UGO GIORGETTI*

Umutrans
Na língua portuguesa, a única expressão acima de 'terceira idade' no meu ódio é 'melhor idade', que, inclusive, embute um insulto
Estatísticas são frequentemente um enigma. Quer dizer que seremos, em dez anos, 1 bilhão? Isto é, de velhos, categoria em que me enquadro muito a contragosto e premido pelos fatos. Então seremos não sei quantos no Japão, seremos outro número exorbitante na Indonésia e, finalmente, chegamos ao nosso querido Brasil, onde já somamos perigosos 23,5 milhões. A partir disso, só uma poderosa imaginação para prever o que virá.
Não é tanto a profusão dos números exatos das estatísticas o que me
intriga, embora considere imprudente aceitarmos números definitivos num
mundo que muda a cada segundo, mas o que significam esses números. Sim,
estamos progredindo, nós os velhos, em direção a um fim menos pior,
concordo. Mas de que velhos estamos falando?
Como todas as estáticas abrangentes, sobretudo aqui no Brasil, essa
dos velhos suscita algumas perguntas que valem para muitas outras
pesquisas. Quando se fala em velhice e seus progressos, imediatamente
somos remetidos a imagens de velhos saltitando alegremente por calçadões
à beira- mar, fazendo exercícios em verdes parques, passeando com seus
cachorros, de bermuda e bonezinho. Serão esses os velhos brasileiros?
Serão esses os velhos que estão atingindo no Brasil, de forma digna e
vigorosa, os 70 anos? É apenas uma pergunta que faço a quem elabora as
estatísticas.
Não acredito numa melhora de vida uniforme, pelo simples fato de que
nada é uniforme, para não dizer minimamente igualitário, no Brasil. O
que tem a ver os velhos furando filas em caixas de supermercados,
felizes da vida, gozando de suas pequenas benesses, e a grande maioria
de velhos que nem sequer consegue andar até o supermercado mais próximo?
O que tem a ver os velhos que frequentam a Sala São Paulo com aqueles, a
imensa maioria, que fica atirada numa poltrona o dia inteiro, à mercê
de uma televisão que os desconecta ainda mais do pouco de realidade que
lhes resta?
Do jeito que as coisas são, não seremos problema algum, pelo menos no
Brasil. Aqui os velhos continuam morrendo cedo, se não de morte
propriamente dita, pelo menos da morte do espírito, e não preciso de
estatísticas para comprovar isso. Basta estar de olhos abertos. A saúde
pública, por exemplo, continua indigna, e é uma das famosas "questões
brasileiras" nunca resolvidas. Seremos, antes, uma desculpa para
justificar déficits e buracos no orçamento da saúde dos quais sabemos
muito bem as causas. Uma desculpa para continuarem supremamente
incompetentes, injustos e de uma ineficácia escandalosa.
Então não melhoramos em nada no geral? Melhoramos, concordo que
qualquer classe social se beneficiou, umas mais, outras bem menos, dos
progressos principalmente em saúde pública e alimentação nas grandes
cidades. Mas progredimos à brasileira, com as desigualdades brutais de
costume que as estatísticas ocultam e também, digamos, por inércia do
sistema. Seria verdadeiramente inconcebível que, ao atingir o patamar de
"grande economia mundial", nossa esperança de vida se mantivesse nos 50
anos, como era não faz muito tempo.
Na minha opinião de leigo, apenas de observador atento do que
acontece, somos, os velhos do Brasil, uma falsa ameaça. Quando as coisas
apertarem haverá um político a pedir que se aumente a idade de
aposentadoria, por exemplo. Haverá a costumeira, frágil, reação de
velhos dos bairros nobres, um pouco de barulho, alguma polêmica nos
jornais falados da TV, mas finalmente tudo vai se acertar. Da pior
maneira, é claro.
Estou sendo muito pessimista? Talvez, mas nisso estou exercendo
apenas uma prerrogativa dos velhos, não é mesmo? Por que eu seria
diferente? Velhos tendem a achar que tudo está errado, em geral pior do
que já foi. Pode ser que seja esse o caso. De qualquer maneira, de minha
parte, nunca irei a bailes da terceira idade, vou me policiar para
nunca furar uma fila dando cotoveladas, não visto bermuda na rua, não
tenho cachorro e acho as perspectivas da velhice profundamente
desagradáveis. Na língua portuguesa a única expressão que está acima de
"terceira idade" no meu ódio é "melhor idade", que, inclusive, embute um
insulto a quem tenha o cérebro com dimensão um pouco maior que a de um
milho.
Mas não sou chato. Para minha velhice quero apenas seguir tendo um
pouco de sorte. Sorte é a única coisa fundamental neste mundo para
seguir vivendo, fazendo coisas sem pensar muito em velhice, etc.
Principalmente no etc. E manter a elegância até quando der. Não a
física, que é impossível, mas a mental. Neste momento me ocorre, não sei
por quê, a figura do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, que,
metido sempre em impecáveis paletó e gravata, era um dos velhos mais
elegantes, afáveis, inteligentes e irônicos que já vi. Talvez tenha
pensado nele também por ter escrito um livro, cujo tema é a velhice, e
que, graças a Deus, li quando jovem. Não é exatamente uma leitura
agradável para velhos. Chama-se Diário da Guerra do Porco, e, suprema
ironia, na época foi classificado como ficção científica.
-------------------
* UGO GIORGETTI - É CINEASTA E COLUNISTA DO ESTADO - O Estado de S.Paulo
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,melhor-o-que,941560,0.htm 07/10/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário