Marcelo Gleiser *

O que irrita os cientistas, ao menos os que são ateus, é a insistência dos que têm fé em crer em algo inacessível
No perene debate entre a ciência e a religião, algo que costuma irritar
os cientistas, ao menos aqueles que se consideram ateus, é a insistência
dos que têm fé em acreditar numa realidade paralela, inacessível à
razão. Vejamos isso num diálogo fictício entre um cientista ateu e uma
pessoa de fé bem versada nos avanços da ciência.
Cientista: "Uma causa sobrenatural não faz sentido: se for sobrenatural,
isto é, além dos limites do espaço e do tempo, das leis da natureza, do
material, como podemos saber da sua existência?
Afinal, o que existe tem de ser detectado. Caso contrário, essa
existência é uma fabricação, uma fantasia. Pior ainda, se essa causa se
manifestar naturalmente, através de uma 'visão' ou de um fenômeno
qualquer, vira uma causa natural, que pode ser estudada pelos métodos da
ciência. Ou seja, se algum deus existe, é impossível saber da sua
existência de forma concreta. E não existe outra forma de saber".
Pessoa de fé: "A coisa não é assim tão simples, preto ou branco, existe ou não existe.
Entendo que, dentro do método científico, algo precisa ser detectável
para que se comprove que é real. Ninguém sabia da existência de Urano
até sua detecção por William Herschel em 1781. Mas, antes da detecção,
Urano existia ou não? Claro que sim, mesmo que não soubéssemos disso. A
ciência não pode determinar com firmeza o que não existe, apenas o que
existe".
Cientista: "Mas você não pode, não deveria, comparar Deus a um objeto
celeste. Pelo que entendo, Sua existência não passa pelas leis da
natureza. Se passasse, Deus seria um fenômeno natural e deixaria de ter
essa transcendência de que vocês tanto gostam e que ajuda a crença. Se
Deus se 'esconde' numa realidade paralela, jamais fará parte do cânone
da ciência".
Pessoa de fé: "Sem dúvida, Deus jamais fará parte do cânone da ciência.
Esse é o seu problema, tudo tem de ser parte desse cânone. E eu já não
penso assim.
Existem coisas que estão além da ciência, coisas que a ciência não tem
como e nem deveria tentar explicar. A ciência tem um método bastante
claro de estudo, separando o objeto a ser estudado do todo. Esse método
supõe que a separação pode ser feita. Isso funciona muito bem no
laboratório, ou quando um astrônomo observa uma galáxia.
Mas como explicar, por exemplo, o Universo como um todo, a questão da
origem de tudo? Como olhar para o Universo como um objeto de estudo, se
não podemos sair dele?".
Cientista: "Esse é o problema mais complicado, que os filósofos gostam
de chamar de Primeira Causa, e os físicos, de 'condições iniciais'.
Verdade, temos sempre de supor um contexto para oferecer uma explicação.
Não temos ainda uma lei que explique como selecionar uma condição
inicial dentre as várias possíveis. Mas nem por isso devemos supor que a
explicação é sobrenatural, obra de uma entidade que não podemos saber
se existe. Que tipo de explicação é essa?".
Pessoa de fé: "Essa é a explicação pela fé, além da ciência".
Cientista: "Eu prefiro continuar tentando entender do meu jeito".
Pessoa de fé: "Boa sorte, que Deus te inspire".
Cientista: "Eu prefiro me inspirar sozinho mesmo".
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