JOSÉ HAMILTON RIBEIRO*
O repórter relembra os encontros que, há 43 anos, resultaram num texto memorável sobre a vida de Hebe Camargo
Era a segunda metade dos anos 60.
1. Loira oxigenada, gostosona, fogosa, seios enormes e bonitos
(depois ela os desbastaria um pouco), expansiva quase ao exagero, rindo
sempre, disponível - já logo disseram: ela tem programa na tevê porque
dá pro diretor. Galinha.
2. Vacilando no português, usando gíria do povão, voltada ao mundo
artístico e assim desligada da política, das notícias ditas
"importantes", do que acontecia no mundo - mataram: loira burra!
3. Vinda de meio humilde (seu pai, violinista, mexia com circo e
música caipira), despreparada, ingênua, aberta, espontânea, não teria
armas para sobreviver num meio - a tevê - habitado por gente boa, mas
também por bruxas e traíras, onde um não vacila na hora de empurrar o
outro pro buraco a fim de tomar seu posto. Não vai durar!
Era esse o panorama em redor de Hebe Camargo, no ano de 69 (1969),
quando a revista em que eu trabalhava - Realidade, antecessora da Veja -
"pautou" a ideia de se fazer um perfil de Hebe. Seu programa na TV
Record, então a grande emissora brasileira, com os instigantes festivais
de música, era produzido por uma equipe de craques (chamavam-na
internamente de Equipe A). No horário nobre, o programa atingia
audiências quase inimagináveis nos dias de hoje. Literalmente, parava a
cidade.
Previa-se que a história pessoal de Hebe na Realidade resultasse numa
reportagem picante, uma sucessão de amantes e gaviões, envolvimento com
homens por dinheiro, denúncia de tramas na diretoria e da influência
até de políticos para que ela mantivesse sua posição na tevê.
Realidade era um ninho de feras. Alguns de seus repórteres mais
famosos - Narciso Kalili, José Carlos Marão, Luís Fernando Mercadante,
Carlos Azevedo, João Antônio, Eurico Andrade, Roberto Freire (este um
perigoso mix de repórter com psiquiatra e psicanalista, que ele também
era) - poderiam, se fosse o caso, transformar o perfil de Hebe numa
sucessão de escândalos, amores de interesse, casamentos destruídos em
busca do troféu (a loira gostosona), futricas e fofocas do mundo sempre
efervescente, e às vezes perverso, da televisão.
Por questão de destino (como tinha acontecido antes, com minha ida
para a Guerra do Vietnã), a "pauta" Hebe foi atribuída a mim. Não sabia
nem como começar. Saí como um cachorro perdigueiro atrás de rastros e
sinais, para ver de que maneira poderia confirmar - ou aumentar - o lado
sombrio da vida de Hebe, que era o aspecto preferido da imprensa
escrita, sempre (então mais ainda) preconceituosa com o povo da tevê.
Antes da reportagem, já tinha tido um contato com Hebe. Assim que
cheguei da Guerra do Vietnã, no que foi uma surpresa para mim, passei
uns dias "famoso". Quase todos os programas de entrevista me convidaram
para falar da minha aventura como correspondente de guerra lá no fim do
mundo.
O programa da Hebe foi o primeiro a me cercar. Eu tinha que ir, e
ainda, me comprometer a não participar de nenhum outro programa naquela
semana. O programa da Hebe na Record era assim: exigia ser o primeiro e
ainda regulava a ida a outras tevês.

Alguns amigos me disseram:
- Não vá no programa da Hebe, é muito popularesco. E periga ela pedir
pra você mostrar a perna mecânica, dizendo: "Mas que gracinha!..."
Fui com um pé atrás (o bom). A parafernália de um programa de tevê ao
vivo - o da Hebe era ao vivo - é tão grande que só fui falar com a
apresentadora já no palco, o programa já no ar. Não houve condição para
vê-la antes, combinar alguma coisa. Foi tudo no "sufragrante".
