No mundo do direito, ou da filosofia do
direito, duelam personagens que os mortais ignoram: Hans Kelsen X Carl
Schmitt, Luigi Ferrajoli X Elizabeth Anscombe, constitucionalistas e
supraconstitucionalistas, garantistas e consequencialistas, um universo
de possibilidades e de argumentos. Não fuja, leitor. Esqueça o Google.
Ou só o procure em caso de extrema necessidade. É tão excitante. Todos
podem estar certos e errados ao mesmo tempo. Como vivem no relativismo,
recorrem a autoridades absolutas por tradição.
O constitucionalista dá à corte suprema o papel de guardião da
Constituição. O supraconstitucionalista acredita que um “príncipe” deve
poder interpretá-la a seu bel-prazer ou em nome do espírito da nação. O
garantista aplica a lei escrita e só a interpreta quando vê lacunas. O
consequencialista interpreta lei conforme a consequência desejada. Os
seus seguidores brigam sem parar. Pode acontecer assim:
– Algo está errado no funcionamento do judiciário…
– Você diz isso por ignorância.
– Entendi a sua estratégia. Todos os seus argumentos serão de autoridade. Acontece que cem juristas dizem o que estou dizendo.
– No caso deles é por ideologia.
– Entendi o raciocínio. Uns discordam por ignorância e outros por ideologia. Só o seu pensamento é verdadeiro e não ideológico.
O ministro Carlos Marun quer a criação de uma corte constitucional no
Brasil para dirimir contendas entre o STF e a Constituição. Não seria
mais fácil o STF ser corte constitucional e deixar quase tudo que vem
fazendo excessivamente para o STJ? Nas brigas epistemológicas desse
mundo estonteante acontecem coisas assim:
– Deve-se aplicar a lei interpretando-a.
– Que lei autoriza a interpretar legislando?
– A independência dos poderes.
– Em que lei está prevista a independência nesse nível?
– É uma questão de interpretação.
– Nem tudo pode ser interpretação.
– Isso é uma interpretação.
– Quem disse que não pode haver lei sem espaço para interpretação?
– A interpretação.
É claro como água da fonte. Wittgenstein dizia que os problemas
filosóficos aparecem quando a linguagem sai de férias. É uma boa frase.
Deliciosamente enigmática. No Brasil não faltará quem diga que os
problemas jurídicos aparecem quando o juiz Sérgio Moro sai de férias.
Cada qual com a sua referência. Olympia de Gouges, figura da Revolução
Francesa, foi guilhotinada, honraria sem limitação de gênero. Eduardo
Galeano destaca o seu discurso de despedida: “Se nós, mulheres, estamos
capacitadas para subir até a guilhotina, por que não podemos subir até
as tribunas públicas”. A resposta foi cortante. Não havia jurisprudência
favorável a tal pleito nem interpretação da lei.
No Brasil, um dia, revoluto, José Bonifácio de Andrade e Silva
escreveu: “Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas,
os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos
eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão
honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara
da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça,
ou melhorar a sua sorte”.
Nutro uma desconfiança profunda pela idolatria da vida como prosperidade eterna
A espiritualidade está na moda. Muita gente diz
que tem espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é
legal, não é materialista, mas nada tem a ver com as barbaridades
cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista light.
Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$
100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do
trabalho físico.
Poderia lavar de graça o banheiro da própria casa, mas esse banheiro
não teria o mesmo valor do banheiro do mosteiro chique. Trata-se de um
day temple e não day spa.
Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação entre
espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma
busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas
do cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.
O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina que nos
fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem
necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições
religiosas à mão.
Mas um fato é necessário reconhecer, antes de tudo: as formas mais
consistentes de busca espiritual estão associadas a temas concretos da
vida e não a ET, Jedis, Thor ou bruxinhas de fim de semana.
A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da condição humana e
da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não apenas do
deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto
paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de
“errado” em sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e
por aí vai).
Em termos contemporâneos, acho que três tópicos, entre outros
possíveis, se prestam a uma inquietação espiritual. Um diretamente
ligado ao mundo corporativo, mas que o transcende, outro ao avanço da
longevidade, e outro mais derivado do impacto do avanço da inteligência
artificial.
As grandes tradições espirituais sempre falaram de sofrimentos reais e
não de modas culturais, como no caso que descrevi acima (day temple,
Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais avassaladores
é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto, repousar é
justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço.
