Morre
o cachorro da mulher do padeiro. Em uma tentativa de fazer o padre de
Taperoá enterrar o animal “em latim”, João Grilo, empregado do padeiro,
argumenta que o cão era muito inteligente e que “botava uns olhos bem
compridos” para o lado da igreja antes de morrer. O que só poderia
significar que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como
cristão. Entendendo a situação, prossegue a personagem, o patrão
acrescentou ao testamento do animal dez contos de réis para o padre e
três para o sacristão. A cena termina, é claro, com o animal
“sepultado”.
É na base da artimanha
que João Grilo, personagem da peça Auto da Compadecida, do paraibano
Ariano Suassuna, consegue tudo, ou quase tudo. Ele tenta negociar até
mesmo o destino pós-morte com a Virgem Maria. As peripécias sempre
contam com a ajuda do parceiro Chicó. Da mesma forma, age outra dupla da
literatura de Suassuna: Caroba e Pinhão em O Santo e a Porca. As
manobras conduzem a ação dramática e são estudadas na dissertação de
mestrado “O arlequim nordestino: as personagens-palhaço de Ariano
Suassuna”, de Romina Quadros Borba, apresentada ao departamento de Artes
Cênicas do Instituto de Artes (IA), sob orientação da docente Larissa
de Oliveira Neves Catalão.
Além de
analisar as peripécias das duplas, a dissertação aborda a estética
medieval e renascentista na cultura popular brasileira expressa na obra
teatral de Suassuna. “Os elementos presentes no universo do autor
abarcam um leque de manifestações da cultura e do teatro medievais –
como as cavalhadas, as festas religiosas, o teatro de rua, o auto, a
farsa, o romance de cavalaria, a lenda do Santo Graal”, detalha a
pesquisadora. A meta do estudo é avaliar como se dá essa transposição.
Romina,
que também é professora de história na rede pública de ensino em
Campinas, sempre traz as referências dos diferentes períodos trabalhados
na dissertação. “A cultura popular nordestina é marcada pelo
medievalismo ibérico. As manifestações, que já vêm da religiosidade
medieval, com o passar do tempo vão se modificando”, explica.
Os
“palhaços” de Suassuna são derivados do Arlequim da Commedia dell´Arte.
Pela própria etimologia da palavra, são aqueles que vivem “aprontando”,
são diabinhos, faunos ou sacis pela livre tradução de Romina.
Tornaram-se não só personagens tradicionais na Comédia dell’Arte como
figuras do circo. “As duplas de palhaço, o palhaço e a besta, um esperto
e um ‘abobado’, aparecem sempre no circo”.
Mas,
antes de trazer à tona o teatro popular italiano, a pesquisadora foi
buscar as origens das personagens na dramaturgia romana de Terêncio e
Plauto (230 a. C. 180 a. C.), especialmente Plauto. A temática dos
irmãos gêmeos separados na infância de Os Dois Menecmos é recuperada por
Shakespeare em A Comédia dos Erros, assim como Aulularia ou A Comédia
da Panela, serve de inspiração para Moliére em O Avarento, e para
Suassuna em O Santo e a Porca.
A
dupla de criados – os “personagens-narradores” –, que consegue driblar
os patrões, vem desde Plauto, representando uma forma de justiça social
“já que os pobres ‘enganam’ os mais ricos”. Suassuna sempre acrescenta o
tempero de sua terra. “As personagens se ambientam dentro do contexto
nordestino. Um criado do Moliére ou de Plauto ou de Shakespeare serve
como modelo para Ariano, mas não é como João Grilo, Chicó ou mesmo a
Caroba de O Santo e a Porca”. Inspirada nas criadas de Moliére e
Shakespeare, Caroba é uma mocinha nordestina, mas que tem um noivo que
anda com um facão para se proteger, “que é um costume do sertão”.
Romina
também chama a atenção para o trecho no qual o patrão de Caroba tenta
lhe oferecer como pagamento um pedaço de jerimum, mas ela não aceita
porque quer o dinheiro. “Mudam-se a estética, a ambientação e o contexto
dessas personagens”, salienta.
Dentro
da nova configuração que as personagens assumem na obra de Suassuna,
Romina cita mais exemplos. O príncipe do romance A Pedra do Reino é um
deles: “um rapaz castanho que não tem o padrão nórdico loiro, de olhos
azuis”. Ou mesmo Jesus, no Auto da Compadecida, que surge como negro.
João Grilo, que saiu da literatura de cordel é chamado sempre de
“amarelo”, que seria uma referência à mestiçagem que ocorre no Nordeste
e, também, ao aspecto doentio das pessoas que vivem com doenças
endêmicas.
“Tentei trabalhar com essa
ambientação dentro da cultura popular e dentro da ideologia estética
proposta por Suassuna no movimento Armorial”. O resgate das tradições
nordestinas proposto por Suassuna, avalia, é iniciado justamente quando
há uma “invasão da cultura anglo-americana e a ampliação da cultura de
massa, da tecnologia e da tecnocracia”.
Segundo
Romina, o autor faz críticas a um “complexo de vira-lata” do
brasileiro, evidenciando a beleza dos povos morenos e latinos numa
espécie de antropofagia “não oswaldiana”, mas nos moldes de outros
autores como Gilberto Freyre ou Silvio Romero, que servem de base para
ele.
Do abrangente trabalho de
Suassuna, Romina ainda garimpou outras referências do medievalismo como o
teatro de mamulengo em A Pena e a Lei. O teatro de fantoches também tem
raiz na Idade Média, quando a Igreja utilizava os bonecos para difundir
seus preceitos. Nesta peça, o gesto dos atores faz referência aos
bonecos e apenas no terceiro ato eles recuperam o movimento natural dos
seres humanos.
Artimanhas
As
artimanhas das personagens-palhaços são descritas na dissertação
paralelamente à contextualização da cultura nordestina e medieval. De
acordo com Romina, todas as outras personagens das peças estão
subordinadas a tais peripécias.
Em O
Santo e a Porca, a pesquisadora destaca uma passagem de Caroba, que
tranca dois casais em dois quartos, para obrigar o casamento de ambos.
“Caroba quer o casamento da jovem patroa com o rapaz que ela ama e da
tia solteirona com o velho que quer se casar com a sobrinha. Ela faz a
maior confusão e, no fim, o pai da moça é obrigado a fazer os casamentos
porque senão a moça e a tia vão ficar ‘mal faladas’”.
Transgredir
uma ordem estabelecida acabaria transformando as personagens em heróis
populares. “Eles fazem coisas que são condenáveis, mas ganham a simpatia
das pessoas. O João Grilo, por exemplo, contesta até o cangaceiro. Ele
só não contesta Jesus e a Virgem Maria porque até o diabo ele contesta. É
uma personagem que lutava pela sobrevivência através dessas
artimanhas”.
O que leva a
pesquisadora aos autores trabalhados na bibliografia da dissertação,
entre eles Lígia Vassalo e Mikhail Bakhtin, além do próprio Suassuna,
para os quais, segundo Romina, “o riso é sinal de inteligência”. ”Estas
personagens, que agem por vias tortas, trazem uma contestação, uma
crítica social ou o riso de libertação que remete à transgressão
possível na cultura medieval”.
Publicação
Dissertação: “O arlequim nordestino: as personagens-palhaço de Ariano Suassuna”.
Autora: Romina Quadros Borba
Orientadora: Larissa de Oliveira Neves Catalão
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Autora: Romina Quadros Borba
Orientadora: Larissa de Oliveira Neves Catalão
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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Texto: PATRÍCIA LAURETTI
Fotos: Antoninho Perri / Divulgação
Edição de Imagens: Luís Paulo Silva
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/541/o-popular-e-o-medievalismo-em-suassuma
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