, "não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que
legislativa ou judicialmente intentada". Do segundo se espera que o
Marco Civil da Internet tramite na direção certa, reafirmando a
liberdade - que, vale reforçar, é a liberdade da sociedade, não das
empresas.
Acima disso, por fim, cabe às lideranças políticas a tarefa de
sepultar a crença obscurantista de que a liberdade só interessa à
burguesia. Já é tempo de saber que a nossa liberdade somente encontra
espaço para prosperar quando a gente se empenha em expandir a liberdade
do outro. A liberdade de imprensa não é um privilégio de jornalistas ou
dos meios de comunicação: é um direito de todos nós.
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* JORNALISTA, É PROFESSOR DA USP E DA ESPM
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-liberdade-do-google-e-a-nossa-liberdade-,939900,0.htm
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