A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um recurso a
ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas variadas
de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana
“ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente”
punida com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma
nova forma de doença mental.
Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de
espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem
como um discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia
(24/7, como dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em
direção ao sucesso eterno.
Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar de forma
desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo
espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma
melhor gestão do karma.
Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas
contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser
infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma
desconfiança profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma
empreitada para a prosperidade.
Talvez uma das maiores formas de prosperidade seja a longevidade.
Produto de alto valor no mercado das utopias. Palestras de todos os
tipos vendem a longevidade como algo que será, um dia, vendido nas
prateleiras do free shop. A ideia é de que a morte será eliminada ou
adiada 500 anos.
Do ponto de vista espiritual, sendo a morte um dos temas que mais
despertam indagações, a (quase) eliminação dela, ou a transformação dela
em “opção”, traria elementos muito significativos para as inquietações
humanas. Por que optar por virar pó (morrer) quando você poderia viver
pra sempre? É bom mesmo estar consciente de si para a eternidade ou por
500 anos? Temo que não. A primeira reação minha seria uma profunda
melancolia e tédio.
Outro tópico avassalador é a entrada da inteligência artificial no
universo humano. Aqui a experiência mais assustadora será a da
humilhação cognitiva que vamos experimentar. A humilhação sempre foi um
alimento espiritual poderoso.
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*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
“Terra
à vista…”, já dizia o vigilante a bordo de uma das naus que, depois de
desbravar mares, enfrentar intempéries, aportou em território
brasileiro. Terra de muitas palmeiras, onde canta o sabiá, o canário, o
pardal, a arara… Esta terra chamada Brasil, e que tanto amamos, tem uma
elite bem peculiar, que não raro, acaba por fazer aquilo que não prega,
ou prega aquilo que não faz.
Muitas
são as obras que trouxeram como assunto principal a formação da
sociedade brasileira. Dentre as quais se destacam as seguintes: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Casa Grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil contemporâneo,
de Caio prado Junior. Essas não são as únicas que tratam do assunto
supracitado, porém, são consideradas como clássicos importantes para se
pensar a questão, e que ultrapassaram épocas, influenciando estudantes,
intelectuais notáveis e boa parte da elite brasileira.
Esses
autores, de maneira geral, trouxeram informações importantes para se
pensar a formação do Brasil enquanto país e na construção da sociedade
brasileira. Cada qual com sua narrativa, essas obras traçam um panorama
histórico desde a chegada dos primeiros desbravadores dos mares em 1500,
passando pela transformação sofrida no Brasil com a política
colonizadora portuguesa (visando à exploração), refletem sobre a
consciência escravista implantada aqui, e que resultou na política
estatal escravocrata, até chegar nas tramas no campo da política
nacional, causadora de eventos históricos a la tupiniquim.
Fatos
históricos à parte, o que ocorre no Brasil, no tocante a participação
da elite nacional, vale (no mínimo) uma boa reflexão, quando não,
algumas sonoras gargalhadas. Sem mais delongas, vou discorrer a seguir
sobre as minhas impressões da nossa elite nacional.
Bom,
mantida (na maioria das vezes) pelo Estado, a elite brasileira estende
seus tentáculos a todos os poderes da República (não que isso não
acontecia na Colônia e no Império). A elite sempre esteve aí, atuando
como sempre gostou de atuar, promovendo a si e aos seus, e alargando o
antagonismo entres as classes que formam a sociedade, de forma latente,
entre as classes operárias e as detentoras dos meios de produção
(confesso que procuro não fazer menção a Marx, mas as circunstâncias me
levam a citar o velho).
“Aqui
plantando, tudo se dá…”, escreveu Caminha ao Rei de Portugal,
comunicando, é claro, sobre as condições favoráveis para a agricultura
na recém “descoberta” colônia portuguesa na América. E de fato aqui tudo
se dá mesmo! Desde tempo outros, à elite se mantém na dianteira da vida
social do Brasil. Evocando novamente o velho Marx, quando ele afirma
que o Estado é o balcão de negócios da burguesia, a gente percebe o
motivo pelo qual a dita elite nada de braçada em uma sociedade
claramente dividida entre classes sociais. Uma vez plantada a semente da
elite brasileira, dá-se os frutos cada vez mais.
Com
o discurso de que quando se quer chegar em um determinado lugar se
consegue, mas que nunca precisou enfrentar um gigante por dia como a
maioria esmagadora da população, nossa elite tupiniquim, sai ano e entra
ano, goza dos mais benevolentes privilégios que o meio oferece. Não
obstante o discurso da meritocracia repetido pela elite como mantra,
seus membros ainda reivindicam a pertença ao cristianismo, valorizando a
família (que eles insistem em chamar de tradicional), o nacionalismo, a
moral e os bons costumes.
Foi com
este viés até simpático, que boa parte da elite brasileira foi às ruas
no início dos anos 60 do século passado, clamando a Deus e ao Estado,
que o “espectro comunista” que pairava sobre as cabeças, fosse
dissipado; sabemos que este fato, associado a outros, ajudou os
militares a tomar o poder, instaurando uma ditadura que perdurou duas
décadas, causando terror, morte e muito sofrimento.
A
elite que foi à rua pedir a intervenção do Estado, por intermédio dos
militares, foi à mesma que se viu horrorizada quando os mesmos botaram
pra quebrar, principalmente depois do Ato Institucional número 5. Nesta
hora, a elite botou o rabinho entre as pernas e fez o seu famoso
silêncio de cúmplice, até por que, poucos foram os quadros da elite que
sofreram perseguição dos milicos.
Dando
mais um salto histórico, e chegando até nossos dias, venho observado às
manobras da elite para se manter no poder, não apenas econômico (como
sempre foi), mas também no âmbito cultural, ou seja, ditando o
comportamento que eles julgam adequados no discurso, mas não confirmado
na prática. Me valho aqui de três fatos recentes ocorridos no Brasil,
que é a mais acabada expressão de como a elite é uma senhora vetusta,
que está fazendo hora extra no cenário nacional. Vamos a eles.
Posso
começar narrando os fatos anunciados, partindo do forjado processo de
impedimento da presidenta Dilma Rousseff, há dois anos. Lembro-me de
como o país foi levado a uma divisão desnecessária e irreal, incitado
por setores da elite nacional, que controlam mais de 80% dos meios de
comunicação de massa. Era claro que a elite estava bancando a campanha
de desmoralização da presidenta, com o discurso de fundo contra a
corrupção e para extinguir o câncer maior, no julgamento destes, que
ameaçava o Brasil, qual seja, o perigo do comunismo.
Manifestantes
usaram camisas sa seleção brasileira de futebol em protestos contra a
então presidenta Dilma em 2016 na Avenida Paulista. Foto: Rovena Rosa /
Agência Brasil
Alegaram que o Partido dos Trabalhadores é comunista (algo que o PT nunca foi – Cf. Luís Inácio Lula da Silva: um animal político, esculpido e acabado) e, por isso, era preciso retirar quem estava no poder e restaurar a ordem em nome da pátria, de Deus e da família brasileira.
Essa mesma elite que entoava cânticos patriotas e de louvação à família, e brindava com champagne nas
ruas deste país, promoveu um circo de horrores ao retratar a presidenta
em uma figura de pernas abertas na lataria de alguns carros, dando a
impressão que, ao colocar o combustível no veículo, o frentista do posto
estava introduzindo a ponta da mangueira que leva o combustível da
bomba ao veículo, para dentro da presidenta, pela sua vagina. Sem falar
dos muitos xingamentos que dirigiram a Dilma. Isso, veja você, promovido
pelos defensores da família dita tradicional!
Isso posto, vamos aos fatos que me valho aqui. Quem não viu ou leu alguma coisa sobre o cancelamento da exposição “QueerMuseu”,
no Santander Cultural em Porto Alegre?! A elite nacional, representada
por um grupelho de protofascistas de São Paulo, travou batalha conta a
exposição, alegando que feria a moral e os bons costumes, além de
incitar a zoofilia e a pedofilia. Depois de uma enxurrada de
manifestações contrárias nas redes sociais, o mantenedor do espaço achou
por melhor cancelar a exposição.
Outra
intervenção da elite brasileira em algo relacionado com expressão
cultural foi a não menos barulheira feita por ela, por conta de um vídeo
que foi amplamente compartilhado nas redes sociais. Em uma sala fechada
e sinalizada do Museu de Arte Moderna de São Paulo uma criança,
acompanhada pela sua mãe, toca em um homem nu, que representava ali uma
peça de uma exposição famosa nos anos de 1960, da artista Lygia Clark.
Os
defensores da família, da moral e dos bons costumes, faltaram pegar em
espadas, adagas e lanças, como no tempo das Cruzadas, para expurgar os
“pedófilos” de plantão. Fizeram até uma campanha apelidada de: “deixem
minhas crianças em paz”, desde que as crianças sejam brancas de classe
média (as da elite), porque as crianças negras da periferia ainda
convivem com cenas que mais parecem de outro mundo!
Convidada
para proferir palestras em um evento, em parceria com a Universidade de
São Paulo e a Universidade de Berkeley, a filósofa estadunidense Judith
Butler foi alvo de protesto em frente ao SESC Pompéia e no aeroporto de
Congonhas. Os manifestantes contrários a presença da professora, e uma
das mais respeitadas pesquisadoras de estudos sobre questão de gênero no
mundo, alegavam que ela não deveria estar no Brasil, divulgando suas
ideologias nefastas (como se a sexualidade humana fosse algo
ideológico).
Manifestantes queimam boneco que representava a filósofa Judith Butler. Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
Esses
são os fatos que escolhi para trazer neste texto, mas não foram os
únicos promovidos pela elite defensora da família brasileira. À primeira
vista, os desavisados de plantão podem embarcar nesta onda, afirmando
que as manifestações foram justas e precisam de apoio da população, mas,
por dois motivos eu refuto veementemente esta linha de raciocínio, isso
por que: a) a Constituição garante a liberdade de expressão para todos
os cidadãos brasileiros; b) as atitudes farisaicas da elite, ou seja,
“faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, me faz manter uma
distância segura dela.
A mesma elite
que gritou contra o que eu trouxe de exemplo neste texto esteve
(representada) na noite do último dia 7 de abril em frente ao um famoso
bordel de luxo na cidade de São Paulo, conhecido como “Hotel Bahamas”,
de propriedade do impoluto Oscar Maroni, que fora condenado por manter
um estabelecimento que facilitava a prática de prostituição, mas que
fora solto por falta de provas (é pra rir ou não?!).
Na
calçada do estabelecimento, sob dois ícones que traziam um juiz da 13ª
Vara Federal em Curitiba, e da presidente do Supremo Tribunal Federal, o
citado senhor despia uma de suas funcionárias, sob o olhar atento e
cheio de volúpia dos espectadores, além de cerveja liberada
gratuitamente para a rapaziada. Isso em comemoração à prisão do
ex-presidente Lula.
Durante a Copa do
Mundo de futebol, na Rússia, a elite (também representada) por
distintos senhores, pais de família, trabalhadores, que lutaram contra à
corrupção, levaram uma mulher (de origem não conhecida), a repetir em
português (língua que ela não domina), que a vagina dela, supostamente
deveria ser rosa. Isso causou revolta nas redes sociais. Mas, sabe como é
a elite, né?, cheia de influência. Teve quem viesse na defesa dos
senhores, alegando que tudo não passou de brincadeira, zoação. Imagina
se no lugar dessa mulher estivesse uma filha, uma esposa, uma irmã, uma
mãe de algum deles. Será que a brincadeira teria graça?!
É
importante ressaltar que no caso da Copa do Mundo, muito mais do que a
elite passando vergonha e sendo ridícula, aquela atitude não é
exclusividade da dita, mas sim de machistas! Me referi a elite nesse
caso, pois não é todo mundo que dispões de no mínimo 10 mil reais para
ficar desfilando em outro país durante um evento com a envergadura de
uma Copa do Mundo.
Como se vê (e se
lê), a elite brasileira dá arcabouço teórico para tecermos vários
comentários sobre ela. Às vezes, confesso, me dá “ranço” de ver algumas
atitudes, ler alguns comentários por parte de membros da mesma, mas logo
recobro a sobriedade e recorro aos meus alfarrábios para consultar as
grandes cabeças que já passaram por este mundo e me servem de guia para a
caminhada sem conflitos belicosos. E para finalizar este texto,
parafraseando o sociólogo e escritor Jessé Souza, a elite brasileira é
de fato tola e vive em um imenso atraso!
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* Poeta, bibliotecário, estudante de Ciências Sociais na UFRJ e mestrando
no em Biblioteconomia – PPGB/INIRIO; Pesquisa sobre competência
informacional, empoderamento do indivíduo, relações sociais,
biblioteconomia social, sociedade e costumes, questão de gênero e
educação. Colabora de forma permanente com a Biblioo.
Como certos filósofos que passam a vida tentam resolver questões
inconclusas desde Platão, eu, por excesso de ócio, decidi superar alguns
impasses e polêmicas da mídia. Quero que na minha lápide escrevam:
“Resolveu o problema da imparcialidade em jornalismo”. Claro que deixo
esse elogio para o túmulo por ser modesto e discreto. Não quero louros
em vida. Que venham as rosas da posteridade. Obrigado.
Durante muito tempo se sustentou que a obrigação do jornalista era
ser isento, imparcial, objetivo e neutro. Ninguém duvidava da
possibilidade cognitiva de se realizar tão nobres ideais. Depois, tudo
se inverteu. Tudo isso passou a ser considerado um mito. Há quem diga
que filme de ficção e documentário são iguais: recortes, seleções,
edições, enquadramentos, angulações, escolhas. Contradições pululam. A
esquerda é a primeira a declarar que a imparcialidade é impossível. Mas
volta e meia cobra imparcialidade da Veja e da Rede Globo. Teóricos
quebram a cabeça para mostrar as diferenças entre esses conceitos. O
leigo simplifica com razão: usa-os como sinônimos. Ser neutro,
imparcial, isento e objetivo significa não ser tendencioso.
O tendencioso distorce os fatos consciente ou inconscientemente por
fazer parte de uma tendência. Por ter lado. Eu acredito em
imparcialidade, isenção, objetividade e neutralidade. Defino
objetividade negativamente: faculdade de neutralizar a subjetividade.
Imparcial é quem não é parte. Como, em tese, um juiz. Não é parte, não
tem lado prévio, mas toma parte, ou seja, posiciona-se a cada vez
conforme os dados disponíveis, evidências, indícios, provas e situações
concretas. Avalia, julga, sentencia, escolhe. Se há um estupro provado,
condena-se o estuprador. Se há uma injustiça evidente, denuncia-se quem a
comete. Neutralidade é ponto de partida. A isenção é a disponibilidade
para a prática da independência.
Ser imparcial não é impossível intelectualmente falando. Mas, além de
difícil e de pouco praticado por quem deveria, é sempre pertinente? A
quem interessa isso? Diante de uma injustiça deve-se tomar parte ou
permanecer alheio? A esquerda considera imparcial quem diz o que ela
pensa. A direita tem por imparcial quem ataca a esquerda. Pode-se ter
lado e não ser tendencioso conscientemente. Basta que se pratique a
honestidade intelectual. Um jornalista de opinião obviamente não pode
ser parte, mas deve se posicionar. A partir de quê? Do seu livre
entendimento, da sua consciência. Se é pênalti contra o seu clube do
coração, deve dizer sem hesitar.
Independência implica ser capaz de frustrar todos os lados. No meio
da polêmica dominical sobre a soltura de Lula, disparei uma fórmula que
transbordava independência e provocação: “A direita prende sem provas. A
esquerda solta sem competência”. Não sou parte. Posso desagradar a
todos. Sempre consigo. Sou chamado de isento por quem concorda com
minhas posições. Sou rotulado de parcial por quem discorda de mim. Os
mesmos que afirmam a impossibilidade lógica da imparcialidade chamam de
isentão quem não se decide, ainda que momentaneamente, por uma parte.
Jornalista não é parte. Faz parte.
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* Jornalista. Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário PUCRS.
No arrastado '4321', Paul Auster sucumbe à intoxicante influência de
Hemingway e prova que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances
grandes
Por
Maicon Tenfen
É difícil encontrar um romancista americano que escape à angustiante
influência de Ernest Hemingway, mesmo entre os que não veem problema em pegar
carona nas modinhas do nosso tempo e encher as suas narrativas de truques
pós-modernosos. É o caso evidente de Paul Auster. Desde os primeiros livros, o
autor de A Trilogia de Nova York esperneia contra a sombra do mestre e
luta para fazer o oposto simétrico do que pressupõe a cartilha do — atenção
para o apelido — Papa Hemingway. Esse repúdio ao estilo de antecessores
patriarcais foi chamado de daemonization pelo crítico literário Harold
Bloom, que relacionou o ato à figura de linguagem “hipérbole”, expressão do
exagero. Conclusão? Mais uma rebeliãozinha edipiana chega ao clímax com a
publicação do novo romance de Auster.
Começando pelo tamanho, tudo é exagerado em 4321. A obsessão de
deixar para a posteridade o grande romance americano fez com que Auster
imaginasse quatro vidas distintas para um mesmo personagem, Archie Ferguson,
baby boomer nova-iorquino que passa por múltiplos processos de amadurecimento
enquanto o seu país reluta em amadurecer. O assassinato de Kennedy, a luta
pelos direitos civis, a Guerra do Vietnã, tudo é acompanhado por um dos
Ferguson, e é por isso que certos fatos históricos podem ser contaminados pelas
realidades alternativas em que vive o protagonista. Com exceção desses momentos
em que o pano de fundo histórico fica sozinho em cena, a leitura de 4321
vai aos poucos se transformando num teste de resistência. Para chegar à última
página, é preciso vencer os infindáveis episódios em que o personagem se regala
diante das mínimas coincidências para atribuir significados a um cotidiano que
não faz muito sentido.
Papa difícil – Hemingway: fantasma que assombra autores
americanos (
Kurt Hutton/Picture Post/Getty Images)
Os romances de Auster normalmente têm origem em questionamentos sobre o
poder do acaso e da linguagem: e se eu tivesse outro nome no documento de
identidade, a minha vida seria diferente? Obras mais vigorosas, como Leviatã
e O Livro das Ilusões, dão verdade ficcional às possíveis respostas
porque apostam na elipse e na sutileza, ou seja, ainda utilizam a Teoria do
Iceberg de Hemingway, que pressupõe a omissão de certos detalhes — ainda mais
se forem óbvios — para convocar o leitor à coautoria da obra. O gelo que vemos
na superfície do oceano é o texto do qual se depreende a massa submersa. Em 4321,
no entanto, Auster consegue a façanha de virar o iceberg de ponta-cabeça e
inflacionar o relato com absolutamente todos os pormenores desnecessários que
cercam a vida de Ferguson, ou melhor, as vidas, quatro, tornando as coisas mais
lentas e redundantes.
Tudo no romance é quantificado com uma obviedade que afasta o leitor de
qualquer contribuição criativa. Conhecemos as minúcias do primeiro namoro de
Ferguson, inclusive o número de cartões-postais trocados durante o rompimento,
depois conhecemos as minúcias do segundo namoro, e também do terceiro, sem que
nada seja novo o bastante para fazer a história dar um passo à frente. Trata-se
de um romance de formação em que o herói não aprende nada porque está ocupado demais
com a lição de casa. De repente o leitor se dá conta de que as miudezas
existenciais de mais três Ferguson devem preencher o resto do tijolo, que
começa a pesar. Se o objetivo de Auster foi realçar, por meio da leitura, a
morosidade de quatro cotidianos descritos em detalhes, então ele merece
congratulações.
‘4321’, de Paul Auster (tradução de Rubens Figueiredo; Companhia das
Letras;
816 páginas; 89,90 reais e 39,90 reais na versão digital)
Existe a esperança de que a disposição das vidas paralelas de Ferguson
preencha as entrelinhas de subentendidos capazes de conferir um valor mais
robusto à obra — afinal de contas, por que alguém escreveria quatro versões do
mesmo livro sem que elas se alimentassem mutuamente? A verdade, porém, é que 4321
forma um conjunto de vasos comunicantes que pouco dialogam entre si. Em mais
uma molecagem contra a cartilha do Papa, Auster se vale de um narrador intruso
que tudo sabe e tudo vê, que em vez de “mostrar” se limita à facilidade de
“contar” as situações e que chega ao cúmulo de explicar, nas últimas páginas, a
piada que abre o livro. É como se estivéssemos diante de um mau romance do
século XIX, algo lastimável para um autor que já havia encontrado soluções mais
gratificantes para o problema da angulação.
Não se pode dizer que uma daemonization como a de Auster contra a escola
Hemingway seja de todo má, mas ele poderia ter aprendido com o autor de O
Velho e o Mar que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances
americanos grandes.
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Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591