sábado, 29 de setembro de 2018

A tranquilidade da alma

Juremir Machado da Silva*
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Pirro, Epicuro, Zenão

      Crer faz ser feliz? Ou duvidar é mais saudável? Se creio, posso me sentir amparado. Se duvido, posso me sentir livre. Pirro (365-270 a.C) duvidava de tudo. Ele não tinha certeza nem sequer de que se jogar num precipício poderia ser fatal. Tudo podia ser mera imaginação ou pela primeira vez não acontecer. A verdade é que Pirro duvidava do nosso poder de conhecer as coisas. Esse tipo de raciocínio é sempre paradoxal: se duvido de tudo, duvido também da dúvida, logo tenho certeza de que duvido. Pirro aparentemente tinha uma convicção: desejar traz infelicidade. Se nada sabemos com certeza, melhor não ficar dando uma de dono da verdade. Se desejar traz problema, pois acabamos não alcançando o desejado, melhor viver sem muitas ambições, usufruindo do que se tem sem maiores dores.

Talvez fosse realizável na época de Pirro. Mas como não desejar num mundo mobilizado pelo desejo? O capitalismo é o regime do desejo. Saber e desejar andam juntos. O desejo de saber move o mundo. Outro cético, Agripa, que viveu uns 300 anos depois de Pirro, queria a prova da prova. A sua questão básica era: o que prova que uma prova é uma boa prova? Podemos adaptar o que ele pensava: o que prova que a felicidade é a felicidade? Atribui-se a Agripa uma cadeia interpretativa chamada de “cinco tropos”: dissensão (tudo é incerto ou tudo é opinião), progressão infinita (toda prova precisa ser provada), relação (tudo depende do ponto de vista), suposição (tudo é hipotético) e circularidade (a verdade gira num círculo vicioso). Se tudo é relativo, como tenho certeza do que é a felicidade?

Sempre o desejo – A resposta mais simples ainda parece ser esta: porque me sinto bem. O que é se sentir bem? Epicuro (341-270 a.C.) teve a sua escola de filosofia, o Jardim, onde convivia com seus discípulos. Ele era prático. Queria ensinar e aprender a viver melhor. Abordava as questões mais sensíveis. Por exemplo, a morte. Se não estarei presente na minha morte, por que me preocupar com ela? Se não sofro pelo que veio antes de mim, por que sofrer pelo que virá depois de mim? Epicuro era um moderado. A sua lição básica era o comedimento. Esses gregos eram tão geniais que chegam a parecer ingênuos. Como controlar o desejo quando este é incontrolável?

Epicuro era feliz escrevendo e conversando. Ele era filho de um gramático e de uma mágica. Vegetariano, abria exceção para um pedaço de queijo. Bebedor de água, permitia-se um cálice vinho. Epucurismo virou sinônimo de orgia. Segundo consta, porém, Epicuro e sua turma pouco se esbaldavam nos prazeres de cama e mesa. O mestre morreria de cálculo renal. Na vida, não se sentia carregando pedra. Acreditava que cada ser humano podia se controlar e administrar sua vida com prudência e sabedoria. Diógenes, um dos seus discípulos, gravou num pórtico o que seriam os quatro remédios (ou venenos), o chamado “tetrapharmakon”, extraído da Carta a Meneceu, um dos textos sobreviventes de Epicuro: não temer os deuses; não temer a morte; aspirar à felicidade; suprimir a dor. A felicidade é o prazer, o seja, a inexistência de dor. A felicidade está na ataraxia, essa tranquilidade da alma, essa paz de espírito. Existem desejos inúteis, como o de glória, e irrealizáveis, como o desejo de imortalidade. Simples.

Epicuro tem razões na sua racionalidade que o enigma do humano desconhece: a amizade é um bem; o amor é um perigo que o sábio evitará. O importante, segundo Epicuro, era começar a filosofar (pensar) cedo e nunca parar. A filosofia ajuda a moderar os apetites e a curar dos desejos insanos. A duração insignificante da vida, segundo o filósofo, cujas ideias correram o mundo do seu tempo, recomenda parcimônia e humildade. A “Carta a Meneceu” é a constituição da felicidade de Epicuro. Nela, o mestre ensina o homem a ser sábio, isto é, a ser simples, a meditar, a ser prudente e parcimonioso, a se relacionar com os deuses e com a morte, a saber viver.

