Card. Gianfranco Ravasi*
O homem e a fé. Procuremos adentrar-nos neste vasto
horizonte. A nossa será apenas uma breve navegação num oceano de mil
rotas. «Em Deus descobrem-se sempre novos mares quanto mais se navega»,
afirmava frei Luis de León, escritor místico espanhol contemporâneo de
Santa Teresa d’Ávila e S. João da Cruz. Orientar-nos-emos para o
coração da fé cristã que é não só o «grande código» da civilização
ocidental (sem ela, por exemplo, não existiria a “Divina Comédia”) mas é
a alma da nossa espiritualidade e está indubitavelmente na raiz do
mais alto e amplo sistema teológico e ideológico elaborado pela
humanidade.
A fé é a primeira do tríptico das chamadas «virtudes
teologais». Este adjetivo remete-nos obviamente para Deus, no sentido
subjetivo (a fé é a virtude dada pelo próprio Deus, infundida por ele,
alimentada, sustentada, provada e joeirada) e em sentido objetivo (é a
virtude que tem por objeto Deus, o seu mistério, a sua palavra e a sua
obra). É, em todo o caso, à luz da revelação e da razão que nós nela
nos adentrarmos, procedendo segundo um ritmo binário que não é
dialético e antitético, mas harmonioso, de contraponto, de dueto. (...)
Avançaremos (...) por duplas temáticas. A primeira,
fundamental, é a que une fé e graça. São duas estrelas que constituem o
coração da constelação do crer. Acende-se em primeiro lugar a graça, chàris
no grego de S. Paulo, o nosso maior ponto de referência neste
itinerário. O vocábulo, que permaneceu nos nossos «caro, carícia,
caridade» ou no inglês «charm» e no francês «charme», expressa amor,
fascínio, esplendor. É o aparecimento de Deus na noite da alma; ele não
é um imperador impassível relegado ao céu dourado da sua
transcendência. «Está à porta e bate», como diz o Apocalipse (3, 20),
rasga a nossa solidão, colocando-se antes de todos na estrada da
história, tecendo um diálogo que é antes de tudo uma revelação do seu
ser e da sua vida, dos seus pensamentos e dos seus projetos. Escreve
Paulo: «Isaías atreve-se, mesmo, a dizer: [Eu, o Senhor] Deixei-me
encontrar pelos que não me procuravam,
manifestei-me aos que não perguntavam por mim» (Romanos 10, 20; Isaías 65, 1). No princípio é, então, o amor divino que interpela o homem. É este o sentido do brado final do Diário de um pároco de aldeia (1936) de Georges Bernanos: «Tudo é graça!».
Iluminado pela graça-chàris, o homem responde com a sua liberdade que pode gerar uma recusa ou uma adesão. E a adesão é precisamente a fé, pìstis
em grego, semelhante a braços abertos que acolhem a graça-amor, escuta
de uma revelação divina e resposta na oração. É um apertar a mão de
Deus que nos é oferecido enquanto estamos imersos no nosso limite
criatural ou colapsamos nas areias movediças lamacentas do mal e do
pecado. Este abraço transforma-nos e transfigura porque Deus infunde em
nós a sua própria respiração de vida, o seu “espírito”.
Iluminadoras são também as palavras de Paulo aos
Romanos: «Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a
encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos
adotivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!» (8, 15). Igualmente
significativa para ilustrar a irrupção do divino em nós, com a sua
energia e eficácia, é a parábola da semente deposta no campo, narrada
por Jesus (Marcos 4, 26-29). O agricultor está na cama e dorme numa
longa noite de inverno ou está em algum outro lugar, ocupado num dia
primaveril ou no início do verão. Entretanto aquela semente gera, por
si só, um caule e uma espiga repleta de grãos. A fé é reconhecer que
existe uma presença invisível que opera na história, é saber partilhar
os tempos de crescimento, é acolher com alegria esse dom que faz viver
uma existência totalmente nova.
Há no entanto outra dupla temática respeitante à
primeira virtude teologal, a que vincula fé e confiança. (...) O
primeiro Credo cristão, citado por Paulo, diz assim: «Cristo morreu
pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e
depois aos Doze» (1 Cor 15, 3-5), Mas a fé, por causa deste conteúdo
vital, postula uma reação “subjetiva”, isto é, uma adesão; para lá do
“discurso” é um “percurso” de vida: é a confiança, é o abandono ao
Revelador e Redentor, é um confiar-se a ele e aos seus braços paternos.
A fé tem, assim, também uma dimensão de risco, de
entrega de si, na consciência de que o horizonte misterioso de Deus é
bem mais alto que o nosso, como já sugeria o Senhor pela boca de
Isaías: «Os meus planos não são os vossos planos, os vossos caminhos
não são os meus caminhos - oráculo do Senhor. Tanto quanto os céus estão
acima da terra, assim os meus caminhos são mais altos que os vossos, e
os meus planos, mais altos que os vossos planos» (55, 8-9). (...)
Este entrelaçamento entre fé e confiança, entre verdade
e risco cria outro par temático, entre fé e razão, que constitui
também o título de uma encíclica de João Paulo II, Fides et ratio
(1998), dedicada precisamente a este contraponto harmonioso, a este
voo no céu do mistério divino com as duas asas da fé e da racionalidade,
para usar a imagem com que abre este texto papal.

Duccio (det.)
Um nexo particularmente caro a Bento XVI, que muitas vezes o sublinhou explicitamente, ou o iluminou em filigrana em muitos dos seus textos e reflexões. Santo Agostinho era, a este respeito, incisivo: «Quem crê, pensa, e pensando, crê. A fé, se não é pensada, é nula». O crente autêntico é posto sobre uma crista cortante e delicada. É fácil, efetivamente, deslizar para uma fé que seja apenas abandono confiante, quase cego, fugindo de toda a interrogação, cancelando qualquer rumor do pensamento, fazendo empalidecer e definhar a religião num progressivo sentimentalismo devocional. Contudo também é perigoso avançar pela outra vertente, a de uma racionalidade de tal maneira absorvente que reduz a religião a um conjunto de teoremas, a um sistema especulativo no qual tudo se ordena, a uma geometria teológica que não deixa espaço ao mistério e ao transcendente.
A este respeito é sugestiva a definição de fé que nos é
oferecida por aquela deslumbrante homilia neotestamentária que é a
Carta aos Hebreus: «A fé é garantia das coisas que se esperam e
certeza daquelas que não se veem» (11, 1).
De um lado está o confiar-se seguramente à revelação
divina, à esperança que cintila: não é por acaso que se fala de
“fundamento”, de base em que se apoiar, como sugere o próprio verbo
hebraico do “crer”, que se tornou no nosso amen, que indica um
“fundar-se” sobre a palavra e sobre a presença do Outro divino, um
procurar nele estabilidade e segurança numa relação interpessoal.
Por outro lado a fé é “prova”, é como traduzia a Vulgata latina
“argumentum” (...). «A fé se não é pensada, argumentada, é nula», era,
como vimos, a convicção de Agostinho. E este grande Padre da Igreja e
génio da humanidade é talvez – com Tomás de Aquino – o exemplo mais
alto do equilíbrio entre fé e razão. A força extraordinária do seu
pensamento, da sua intuição, da sua investigação conjugava-se
continuamente com a intensidade da sua fé, de tal maneira que muitas
vezes os seus textos são marcados por uma teologia orante: a sua
análise é construída literariamente como se fosse dirigida a um “Tu”, é
uma constante interpelação, é um apelo dirigida a Deus, objeto dessa
procura.
Uma última dupla ideal que queremos propor é o da
fé-obras. (...) A uma determinada conceção judaica que exaltava a
função salvífica das obras da Lei, introduzindo quase um “salvar-se” da
parte do homem, Paulo opõe um “ser-se salvo” através da fé que acolhe a
graça divina salvífica. Exemplar é a declaração reiterada três vezes
num único versículo da Carta aos Gálatas: «Sabemos, porém, que o homem
não é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus
Cristo; por isso, também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos
justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas
obras da Lei nenhuma criatura será justificada» (2, 16). As obras não
são a causa mas o fruto da salvação, como na mesma carta se declara: «É
este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade,
bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (5, 22-23).