Alguém ficou comigo ali no corredor esperando a hora e, quando Hebe
disse que o programa já tinha recebido gente de todo tipo, mas nunca
entrevistara um "herói de guerra" (tremi), a pessoa me empurrou para o
palco e me vi diante daquele povão (no auditório), eu assustado e
perdido.
- Com vocês, um herói: o repórter José Hamilton Ribeiro!
Eu não era nada daquilo. Herói é quem vai pra guerra defender seu
país e lá se machuca, ou quem arrisca a vida para salvar outro. Eu era
só um repórter, o fato de ter me ferido na guerra não me levava a
nenhuma condição de herói ou coisa parecida. Pensei comigo: esta
entrevista vai acabar mal...
Estava tenso e nervoso, no começo. À medida, porém, que as perguntas
se sucediam, passei a sentir-me seguro e confiante. Aquela mulher -
aquela bela mulher! - passava calor, passava carinho e a gente sentia
que tudo nela era, ou parecia, verdadeiro: suas perguntas, sua reação
espontânea, o modo como expressava o sentimento ali, da hora, os votos e
as aleluias que desejava pra gente.
Enfim, a entrevista transcorreu de maneira agradável, senti-me
tratado com dignidade e, toda vez que a espontaneidade dela levava a um
assunto mais íntimo ou delicado, ainda assim Hebe o fazia com
naturalidade e visível boa intenção.
Na semana que se seguiu ao programa da Hebe, em todo lugar que eu ia,
faziam referência a ele: dava impressão de que a cidade toda tinha
visto.
Uma reação diferente tive num programa de auditório, no Rio de
Janeiro. Programa do tipo que tem uma pessoa (que não aparece na tevê)
comandando o auditório:
- Agora bate palma!
- Agora grita, só grita.. Mais alto, mais alto!
- Agora grita e bate pé.
Enfim, um programa animado... O apresentador deixou para o fim esta pergunta:
- Zé Hamilton, você foi na guerra, saiu ferido, mas voltou e continua trabalhando. É difícil ser repórter de uma perna só?
Respondi (já tinha a resposta na ponta da língua):
- Bem, ser repórter com uma perna só é mais difícil do que com duas, mas é mais fácil do que com quatro...
Ter estado no programa da Hebe, como entrevistado, não ajudou muito
na reportagem que eu devia fazer para a Realidade. Afinal, tudo ali fora
público, e uma boa reportagem é justamente aquela que mostra coisas que
os outros não viram.
Saí a campo, atrás de pessoas e fatos que ajudassem a contar aspectos
da história (que eventualmente as pessoas não conheciam) daquela mulher
de sucesso, que tanta inveja causava às mulheres (não a todas) e tanto
desejo provocava nos homens. Procurei conhecidos, parentes, colegas e,
principalmente, pessoas que não gostavam dela ou tinham alguma coisa
grave a contar sobre ela, que eu pudesse confirmar.
Ó, andei e rolei quase um mês remoendo o assunto Hebe, procurando pelo em ovo.
Afinal, a reportagem foi publicada. Quem esperava uma história picante, cheia de traições e trocas de cama, esperou em vão.
Vista hoje, 43 anos depois, aquela peça precisaria de ajustes, aqui e ali. No seu conteúdo, porém, poderia ser mantida.
Hebe Camargo, aquela loira oxigenada, de seios enormes e bonitos,
sorriso fácil e braços sempre abertos, era uma pessoa verdadeira,
autêntica, espontânea, natural, com enorme capacidade de observação e
apreensão dos fatos, dotada de inteligência fina e instintiva que fazia
com que ela se destacasse no meio em que trabalhava e vivia. Um ser
especial, iluminado.
Não disse, mas gostaria de ter dito: ela é a fada boa da televisão
brasileira, será a sua rainha e brilhará perante as câmeras - contando
apenas com seu talento e sua energia, que parecem inesgotáveis - até
morrer de repente.
---------------------
* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,torciam-pra-ela-dar-errado-,941583,0.htm 07/10/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário