Lee Siegel*

No minuto em que Barack Obama abriu a boca
pela primeira vez no debate presidencial, e anunciou que o ponto "mais
importante" a ressaltar naquela noite era que se tratava do dia exato de
seu aniversário de casamento com Michelle – o ponto mais importante! –,
ficou claro que ele estava perdido. Ali estava o presidente dos Estados
Unidos, o comandante-chefe, o homem mais poderoso do mundo, agindo como
se esta não fosse uma eleição em que tudo está em jogo. Ali estava ele,
brincando, como se estivesse em um dos programas humorísticos de fim de
noite dos quais tanto gosta de participar, e não prestes a entrelaçar
chifres com o mais agressivo desafiante de sua carreira política.
Romney, por sua vez, sabia exatamente o que estava em jogo.
Cumprimentando Obama com uma sutil, mas perceptível, subcorrente de
desprazer, ele disse: "Estou certo de que este era o lugar mais
romântico que você poderia imaginar, aqui comigo". A ironia e o desprezo
foram cortantes. Mas a consciência de Romney sobre a importância do
momento, contrastada com a frivolidade de Obama, foi revigorante. Ela
transmitiu, com dramática intensidade, a questão que Romney vem tentando
salientar. Que Obama é desligado, desengajado, indiferente aos
sofrimentos do país.
Evidentemente, o absurdo desse argumento está claro para todos que
acompanham as duas campanhas. Obama tirou o país da beira do desastre
econômico, aliviou o fardo da classe média, aprovou novas leis
revolucionárias na área de saúde, pôs fim à guerra catastrófica no
Iraque e matou Bin Laden. Mas, num momento em que as aparências contam
mais do que tudo na política americana, Romney conseguiu virar esses
fatos de cabeça para baixo e levar o debate para uma toca de coelho de
Alice no País das Maravilhas.
Trinta anos atrás, num curso de pós-graduação, eu costumava bocejar e
revirar os olhos quando ouvia colegas pedantes soltarem as mais
recentes platitudes teóricas: fatos não existem, a verdade é relativa, a
realidade é composta de camadas manipuláveis de simulacros, vence quem
tiver a narrativa mais forte. Agora, porém, tudo isso se tornou real.
Nada que algum dos candidatos diga pode convencer alguém de alguma
coisa. Se X diz Y, o simples fato de que X o diga significa que ele está
mentindo. Se X mente, e Z expõe as suas mentiras, é óbvio que X está
dizendo a verdade já que Z o chamou de mentiroso. Todo o mundo ficou tão
cansado, tão cínico, tão desgastado com o processo democrático de
campanhas competitivas que ninguém acredita em alguma afirmação positiva
da verdade. As únicas afirmações que têm algum valor são as feitas com
energia negativa. Afirmações como "nós estamos no caminho certo",
"estamos melhores do que estávamos", "as coisas estão melhorando"
empalidecem em comparação com afirmações como "estamos marchando para o
inferno", "perdemos o rumo", "estamos sendo traídos por nossos líderes".
As pessoas desconfiam de qualquer coisa através da qual se possa ver.
Não se pode ver através de uma negativa. Uma negativa tem a vantagem de
parecer já ter visto através de tudo.
E assim Romney mentiu, e mentiu sem parar. Ele disse que Obama dobrou
o déficit. Obama reduziu ligeiramente o déficit. Ele disse que Obama
cortou US$ 716 bilhões do Medicare (sistema de assistência pública de
saúde para idosos). Obama reduziu o custo de reembolsos do Medicare; ele
não cortou nada. Romney disse que não estava propondo um corte de
impostos de US$ 5 trilhões. Mas ele prometeu cortar em 20% a taxa de
juros marginal, o que resultaria num corte de impostos de US$ 5
trilhões.
Espantosamente, Obama não expôs as mentiras de Romney em nenhum
momento do debate. Ele não refutou com firmeza e indignação a acusação
de cortar US$ 716 bilhões do Medicare. Não sustentou, em termos puros e
simples, que na verdade ele reduziu o déficit. Em vez disso, enredou-se
nos detalhes de várias políticas, o que simplesmente teve o efeito de
dar a impressão de que ele estava mentindo. O momento pior e mais
revelador de seu desempenho ocorreu quando houve um barulho forte nos
bastidores. Romney olhou para o lado por alguns instantes. Obama olhou
em volta, depois exibiu um enorme sorriso para a plateia, como se
estivesse pronto para recomeçar a brincadeira. O resultado foi que a
visão negativa de Romney, passada com vigor, ousadia, e agressividade
durante toda a noite, avançou desimpedida como um buldôzer.
Eu apoiei Obama desde a sua primeira disputa da Presidência. Ataquei
seus adversários, às vezes nos termos mais passionais. Escrevi com aguda
indignação sobre o estarrecedor racismo branco que paralisou sua
Presidência. Portanto, sinto-me no direito de falar francamente sobre o
caráter desse homem.
Seus admiradores dizem que ele é calmo. Eu digo que sua calma é, na
verdade, uma forma de paralisia emocional causada pelo sentimento de que
ele não é aceito, ou amado. Seus admiradores dizem que, como um astro
do basquete, ele se contém e espera até o último segundo do jogo para
fazer um arremesso de longe e vencer. Eu digo que ele é incapaz de agir
agressivamente porque, durante toda sua vida, ele esperou que a
estrutura do poder branco arrumasse tudo para ele. Por que ele deveria
se virar para Romney e questioná-lo, pessoal e vigorosamente, com as
evidências de que Romney estava mentindo como um sociopata? Por que
correr o risco de parecer um negro raivoso, quando a poderosa gente
branca que o sustentou durante toda sua carreira arrumará tudo após o
debate – neste caso, a mídia e as pessoas que orquestram sua campanha de
propaganda?
Um famoso professor de filosofia de Princeton, que é negro e,
ademais, um príncipe africano, disse-me certa noite numa festa onde
estávamos conversando: "Temo que Obama seja uma espécie de negro
profissional". Somente um negro poderia dizer isso em público; talvez
somente um príncipe africano poderia dizê-lo em público. Mas eu temo que
seja verdade. Se Obama perder esta eleição para uma fraude vazia,
perversa e enganosa como Romney – a fruta podre da estrutura de poder
branco –, ele não merecia tê-la vencido da primeira vez.
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* Jornalista e escritor americano. Nova Jersey
Fonte: Estadão on line, 07/10/2012
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