Eis tudo nas palavras do filósofo: “Todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem”. Dá para usar?

Os estoicos radicalizariam as coisas. A felicidade estaria na virtude. E no autocontrole absoluto. O prazer seria o inimigo a combater. Adeptos de uma racionalidade universal, os estoicos pregariam a contenção dos sentimentos, a disciplina rigorosa e a capacidade de resistir ao sofrimento. Zenão de Cítio (363-263 a.C.) é o pai da criança. A felicidade estaria na negação das paixões terrenas. Outra designação para os desejos que perturbam. As paixões enlouquem. De resto, para que lutar e sofrer pelo que não depende da nossa vontade? O homem estoico é tão racional e prático que só pode ser um super-homem. Estoicismo vem de pórtico, o pórtico pintado em Atenas onde Zenão filosofava. Felicidade ou domesticação? O que ensinavam esses gregos, o possível e desejável ou o impossível e árido?
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* Escritor. Prof. Universitário. Sociólogo. Jornalista
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/09/11211/a-tranquilidade-da-alma/
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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Um atraso para o país

Maílson da Nóbrega*

ENVIESADA - A escultura que simboliza a Justiça em frente ao STF, em Brasília: a Constituição elevou a renda dos juízes (
Evaristo Sa/AFP)

O garantismo e o resgate da dívida social moldaram a Constituição. No entanto, sem recursos e sem profundas reformas, um futuro sombrio nos espera

O ambiente da época da Constituição de 1988 não era o melhor para forjar as bases do nosso futuro. Havia séria crise econômica. Pouquíssimos na classe política se preocupavam com a situação das finanças públicas (ainda hoje é assim). A sociedade esperava que a volta da democracia nos fizesse um povo feliz e próspero. Tancredo Neves prometera uma nova Constituição, mas dificilmente levaria a ideia adiante. Percebia os riscos. Só que José Sarney, o vice que assumiu com a morte do presidente eleito, não possuía força política para abandonar a promessa.

Para o jurista Ney Prado, a inspiração brasileira veio de experiências constitucionais de Espanha, Itália, França e Estados Unidos, mas adotou-se o modelo português, cuja fonte intelectual tinha sido a obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, do marxista José Joaquim Gomes Canotilho. A Constituição portuguesa teve revisões quinquenais. A proposta de transição para o socialismo deu lugar à democracia econômica, e não à primazia do proletariado. A nossa foi revista uma vez, mantendo graves problemas. Na Espanha, uma comissão parlamentar elaborou o texto e negociou temas espinhosos latentes na ditadura franquista. A Constituição, admirável obra política, foi acolhida pelo Parlamento, que não pôde emendá-la. Depois, foi aprovada em referendo popular. Aqui, cada um dos 559 constituintes podia fazer propostas em comissões temáticas. Uma comissão de sistematização elaboraria o texto final. Saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo, paternalismo e corporativismo. O capitalismo foi mercadoria rara nesse balaio de desejos.

Duas ideias predominaram: o garantismo e o resgate da dívida social. Pela primeira, haveria o máximo de direitos, para que não fossem novamente violados por um regime autoritário, como se este, caso surgisse, não pudesse revogá-los. Isso levou à invasão de áreas típicas da legislação ordinária, sujeitando a modernização a emendas constitucionais, mais difíceis de aprovar. A promessa de resgatar a dívida social era o contraponto à decisão dos militares de pagar a dívida externa “com a fome do povo”.

Da elaboração, saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo,
 paternalismo e corporativismo

Com 250 artigos, mais os setenta (hoje 114) do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição só perde em extensão para a da Índia e a da Nigéria. Já recebeu 99 emendas. A Constituição dos Estados Unidos, com 231 anos e apenas sete artigos, tem 27 emendas. A primeira alteração, a dos direitos individuais, tem dez artigos, que se contam como dez emendas. Pelo nosso critério, foram dezessete emendas.

Ignorou-se o princípio econômico da escassez. Sem medir consequências, criou-se um Estado de bem-estar social de país desenvolvido, mas incompatível com a nossa realidade. No dizer do constituinte Roberto Campos, “a Constituição promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”. Em 2016, o gasto social — mais da metade com aposentadorias e pensões — nas três esferas de governo atingiu 25,7% do PIB, mais do que na Alemanha (25,3%), na Noruega (25,1%) e no Reino Unido (21,5%). Para financiá-lo, elevou-se fortemente a carga tributária, que passou de 22% do PIB, em 1988, para 32%, em 2017, nível de país desenvolvido. O gasto primário da União (exclui encargos financeiros) passou de 12,6% do PIB, em 1986, para 19,5% do PIB, em 2017. As despesas obrigatórias com pessoal, previdência, saúde e educação somam mais de 90% do gasto primário da União, penalizando o investimento e outras áreas relevantes. Esvai-se a cada dia o espaço para a gestão fiscal.

A Constituinte foi o paraíso das corporações. Uma das mais poderosas, a do Judiciário, conseguiu indexar a remuneração de juízes federais e estaduais a 95% do subsídio mensal de ministro do Supremo Tribunal Federal. Os estados menos desenvolvidos pagam a seus magistrados o mesmo que o estado mais rico, dispondo de arrecadação bem menor. As demais carreiras pressionam por equiparações. O custo das aposentadorias se agiganta. As despesas com pessoal ativo e aposentado estão na raiz das falências estaduais. Para o advogado Joaquim Falcão, os servidores públicos têm dezesseis vezes mais chances de recorrer ao STF do que os trabalhadores do setor privado, que estão protegidos por menos artigos, incisos e parágrafos.

Aposentadorias generosas de pouco menos de 1 milhão dos servidores federais causaram um déficit de 86 bilhões de reais em 2017. Os 34,5 milhões de beneficiários do INSS responderam por um déficit de 182 bilhões de reais. Entre 2001 e 2015, o déficit acumulado do regime previdenciário dos servidores atingiu 1,3 trilhão de reais. O economista José Márcio Camargo lembrou que eles estão entre os 20% mais ricos da população. Para ele, “o sistema de aposentadoria do setor público brasileiro é, provavelmente, o maior programa de transferência de renda de pobre para rico no mundo”.

A União transferiu expressiva parcela de recursos aos estados e municípios, mais tarde ampliada por emendas constitucionais. Em 1987, o governo federal transferia 32% do imposto de renda e 32% do IPI a governos subnacionais (20% em 1975). Agora, são 49% e 59%, respectivamente. Se recorresse aos dois tributos para cobrir a expansão de gastos sociais, o governo federal teria de cobrar o dobro, pois metade deveria ser repassada aos entes subnacionais. Por isso, optou por contribuições, que lhe pertencem integralmente. O ICMS incorporou os tributos federais únicos sobre combustíveis, minerais e transportes. Os estados passaram a legislar sobre o ICMS, que agora pode ser alterado por 27 jurisdições. A harmonia das normas, essencial em um tributo sobre o valor agregado, desandou. Virou bagunça. O ICMS ficou insanamente mais complexo e instável. As regras mudam, em média, setenta vezes por semana. Agregando-se as contribuições federais incidentes em cascata, veio o caos. As empresas são habitualmente multadas não por deliberada sonegação, mas por ser difícil acompanhar e entender normas tão mutantes e irracionais. Subiu muito o custo para a defesa de autuações fiscais. Empresas exportadoras não recebem créditos do ICMS a que têm direito pela legislação. O sistema tributário transformou-se no principal entrave ao crescimento da economia e à competitividade dos produtos brasileiros.

Constitucionalizou-se quase tudo, dos tipos de polícia à residência dos juízes e aos monopólios estatais de telecomunicações, petróleo, gás e energia. Passou-se a depender de emendas constitucionais para privatizar estatais e permitir a participação de capital privado nessas áreas. Medidas antes adotadas por lei ordinária demandaram penosas negociações políticas.

O principal aspecto negativo: o surgimento de um Estado mais balofo do que em qualquer outro país de renda per capita semelhante à do Brasil

Ao longo de trinta anos, a Constituição tornou-se fonte de distorções na economia. Inibiu o crescimento da produtividade, que é o principal motor do desenvolvimento. No seu texto, a palavra produtividade aparece apenas uma vez; usuário e eficiência, duas vezes; garantia, 44 vezes; direito, 76 vezes; dever, quatro vezes. Xenófoba, a Constituição criou restrições ao capital externo. Para Roberto Campos, isso “discrimina o investimento estrangeiro, marginalizando o Brasil na atração de capitais. Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou de férias”.

A ideia de promover profundas transformações, sem considerar seus efeitos econômicos, dominou os trabalhos. Além da elevação de gastos sociais, concedeu-se anistia de dívidas bancárias a pequenos produtores, uma violação explícita de contratos. Fixou-se a taxa de juros real (sic) em 12% ao ano. Nenhuma Constituição no mundo oficializa calote ou tabela os juros. Pouco se falou em empresa em sentido geral. Para Gustavo Franco, “há muita atenção dedicada à empresa estatal e destaque para o ‘tratamento favorecido’ à pequena empresa”. O incentivo, prossegue ele, “passa a ser, curiosamente, para as empresas permanecerem pequenas”.

Na área salarial, foram mantidas ou criadas regras inexistentes em países bem-sucedidos. Os salários nominais não podem ser reduzidos, o que dificulta a recuperação da economia e do emprego em casos de recessão. A inflação tende a ser maior do que em outras partes do mundo. São estáveis no emprego todos os servidores públicos, cuja remuneração é hoje 67% superior à do setor privado em funções semelhantes. O salário mínimo, indexado à inflação passada, virou piso das aposentadorias do INSS. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, seu valor cresceu 113,4% acima da inflação. Vem daí o agigantamento do déficit do INSS, pois os benefícios de um salário mínimo representam três quartos da despesa previdenciária.

Os funcionários do setor público regidos pela legislação trabalhista viraram, como assinala o economista Raul Velloso, “funcionários públicos com todos os direitos e vantagens dessa categoria, especialmente estabilidade e aposentadoria integral pelo último salário”. Só na União foram cerca de 300 000 pessoas, acarretando aumentos de salários e novas carreiras mais bem remuneradas. Até hoje, diz Velloso, “os estados penam para obter da União uma ‘compensação previdenciária’, prevista em lei, para enfrentar os gastos adicionais na sua esfera”.

A crise fiscal inibe ganhos de produtividade e limita nosso potencial de crescimento. A principal origem dessa triste realidade são a expansão de gastos e as normas insensatas da Constituição, que pioraram posteriormente. No governo Dilma, para quem “gasto é vida”, a situação se agravou por causa de maior expansão fiscal, incluindo a transferência de 500 bilhões de reais do Tesouro para o BNDES, boa parte para beneficiar grandes empresas e forjar “campeões nacionais”.

Deve-se reconhecer, todavia, que houve avanços sociais e políticos. Delfim Netto, outro constituinte, diz que a Constituição é “o produto de um momento de revolta da sociedade: uma reação às restrições que lhe foram impostas nas duas décadas do regime autoritário”. Para ele, a Constituição “incorporou o ideal de uma sociedade civilizada”, baseado em “um sistema que combina amplas liberdades civis com a mitigação da desigualdade de qualquer natureza”. Entusiasta da Carta, o ex-ministro do STF Ayres Britto considera que em linhas gerais ela “é de muito boa qualidade. Ela é cheia de princípios intrinsecamente meritórios”. Ele lembra os princípios da dignidade da pessoa humana, da soberania popular como primeiro fundamento da República, da cidadania como segundo fundamento e do pluralismo como quinto. “Melhor impossível para construir uma sociedade livre, justa e solidária”, conclui. A essa análise, pode-se aduzir a atribuição do status de poder independente ao Ministério Público, o qual, malgrado os excessos, tem investigado crimes de corrupção de forma competente, contribuindo para sepultar a sensação de que ricos e poderosos jamais seriam encarcerados.

Além dos aspectos negativos aqui evidenciados, há muitos outros. O principal foi o surgimento de um Estado mais balofo do que em qualquer outro país de renda per capita semelhante. A isso se acrescem a piora do ambiente de negócios, o caos tributário, a queda da produtividade e a expansão insustentável da dívida pública, que, se não revertida, pode jogar o país no inferno inflacionário.

Existem três formas de melho­rar a Carta. A primeira seria prosseguir com emendas constitucionais, como feito até aqui. A segunda, defendida por renomados juristas, seria convocar uma nova Constituinte. A terceira, proposta pelo constituinte Nelson Jobim, seria uma “lipoaspiração”, reduzindo os 250 artigos a apenas 25 que versem sobre “princípios”. A primeira levaria décadas, prolongando a agonia. A segunda incluiria o risco de piora, já que as corporações são hoje mais fortes. A terceira parece a mais adequada.

A Constituição atrasou o Brasil. Sem reformá-la rápida e profundamente nos próximos anos, um futuro sombrio certamente nos espera.
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* Maílson da Nóbrega, colunista de VEJA, foi ministro da Fazenda de 1988 a 1990
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602
Fonte:  https://veja.abril.com.br/economia/um-atraso-para-o-pais/

Allen Frances: "A evolução produziu génios como Einstein e idiotas como Trump"

 

 
"Trump não é louco, mas a nossa sociedade é", defende o psiquiatra norte-americano Allen Frances em O Fim da Racionalidade Americana, agora publicado em Portugal. Chamar-lhe louco é "um insulto aos doentes mentais".

Em entrevista por e-mail ao DN, considera decisivas as eleições legislativas intercalares de novembro próximo pois "vão permitir conhecer a qualidade da nossa cidadania e saber se a democracia dos Estados Unidos é suficientemente forte para resistir ao violento ataque de Trump".
No livro, Frances explica por que não subscreveu a carta de 50 mil profissionais de saúde que "diagnosticava" uma "doença psíquica séria" ao presidente dos Estados Unidos, por ter perturbação narcísica da personalidade, e exigia a sua remoção do cargo. Não poupa nas palavras: "Trump é um idiota clássico. Nunca conseguiu ser nada mais, nada menos, do que Trump." Mas "ser um narcisista do pior não faz que Trump seja psiquicamente doente".

"Já tivemos a nossa quota-parte de presidentes burros, presidentes impulsivos, presidentes mentirosos, presidentes ignorantes, presidentes narcisistas, presidentes belicosos, presidentes da teoria da conspiração e presidentes imprevisíveis - mas nunca um presidente encarnou todos esses traços repreensíveis", afirma o autor no prólogo à obra editada em Portugal pela Bertrand.
Mas este não é um livro sobre o presidente dos Estados Unidos, como explica Frances. Tinha começado a escrevê-lo muito antes de sequer pensar em incluir Trump, até porque se trata de um estudo acerca do que considera a insanidade social: "A nossa incapacidade de responder com sentido aos perigos cada vez mais urgentes que ameaçam a sobrevivência da humanidade - a sobrepopulação, as alterações climáticas, o esgotamento dos recursos e a degradação ambiental."

Allen Frances, nascido em Nova Iorque em 1942, coordenou a equipa que reviu pela quarta vez o DSM, o Manual de Diagnóstico de Doenças Mentais pelo qual se guiam os profissionais da psiquiatria. Critica o DSM-5, atualmente em vigor, que considera demasiado abrangente, provocando uma inflação de diagnósticos.

Afirma que Trump não é louco mas que a sociedade está louca. Na luta contra a insanidade não há espaço para a apatia? Devemos, cada um de nós e também nas nossas redes pessoais, sociais e políticas, comprometer-nos cada vez mais?
Fui sempre preguiçoso e politicamente inativo, relapso em relação a todas as grandes controvérsias políticas dos últimos 50 anos, e raramente votei nas eleições. Agora ando a calcorrear as ruas para encorajar as pessoas a exercerem o direito de voto - o único caminho para conseguirmos salvar a democracia nos Estados Unidos do diabólico ataque de Trump. A nossa próxima eleição em novembro vai ser a mais importante desde 1860, quando Abraham Lincoln foi mandatado para acabar com a escravatura. A democracia é uma flor rara e frágil que exige uma cidadania informada e comprometida. A democracia morre com a apatia. Isto é igualmente verdade em muitos países da Europa e da América do Sul, onde partidos de extrema-direita promovem um regresso à xenofobia e ao fascismo.

Os psiquiatras que declararam que Trump é louco reagiram à sua rejeição desse diagnóstico?
Os psiquiatras que classificaram Trump como louco têm boas intenções. Eles têm a perceção clara de que Trump é perigoso e querem usar terminologia da psicologia para travá-lo. Mas Trump é louco como uma raposa, mais vil do que louco, um vigarista explorador impiedoso que só quer saber de Trump. É um insulto aos doentes mentais equipará-los a Trump, pois são na maioria bem-intencionados e bem-comportados e ele não é nem uma coisa nem outra.

