
Onfray diz que deixou de ser funcionário público
porque tinha livros e conferências a fazer
e queria tornar a filosofia popular
Será que, desta vez, ele retorna ao Brasil? A dúvida alimenta a
conversa de quem conhece o filósofo francês Michel Onfray e já foi
surpreendido por suas desistências de última hora. Foram várias. A mais
recente ocorreu há três anos, quando ele viria falar em Porto Alegre,
São Paulo e no Rio. Ao Valor Onfray confirma que estará, sim, na capital paulista, na quarta-feira, para participar do seminário Fronteiras do Pensamento (www.fronteirasdopensamento.com.br).
Será sua segunda vez no país e o encontro promete, já que ele vai
falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais
polêmico: "Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne" (O
crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por
aqui. Lançado em 2010, o trabalho é um violento ataque à psicanálise e
ficou meses na lista dos mais vendidos, rendendo muita falação. A
crítica mais notória partiu da filósofa Elisabeth Roudinesco, que acusou
a obra de "populista, abjeta e delirante" e seu autor de "guru que
escreve demais e sem refletir".
Professor secundário durante anos, Onfray deixou o ensino público há
uma década para fundar, ao lado de 20 amigos, a Universidade Popular de
Caen, na região francesa da Normandia. Suas aulas, abertas e gratuitas,
são depois veiculadas pela rádio France Culture (www.franceculture.fr)
e podem ser acompanhadas também pela internet. "Larguei meu trabalho de
funcionário público porque tinha livros a escrever, conferências a
fazer e queria tornar a filosofia popular, como nos incitou a fazer
Diderot [1713-1784]", afirma.
Aos 53 anos, com cerca de 60 livros publicados, Onfray faz parte do
grupo de filósofos franceses mais midiáticos, conhecidos por popularizar
a filosofia e traduzidos em vários países. No Brasil, sua obra vem
sendo lançada pela editora WMF Martins Fontes - o mais recente é "Os
Ultras das Luzes - Contra-História da Filosofia 4" (trad. Claudia
Berliner; 324 págs., R$ 62,00). Se os bate-bocas e críticas o acompanham
por toda parte, ele também faz questão de responder com a mesma
virulência: "Sinceramente, estou me lixando para o que os intelectuais
pensam do meu trabalho".
"Depois da queda do Muro de Berlim,
eu
proponho alternativas:
o hedonismo em matéria de moral
e o anarquismo
em termos políticos"
Valor: Seus livros falam de uma temática
contemporânea, que contempla da alimentação à estética. O senhor já
escreveu sobre bioética, arte, política, história da filosofia e
erotismo. Na sua opinião, quais são os temas mais inquietantes para as
pessoas nos dias de hoje?
Michel Onfray: Tudo se resume a uma coisa só: como
viver no mundo sem ter uma bússola? Deus está morto, Marx também. O
capitalismo se comporta muito bem, o niilismo triunfa e a maioria das
pessoas busca uma ética e uma política de substituição. Depois de 1989 e
a queda do Muro de Berlim, eu proponho alternativas: o hedonismo em
matéria de moral e o anarquismo em termos políticos.
Valor: Qual é a melhor maneira de definir o senhor politicamente?
Onfray: Sou um socialista libertário, um leitor
apaixonado de Proudhon, o defensor de uma esquerda libertária, como
Camus. Detesto Marx e os marxistas. No século XX, o software marxista,
repercutido via Sartre, Althusser, Zizek, Badiou, continuou fascinado
pelo terror de 1793, por Robespierre e sua guilhotina, por Saint-Just,
sedento de sangue, a pretexto da "virtude". Eles aí encontram desculpas
para o Gulag [arquipélago Gulag, conjunto de campos de trabalho forçado
na Sibéria, durante a ex-União Soviética] argumentando que os Estados
Unidos são um país de alguma forma totalitário. Detesto tanto o
liberalismo e a direita quanto essa esquerda que se protege à sombra dos
miradores. Minha esquerda é libertária. Ela se alimenta de
anarco-sindicalismo, de anarquismo municipal, de pós-anarquismo. Se você
quer me definir, sou um homem de esquerda livre. Ou um homem livre, de
esquerda.
Valor: Com frequência seus textos falam sobre
sua vida, sobre a pobreza e a miséria afetiva da infância. Isso ainda o
incomoda? Como tudo isso determinou seu trabalho?
Onfray: Nietzsche revolucionou a filosofia ao
escrever que ela não era nada mais do que a autobiografia, a confissão
de seu autor. A filosofia institucional passa, evidentemente, essa
verdade sob silêncio e persiste a declamar que o filósofo é um cérebro
sem corpo, que alimenta um comércio desinteressado com ideias puras! Eu,
de minha parte, mostro como a ideia genial de Nietzsche é uma verdade
epistemológica, tomando como exemplo o que conheço melhor: minha vida.
Freud
no seu consultório: Onfray vem ao Brasil para
falar de seu livro mais
polêmico, em que faz
um violento ataque à psicanálise
Valor: Mas a filosofia pode curar ou apenas ajuda a suportar a angústia?
Onfray: As duas coisas. Tudo depende da filosofia.
Há filosofias diversas e múltiplas. Assim como há filósofos do
conhecimento, da descrição pura, da estética etc. Alguns pensadores
ajudam a viver, a bem viver, a melhor viver. Depois de 60 livros eu
tento inscrever meu trabalho nessa linhagem. Não podemos viver de acordo
com a "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, ou o "Ser e Tempo", de
Heidegger. Mas podemos viver conforme as "Cartas a Lucilius", de Sêneca,
os "Ensaios", de Montaigne, ou "Assim Falava Zaratustra", de Nietzsche.
Valor:
Um dos mais conhecidos neurocientistas brasileiros, Miguel
Nicolelis, diz que atualmente a humanidade é dominada por três
esquizofrênicos que ouviam vozes: Jesus Cristo, Maomé e Abraão. O que
pensa a esse respeito?
Onfray: Não conheço o trabalho desse homem valioso,
mas peço ao céu (que é vazio de deuses...) para que ele fale francês (é
uma pena que eu não fale sua bela língua). Assim eu poderia convidá-lo
para me acompanhar ao restaurante, onde festejaremos essa comunhão de
espírito.
Valor: O senhor fundou a Universidade Popular de
Caen para dar aulas abertas a todos e, depois, a Universidade Popular
do Gosto, em Argentan. No que ela consiste e que resultados obteve?
Onfray: Eu propus celebrar os cinco sentidos num
lugar que é um "jardim" de reinserção social. Sob uma tenda, organizo
jornadas consagradas a escritores, filósofos e nós celebramos com
conferências, concertos, demonstrações culinárias e refeições festivas.
Os cinco sentidos são mobilizados para construir uma conexão social
hedonista. A última sessão consagrada a Camus [tema do mais recente
livro de Onfray: "L'Ordre Libertaire - La Vie Philosophique d'Albert
Camus", A ordem libertária - a vida filosófica de Albert Camus], juntou
600 pessoas e nós servimos 400 refeições em Argentan, cidade onde nasci,
onde moro e onde organizo as jornadas.
"A Europa morreu desde que
os burocratas assim tentaram,
depois da Segunda Guerra.
Já a Primeira a tinha sangrado em vão"
Valor: Como analisa a moda da gastronomia que corre o mundo nos últimos anos? Será mesmo possível democratizá-la?
Onfray: Existe, provavelmente, uma moda que ilustra o
triunfo do narcisismo contemporâneo. Ela parte da suposição de que nós
podemos nos dar prazer, celebrar nosso corpo e que conseguimos nos
bastar a nós mesmos. Mas a gastronomia pode também ser popular, celebrar
o convívio, ser festiva, alegre e compartilhada. Não consigo imaginar a
gastronomia como uma ocasião de nos separarmos uns dos outros num
exercício narcísico e ególatra - vejo-a como um momento de festa
generalizada. A mesa é uma metáfora política: diz-me o que comes e eu te
direi quem és... Charles Fourier, um socialista utópico do século XIX, é
um modelo para mim.
Valor: Por que o senhor construiu sua carreira fora de Paris?
Onfray: Paris é o lugar de todos os compromissos, de
todos os poderes, e, portanto, o lugar de todas as infâmias. Os
"Onfray" são descendentes dos vikings que chegaram à Normandia em meados
do século X. Meus ancestrais estão nessa região da França há um
milênio. Eu nasci, vivi, escrevi meus livros e serei enterrado em
Argentan. Não há nada em Paris que faça que eu participe de seus
bacanais de paixões tristes.
Valor: Como avalia a crise europeia? Que futuro espera o continente?
Onfray: A Europa morreu desde que os burocratas
assim tentaram, depois da Segunda Guerra. Já a Primeira Guerra a tinha
sangrado em vão. A Europa nasceu com a conversão do imperador
Constantino ao cristianismo, no começo do século IV. E começou seu
declínio quando Luis XVI foi decapitado, durante o Terror de 1793. Ela
decaiu mais ainda, depois. Já perdeu seu lugar no concerto das
civilizações planetárias e está sendo chamada a integrar o cemitério de
civilizações defuntas... O barco segue seu curso, tomemos champanhe, mas
sabendo que ele vai a pique. A vocês, o futuro!

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