É portanto necessária também para S. Paulo a presença
das obras como sinal da autenticidade da fé. Será isso que S. Tiago,
mais ligado à tradição judeo-cristã, realçará na sua Carta, dando quase
a impressão de corrigir Paulo, quando na realidade sublinha o relevo
do empenho existencial moral para não reduzir a fé a simples adesão
intelectual ou sentimental ou a mera experiência intimista.
Merecem ser escutadas as suas palavras, que revelam
acentos seguramente diferentes relativamente aos paulinos mas não em
contraste com eles: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem
fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um
irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e
um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a
fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes
aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está
completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: «Tu
tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras,
que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé. Tu crês que há um
só Deus? Fazes bem. Também o creem os demónios, mas enchem-se de
terror.» Queres tu saber, ó homem insensato, como é que a fé sem obras é
estéril? Não foi porventura pelas obras que Abraão, nosso pai, foi
justificado, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaac? Repara
que a fé cooperava com as suas obras e que, pelas obras, a sua fé se
tornou perfeita. E assim se cumpriu a Escritura que diz: Abraão
acreditou em Deus e isso foi-lhe contado como justiça, e foi chamado
amigo de Deus. Vedes, pois, como o homem fica justificado pelas obras e
não somente pela fé.» (Tg 2, 14-24).
É também nesta linha que se compreende o equilíbrio que
deve entrecorrer noutro par, o da fé e religião. A primeira é adesão
pessoal, a segunda pode ser entendida como prática externa,
manifestação ritual e social. Certamente se pode compreender o valor
paradoxal da oração formulada pelo maior teólogo protestante do século
XX, Karl Barth: «Senhor, livra-me da religião e dá-me a fé!».
De facto a religiosidade pode reduzir-se a convenções,
comportamentos exteriores, ritualismo, antropologia cultural, e a este
propósito os profetas bíblicos foram inexoráveis a combater qualquer
confusão entre religião e fé. Todavia é indiscutível que a fé implica e
envolve a pessoa na sua integralidade e, portanto, compreende
igualmente as escolhas sociais, atitudes visíveis, produz estruturas,
exprime-se em ritos e tradições, torna-se religião porque espírito e
corpo são intimamente ligados, operam e comunicam entre si. (...)
[Entre as várias representações artísticas da fé]
escolhemos a tela “A Fé”, executada pelo grande pintor flamengo Jan
Vermeer em 1675 e agora conservada no Metropolitan Museum de Nova
Iorque.
Vermeer
Vestida de branco, segundo os cânones alegóricos
codificados, mas com uma sobreveste azul, a Fé é uma mulher com a mão
direita sobre o coração, o olhar levantado ao alto para uma luz
irradiante do infinito, o pé sobre o globo terrestre, enquanto que no
pavimento uma maçã e uma serpente esmagada por uma pedra incarnam o
pecado e satanás derrotados pela fé em Deus.
O braço esquerdo pousa sobre uma mesa que é, no
entanto, semelhante a um altar, sobre o qual se apoiam o cálice
eucarístico, o livro das Escrituras e o crucifixo, o mesmo Cristo
crucificado que domina também a parede que está atrás da Fé, expressão
do próprio coração do Credo cristão.
Com os olhos nesta imagem, deixemos serpentear até ao
fim uma pergunta inquietante de Cristo, pergunta que se transforma num
apelo. No Evangelho de Lucas Jesus lança esta interrogação que talvez
nos atinja mais do que aos interlocutores de então: «Quando o Filho do
Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» (18, 8). O fio
interminável da fé, iniciado com os próprios primórdios da história
humana, parece aos nossos dias tornar-se cada vez mais frágil. E então
Cristo continua a repetir, como na última ceia da sua vida terrena,
entre as paredes do Cenáculo, um convite que ressoa ainda hoje com o
mesmo frémito: «Credes em Deus; crede também em mim» (João 14, 1).
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*Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura
In L'Osservatore Romano (26.7.2012)
© SNPC (trad.) | 11.10.12
In L'Osservatore Romano (26.7.2012)
© SNPC (trad.) | 11.10.12


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