quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Viagem no oceano da fé

Card. Gianfranco Ravasi*

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O homem e a fé. Procuremos adentrar-nos neste vasto horizonte. A nossa será apenas uma breve navegação num oceano de mil rotas. «Em Deus descobrem-se sempre novos mares quanto mais se navega», afirmava frei Luis de León, escritor místico espanhol contemporâneo de Santa Teresa d’Ávila e S. João da Cruz. Orientar-nos-emos para o coração da fé cristã que é não só o «grande código» da civilização ocidental (sem ela, por exemplo, não existiria a “Divina Comédia”) mas é a alma da nossa espiritualidade e está indubitavelmente na raiz do mais alto e amplo sistema teológico e ideológico elaborado pela humanidade.

A fé é a primeira do tríptico das chamadas «virtudes teologais». Este adjetivo remete-nos obviamente para Deus, no sentido subjetivo (a fé é a virtude dada pelo próprio Deus, infundida por ele, alimentada, sustentada, provada e joeirada) e em sentido objetivo (é a virtude que tem por objeto Deus, o seu mistério, a sua palavra e a sua obra). É, em todo o caso, à luz da revelação e da razão que nós nela nos adentrarmos, procedendo segundo um ritmo binário que não é dialético e antitético, mas harmonioso, de contraponto, de dueto. (...)
Avançaremos (...) por duplas temáticas. A primeira, fundamental, é a que une fé e graça. São duas estrelas que constituem o coração da constelação do crer. Acende-se em primeiro lugar a graça, chàris no grego de S. Paulo, o nosso maior ponto de referência neste itinerário. O vocábulo, que permaneceu nos nossos «caro, carícia, caridade» ou no inglês «charm» e no francês «charme», expressa amor, fascínio, esplendor. É o aparecimento de Deus na noite da alma; ele não é um imperador impassível relegado ao céu dourado da sua transcendência. «Está à porta e bate», como diz o Apocalipse (3, 20), rasga a nossa solidão, colocando-se antes de todos na estrada da história, tecendo um diálogo que é antes de tudo uma revelação do seu ser e da sua vida, dos seus pensamentos e dos seus projetos. Escreve Paulo: «Isaías atreve-se, mesmo, a dizer: [Eu, o Senhor] Deixei-me encontrar pelos que não me procuravam,

manifestei-me aos que não perguntavam por mim» (Romanos 10, 20; Isaías 65, 1). No princípio é, então, o amor divino que interpela o homem. É este o sentido do brado final do Diário de um pároco de aldeia (1936) de Georges Bernanos: «Tudo é graça!».

Iluminado pela graça-chàris, o homem responde com a sua liberdade que pode gerar uma recusa ou uma adesão. E a adesão é precisamente a fé, pìstis em grego, semelhante a braços abertos que acolhem a graça-amor, escuta de uma revelação divina e resposta na oração. É um apertar a mão de Deus que nos é oferecido enquanto estamos imersos no nosso limite criatural ou colapsamos nas areias movediças lamacentas do mal e do pecado. Este abraço transforma-nos e transfigura porque Deus infunde em nós a sua própria respiração de vida, o seu “espírito”.

Iluminadoras são também as palavras de Paulo aos Romanos: «Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adotivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!» (8, 15). Igualmente significativa para ilustrar a irrupção do divino em nós, com a sua energia e eficácia, é a parábola da semente deposta no campo, narrada por Jesus (Marcos 4, 26-29). O agricultor está na cama e dorme numa longa noite de inverno ou está em algum outro lugar, ocupado num dia primaveril ou no início do verão. Entretanto aquela semente gera, por si só, um caule e uma espiga repleta de grãos. A fé é reconhecer que existe uma presença invisível que opera na história, é saber partilhar os tempos de crescimento, é acolher com alegria esse dom que faz viver uma existência totalmente nova.

Há no entanto outra dupla temática respeitante à primeira virtude teologal, a que vincula fé e confiança. (...) O primeiro Credo cristão, citado por Paulo, diz assim: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze» (1 Cor 15, 3-5), Mas a fé, por causa deste conteúdo vital, postula uma reação “subjetiva”, isto é, uma adesão; para lá do “discurso” é um “percurso” de vida: é a confiança, é o abandono ao Revelador e Redentor, é um confiar-se a ele e aos seus braços paternos.

A fé tem, assim, também uma dimensão de risco, de entrega de si, na consciência de que o horizonte misterioso de Deus é bem mais alto que o nosso, como já sugeria o Senhor pela boca de Isaías: «Os meus planos não são os vossos planos, os vossos caminhos não são os meus caminhos - oráculo do Senhor. Tanto quanto os céus estão acima da terra, assim os meus caminhos são mais altos que os vossos, e os meus planos, mais altos que os vossos planos» (55, 8-9). (...)

Este entrelaçamento entre fé e confiança, entre verdade e risco cria outro par temático, entre fé e razão, que constitui também o título de uma encíclica de João Paulo II, Fides et ratio (1998), dedicada precisamente a este contraponto harmonioso, a este voo no céu do mistério divino com as duas asas da fé e da racionalidade, para usar a imagem com que abre este texto papal.
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Duccio (det.)

Um nexo particularmente caro a Bento XVI, que muitas vezes o sublinhou explicitamente, ou o iluminou em filigrana em muitos dos seus textos e reflexões. Santo Agostinho era, a este respeito, incisivo: «Quem crê, pensa, e pensando, crê. A fé, se não é pensada, é nula». O crente autêntico é posto sobre uma crista cortante e delicada. É fácil, efetivamente, deslizar para uma fé que seja apenas abandono confiante, quase cego, fugindo de toda a interrogação, cancelando qualquer rumor do pensamento, fazendo empalidecer e definhar a religião num progressivo sentimentalismo devocional. Contudo também é perigoso avançar pela outra vertente, a de uma racionalidade de tal maneira absorvente que reduz a religião a um conjunto de teoremas, a um sistema especulativo no qual tudo se ordena, a uma geometria teológica que não deixa espaço ao mistério e ao transcendente.