O populismo e a xenofobia estão a invadir a política - vemo-lo na eleição de Trump e também noutros países da América do Sul e da Europa. É inelutável?
As fontes fundamentais dos conflitos mundiais são a sobrepopulação maciça, o esgotamento dos recursos naturais e as catastróficas alterações climáticas. Todos os focos problemáticos do mundo sofreram uma insustentável quadruplicação da população desde 1950. A nossa espécie demorou 300 mil anos para atingir uma população de mil milhões. Agora acrescentamos mais mil milhões a cada 15 anos. A Europa não pode acomodar os muitos milhões que desesperadamente procuram refúgio da guerra e da fome. O tribalismo feroz é inevitável enquanto a explosão demográfica impuser demandas impossíveis à boa vontade e aos sentimentos humanos. A sobrevivência da nossa espécie exige que encaremos a dura verdade de que este planeta é um pequeno calhau com recursos limitados e em vias de desaparecer. Conservação, sustentabilidade e controlo da natalidade são essenciais para a sobrevivência e exigem cooperação entre as nações em vez de perseguir interesses egoístas de curto prazo.

Nunca houve tanta informação e nunca houve tanta desinformação a condicionar as nossas escolhas. Há alguma saída?
A internet foi criada como um enorme recurso para espalhar conhecimento e democracia. Em vez disso, tornou-se uma fonte de fake news e um veículo de propaganda. Há estudos que provam que mentiras emocionalmente empolgantes espalham-se muito mais depressa e têm mais consequências do que verdades racionais. A luta pela democracia vai depender de a verdade ganhar esta batalha - mas por enquanto as redes sociais trouxeram mais para a luz os nossos anjos maus e a irracionalidade do que anjos bons e decisões razoáveis.

É possível que viver em democracia tenha o efeito paradoxal de darmos menos atenção à política? Teremos adormecido descansados?
Houve muito poucas democracias de sucesso nos 5000 anos da história humana e raramente tiveram vida longa - quase sempre redundaram em caos e ditadura. A democracia exige uma cidadania comprometida, informada, sempre alerta, e respeito pelas instituições. As nossas próximas eleições vão permitir conhecer a qualidade da nossa cidadania e saber se a democracia dos Estados Unidos é suficientemente forte para resistir ao ataque precipitado de Trump.

"Para sobrevivermos, a mente racional deve reafirmar-se sobre o impulso irracional e a fantasia da concretização de desejos." É um apelo à ciência e ao conhecimento em vez de reações instintivas?
O cérebro humano é um work in progress. Os nossos instintos estão adaptados ao mundo de há 50 mil anos e muitas vezes submergem o pensamento racional necessário para enfrentar os desafios do futuro. A evolução produziu génios como Einstein e Cervantes, mas também produziu idiotas como Trump. Ou nos adaptamos racionalmente às nossas novas circunstâncias ou seremos destruídos por elas. Temos de perceber que somos uma única tribo a fazer peso num navio que se afunda - ou vencemos ou falhamos em conjunto.

No seu livro, revela uma grande preocupação com o futuro, mas aponta caminhos para ultrapassarmos os perigos. É uma atitude otimista? E é possível viver sem esperança?
Somos uma espécie extremamente inteligente - formiguinhas num pequeno planeta que resolveram muitos mistérios deste vasto universo. Adquirimos um enorme conhecimento mas uma sabedoria limitada. Chegámos às estrelas, mas falhámos no nosso próprio controlo. Mas tenho esperança. O meu país elegeu recentemente um racista idiota como Trump, mas há dez anos elegemos o nosso primeiro presidente negro - o virtuoso e racional Obama. As contingências do futuro são impossíveis de prever e os pontos de inflexão podem ir em direções favoráveis ou desastrosas. Cada um de nós deve fazer a sua parte para entregar um mundo habitável aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos.

A luta antitabaco, diz, é um dos maiores avanços da medicina das últimas décadas, apesar de ter sido travada contra os interesses da indústria e sem os enormes investimentos da luta contra o cancro. O mesmo aconteceu com a amamentação materna. Pequenos passos para a humanidade?
A luta pela democracia é uma batalha do poder do povo contra o poder do dinheiro. Uma tremenda desigualdade económica e a concentração de riqueza conduzem inevitavelmente à desigualdade política e à concentração do poder político. A ferramenta para salvar a democracia é a urna do voto.
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Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/28-set-2018/interior/allen-frances-a-evolucao-produziu-genios-como-einstein-e-idiotas-como-trump-9915496.html?utm_term=Fuzileiros+perderam+caixa+de+municoes.+Foi+encontrada+no+meio+da+estrada&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email

NOSSO BINARISMO IDEOLÓGICO

José de Souza Martins*
 
 

Os resultados das pesquisas eleitorais, nestes dias finais da campanha, vão confirmando uma tendência histórica da política brasileira: a do binarismo ideológico. A dispersão de votos pelas dezenas de partidos encobre a tendência binária que sob eles resiste como reguladora oculta da nossa mentalidade política.

