Ferreira Gullar *

A religião, por lidar mais com crença que com razão, pode ser campo propício à indignação sem limites
Longe de mim o propósito de desconsiderar a crença religiosa das
pessoas, muito embora não seja eu religioso. E não a desconsidero porque
sei a importância que tem para elas. Se quisermos constatá-la, bastará
observar que os últimos séculos, marcados pelo domínio da ciência e do
pensamento objetivo, não lograram pôr fim à religiosidade dos povos que,
em sua maioria, mantêm-se fiéis às suas convicções religiosas.
Haverá para isso várias explicações, mesmo porque são muitas as
religiões que existem, algumas delas milenares, e cada uma com
características específicas e modo próprio de explicar a existência e
entender os valores espirituais. Creio, porém, que todas elas respondem a
uma necessidade humana fundamental: dar sentido à existência.
E aí reside a explicação de sua sobrevivência, muito embora a cultura
tenha mudado tanto e tenha o homem descoberto as leis que regem tanto a
matéria inorgânica quanto as dos organismos vivos, tanto as leis do
mundo infra-atômico quanto do macrocosmo.
Há, porém, algumas perguntas para as quais a ciência não tem resposta,
como, por exemplo, por que existe algo em vez de nada? Teve o mundo
começo ou ele sempre existiu? Que sentido tem a vida humana, se todos
nós acabamos para sempre? No entanto, para quem acredita em Deus, todas
essas perguntas estão respondidas. Ou sequer são formuladas.
No entanto, uma coisa é a consideração conceitual dessas questões e
outra é como elas se colocam na realidade. Agora mesmo assistimos, no
mundo islâmico, a sucessivas manifestações de fúria, como reação a um
vídeo idiota, que ridiculariza o profeta Maomé.
É compreensível que as pessoas que professam o islamismo tenham se
sentido agredidas e desrespeitadas no que mais prezam e cultuam. Não
obstante, a tradução dessa indignação em atos de vandalismo -incêndio de
embaixada, consulados, morte de pessoas- parece exceder todos os
limites razoáveis.
A verdade, porém, é que aconteceram e não se limitaram a um ou dois
episódios incontroláveis. De fato, essa indignação furiosa se estendeu
por várias semanas e por vários países. Mas por que o objetivo da fúria
são embaixadas norte-americanas, se o vídeo não foi obra do governo dos
Estados Unidos?
Parece impossível ter uma resposta única para essa pergunta. Uma coisa,
porém, parece óbvia: o ressentimento de certas camadas islâmicas contra
os norte-americanos. Isso é um fato, uma vez que o apoio dos Estados
Unidos a Israel é visto como uma demonstração de hostilidade, não apenas
ao povo palestino, como a toda a nação árabe muçulmana. Esse ódio aos
ianques os levaria a admitir que o vídeo terá sido fruto de uma
iniciativa governamental para desmoralizar o islamismo. Ninguém, com um
mínimo de lucidez, acreditaria nisso. Tampouco justificaria a fúria e o
número daqueles protestos.
A nosso ver, o que pode explicá-los é o fundamentalismo religioso que
transforma uma indignação razoável numa fúria sagrada implacável, sem
qualquer respeito pelo outro, desde que seja visto como antagonista a
minha crença. Destruir e matar, se feito em nome de Deus, estaria certo.
Isso me faz lembrar uma afirmação de Bin Laden, pouco depois da
destruição das Torres Gêmeas. O jornalista que o entrevistava,
perguntou-lhe se não estava errado um atentado como aquele que matou
milhares de inocentes, quando o Corão considera o assassinato de
inocentes um grave pecado. A sua resposta foi: "Os inocentes que
morreram eram os inocentes deles". Ou seja, segundo essa visão
fundamentalista, basta não acreditar em Alá para ser culpado. Só que ali
morreram, inclusive, muçulmanos.
Certamente, essa não é a opinião da maioria das pessoas que professam a
religião islâmica e que, respeitando a opção religiosa, admitem a
diversidade de crenças. Não são elas que vão para as ruas incendiar
embaixadas e matar infiéis. Mas a religião, nesse particular, por lidar
mais com a crença do que com a razão, pode ser campo propício à
indignação sem limites.
Aqui no meu canto, sem nada que me proteja da bala perdida, não tenho
dúvida de que avaliar os fatos com isenção e lucidez nos torna
modestamente mais humanos.
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* Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Poeta. Críico de arte. Biógrafo. Tradutor. Memoralista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo. Colunista da Folha.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/70475-aquem-da-razao.shtml 07/10/2012
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