Rubem Alves*

“Cada hora, de cada dia, a gente aprende
uma qualidade nova de medo...”
(Guimarães Rosa)
Não se assustem. Estou apenas respondendo a um fax que me foi enviado por um casal de amigos. Eles pediram que lhes mandasse os nomes dos livros que tenho sobre o medo. Explicaram a razão do pedido: tinham medo... E pensavam que pela leitura daquilo que sobre o medo se escreveu como ciência e filosofia, o seu próprio medo ficaria mais leve.
Procurei fazer o que me pediam. Pus a funcionar os arquivos da minha memória, procurando identificar os livros sobre o medo que estariam na minha biblioteca. Inutilmente. Nenhum título me veio à mente. Dei-me conta de que não possuo nenhum livro sobre o medo. Sem livros a que recorrer, pus-me a pensar meus próprios pensamentos sobre o medo. E o primeiro pensamento que me veio foi o seguinte: Eu tenho medo. Eu sempre tive medo. Viver é lutar diariamente com o medo. Talvez esse seja o sentido da lenda de São Jorge, lutando com o dragão. O dragão não morre nunca. E a batalha se repete, a cada dia.
Como não pudesse ajudar meus amigos com bibliografia filosófica e científica, resolvi abrir os livros que fazem a minha alma.
O medo tem muitas faces. Lembro-me de que, bem pequeno ainda, acordei chorando, imaginando que um dia eu estaria sozinho no mundo. Foi uma dura experiência de abandono. Tive medo de não ser capaz de ganhar a minha vida quando meu pai e minha mãe partissem. Na verdade eu tinha era medo da orfandade, do abandono. Minha filha Raquel tinha não mais que três anos. Era cedo, bem cedo. Ela me acordou e me perguntou: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?" Essa foi a forma delicada que ela teve de me dizer que tinha medo da saudade que ela iria sentir, quando eu partisse.
O rosto do medo mudou. Mas o sentimento continua o mesmo. Tenho medo da solidão. Há uma solidão boa. É a solidão necessária para ouvir música, ler, pensar, escrever. Mas há a solidão do abandono. Buber relata que, numa língua africana, a palavra para dizer “solidão” é composta de uma série de palavras aglutinadas que, se traduzidas uma a uma, dariam a frase: Lá, onde alguém grita: Oh! mãe! Estou perdido! O trágico dessa palavra é que o grito nunca será ouvido, nunca terá resposta. Tenho medo da degeneração estética da velhice. Tenho medo que um derrame me paralise, deixando-me sem meios de efetivar a decisão que seria sábia e amorosa: partir.
Tenho medo da morte. Antigamente esse medo me atormentava diariamente. Depois ele se tornou gentil. Ficou suave. Passei a compreender que a morte pode ser uma amiga. Veio-me à mente uma frase que se encontra na oração pelos que vão morrer, de Walter Rauschenbusch:
“Ó Deus, nós te
louvamos porque para nós a morte não é mais uma inimiga, e sim um grande
anjo teu, nosso amigo, o único a poder abrir, para alguns de nós, a
prisão da dor e do sofrimento e nos levar para os espaços imensos de uma
nova vida. Mas nós somos como crianças, com medo do escuro...” (Orações
por um Mundo Melhor, Paulus).
“Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
pelo momento a vir, quando, emocionada, ela virá me abrir a porta como
uma velha amante, sem saber que é a minha mais nova namorada.”
Boas são as palavras das orações e dos poemas: elas têm o poder de transfigurar a face do medo. Meu medo da morte ficou suave porque o seu terror foi amenizado pela tristeza. Ah! Mário Quintana! Como eu gosto de você, velho que nunca deixou de ser menino! Você sabia tirar o terror do medo rindo diante dele. Você lidava com seus medos como se fossem brinquedos.
Delicioso, esse brinquedinho: “Um dia... pronto!... me acabo./ Pois seja o que tem de ser./ Morrer: que me importa? O diabo é deixar de viver!” Isso mesmo. O terrível não é morrer; é deixar de viver. O terrível não é o que está à frente; é o que deixamos para trás. É um desaforo ter de deixar essa vida! Zorba, quando percebeu que seu momento chegara, foi até a janela, olhou para as montanhas no horizonte, pôs-se a relinchar como um cavalo e gritou: “Um homem como eu teria de viver mil anos!” E eu pergunto: “Por que tanta modéstia? Por que só mil?”
Mas tenho medo DO morrer. Medo da morte e medo do morrer são coisas distintas. O morrer pode ser doloroso, longo, humilhante. Especialmente quando os médicos não permitem que o corpo que deseja morrer, morra.
Houve um tempo em que eu invocava os deuses para me proteger do medo. Eu repetia os poemas sagrados para exorcizar o medo:
“Ainda que eu ande
pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum...”
“Mil cairão à
tua direita, dez mil à tua esquerda, mas nenhum mal te sucederá...”
A vida me ensinou que esses consolos não são verdadeiros. Os deuses não nos protegem do medo. Eles nos convidam à coragem de viver a despeito dele.
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* Teólogo. Escritor. Educador.
Fonte: http://correio.rac.com.br/correio-popular/30/09/2012
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