A este respeito é sugestiva a definição de fé que nos é oferecida por aquela deslumbrante homilia neotestamentária que é a Carta aos Hebreus: «A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se veem» (11, 1).

De um lado está o confiar-se seguramente à revelação divina, à esperança que cintila: não é por acaso que se fala de “fundamento”, de base em que se apoiar, como sugere o próprio verbo hebraico do “crer”, que se tornou no nosso amen, que indica um “fundar-se” sobre a palavra e sobre a presença do Outro divino, um procurar nele estabilidade e segurança numa relação interpessoal.

Por outro lado a fé é “prova”, é como traduzia a Vulgata latina “argumentum” (...). «A fé se não é pensada, argumentada, é nula», era, como vimos, a convicção de Agostinho. E este grande Padre da Igreja e génio da humanidade é talvez – com Tomás de Aquino – o exemplo mais alto do equilíbrio entre fé e razão. A força extraordinária do seu pensamento, da sua intuição, da sua investigação conjugava-se continuamente com a intensidade da sua fé, de tal maneira que muitas vezes os seus textos são marcados por uma teologia orante: a sua análise é construída literariamente como se fosse dirigida a um “Tu”, é uma constante interpelação, é um apelo dirigida a Deus, objeto dessa procura.

Uma última dupla ideal que queremos propor é o da fé-obras. (...) A uma determinada conceção judaica que exaltava a função salvífica das obras da Lei, introduzindo quase um “salvar-se” da parte do homem, Paulo opõe um “ser-se salvo” através da fé que acolhe a graça divina salvífica. Exemplar é a declaração reiterada três vezes num único versículo da Carta aos Gálatas: «Sabemos, porém, que o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada» (2, 16). As obras não são a causa mas o fruto da salvação, como na mesma carta se declara: «É este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (5, 22-23). 

É portanto necessária também para S. Paulo a presença das obras como sinal da autenticidade da fé. Será isso que S. Tiago, mais ligado à tradição judeo-cristã, realçará na sua Carta, dando quase a impressão de corrigir Paulo, quando na realidade sublinha o relevo do empenho existencial moral para não reduzir a fé a simples adesão intelectual ou sentimental ou a mera experiência intimista.

Merecem ser escutadas as suas palavras, que revelam acentos seguramente diferentes relativamente aos paulinos mas não em contraste com eles: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: «Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem. Também o creem os demónios, mas enchem-se de terror.» Queres tu saber, ó homem insensato, como é que a fé sem obras é estéril? Não foi porventura pelas obras que Abraão, nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaac? Repara que a fé cooperava com as suas obras e que, pelas obras, a sua fé se tornou perfeita. E assim se cumpriu a Escritura que diz: Abraão acreditou em Deus e isso foi-lhe contado como justiça, e foi chamado amigo de Deus. Vedes, pois, como o homem fica justificado pelas obras e não somente pela fé.» (Tg 2, 14-24).

É também nesta linha que se compreende o equilíbrio que deve entrecorrer noutro par, o da fé e religião. A primeira é adesão pessoal, a segunda pode ser entendida como prática externa, manifestação ritual e social. Certamente se pode compreender o valor paradoxal da oração formulada pelo maior teólogo protestante do século XX, Karl Barth: «Senhor, livra-me da religião e dá-me a fé!».

De facto a religiosidade pode reduzir-se a convenções, comportamentos exteriores, ritualismo, antropologia cultural, e a este propósito os profetas bíblicos foram inexoráveis a combater qualquer confusão entre religião e fé. Todavia é indiscutível que a fé implica e envolve a pessoa na sua integralidade e, portanto, compreende igualmente as escolhas sociais, atitudes visíveis, produz estruturas, exprime-se em ritos e tradições, torna-se religião porque espírito e corpo são intimamente ligados, operam e comunicam entre si. (...)

[Entre as várias representações artísticas da fé] escolhemos a tela “A Fé”, executada pelo grande pintor flamengo Jan Vermeer em 1675 e agora conservada no Metropolitan Museum de Nova Iorque.

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 Vermeer

Vestida de branco, segundo os cânones alegóricos codificados, mas com uma sobreveste azul, a Fé é uma mulher com a mão direita sobre o coração, o olhar levantado ao alto para uma luz irradiante do infinito, o pé sobre o globo terrestre, enquanto que no pavimento uma maçã e uma serpente esmagada por uma pedra incarnam o pecado e satanás derrotados pela fé em Deus. 

O braço esquerdo pousa sobre uma mesa que é, no entanto, semelhante a um altar, sobre o qual se apoiam o cálice eucarístico, o livro das Escrituras e o crucifixo, o mesmo Cristo crucificado que domina também a parede que está atrás da Fé, expressão do próprio coração do Credo cristão.

Com os olhos nesta imagem, deixemos serpentear até ao fim uma pergunta inquietante de Cristo, pergunta que se transforma num apelo. No Evangelho de Lucas Jesus lança esta interrogação que talvez nos atinja mais do que aos interlocutores de então: «Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» (18, 8). O fio interminável da fé, iniciado com os próprios primórdios da história humana, parece aos nossos dias tornar-se cada vez mais frágil. E então Cristo continua a repetir, como na última ceia da sua vida terrena, entre as paredes do Cenáculo, um convite que ressoa ainda hoje com o mesmo frémito: «Credes em Deus; crede também em mim» (João 14, 1).
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 *Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura
In L'Osservatore Romano (26.7.2012)
© SNPC (trad.) | 11.10.12

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