Ainda estamos divididos entre os que foram subjugados pelo mandonismo local e a dominação pessoal e os residualmente esclarecidos que podem exercer a crítica dos projetos políticos na perspectiva da esperança e do possível. A ideologia pendular PT x PSDB revitalizou o binarismo e limitou gravemente nosso horizonte político.

No interior dos próprios partidos políticos essa polaridade é visível. É o caso do Partido dos Trabalhadores. Está no desencontro das opções eleitorais entre sua figura simbólica mais expressiva, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o partido. Nas consultas, os números em favor de Lula são muito maiores do que os números em favor do PT. Não só agora.

O PT vai bem quando os eleitores reconhecem a convergência dos dois. Vai mal quando se separam, quando os eleitores que se identificam com Lula não se identificam com os candidatos do partido. Dá certo quando o partido pega carona no carisma de Lula. Ou seja, o PT dá certo quando não é partido, quando é apenas agrupamento de acólitos do líder, mas não agentes de afirmação de uma doutrina e de uma teoria de superação das contradições sociais. As que afligem aqueles que esperam ter suas carências devidamente consideradas pelo partido num ideário de desenvolvimento social como condição do desenvolvimento econômico.

Isso tem acontecido também com outros partidos. Com o próprio PSDB, como experiência partidária oposta à do PT. O partido deu certo enquanto se manteve aglutinado em torno da personalidade referencial do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do que ele representa como teórico do poder e do processo político brasileiro. Não deu certo quando quis dele se distanciar, criando núcleos internos de poder divergente.

Em boa parte, isso ocorreu porque Fernando Henrique Cardoso, radicalmente diferente de Lula, é um adversário do poder pessoal, tem uma referência solidamente social-democrática de sua orientação política. O partido se fragilizou quando começou a se fragmentar, especialmente em São Paulo, quando deixou de reconhecer aquilo que FHC representava como pensador das possibilidades do partido e do processo político.

Lula, ao contrário, é a orientação de si mesmo, de modo competente alinhado com o imaginário popular do poder. Lula é culturalmente bilíngue: ele compreende as manhas e debilidades do poder político. Coisa que, em geral, os petistas não compreendem porque fragilizados pela diversidade de doutrinas divergentes e até incoerentes do PT. Ao mesmo tempo, Lula compreende a linguagem popular, as ocultações do silêncio dos simples e da eloquência do não dito. Coisa que nenhum outro político brasileiro sabe fazer. Mas conhecimento inútil para quem está preso. 

Nesse sentido, mesmo que não o saiba, Bolsonaro é uma versão superficial e equivocada de Lula. Porque quer falar a linguagem popular das esquinas e da rua sem conhecê-la como linguagem de sobressignificados que é. Expressa a raiva da classe média, mas não conhece o que é propriamente a língua do povo. Reafirmar estigmas depreciativos sobre a mulher, ou sobre os que não fazem parte de uma imaginária classe média branca e intolerante, comprova a distância enorme que há entre o candidato e essa fala peculiar e difícil. Sem o saber, passou a falá-la quando foi esfaqueado e hospitalizado. Mesmo que não saiba e não queira, a compaixão popular falou em seu nome a língua que ele não conhece nem decifra.

Nela não conhece nem reconhece o bilinguismo do povo brasileiro, a a dupla linguagem a que fomos condenados desde nossas origens como povo que falava sua própria língua, mas foi obrigado pelos poderes da dominação colonial a falar a língua do conquistador, a língua da subjugação, a versão superficial da língua do mando e portanto da compreensão superficial das contradições e embates da vida. É a língua da inautenticidade, do ser que não somos nem temos conseguido ser.

Na polarização das opções por candidatos, neste momento, mais da metade dos eleitores ficará fora da decisão eleitoral. No voto meramente residual da recusa e não da escolha, o voto contra o candidato que não representa a opção do eleitor, mais de 50% dos eleitores têm seu direito de voto negado. Deixarão de votar em seu candidato para votar em quem não escolheram. Será o voto imposto pelo negativismo da circunstância, e não o voto livre da maioria silenciada.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto

Fonte:  https://www.valor.com.br/cultura/5889447/nosso-binarismo-ideologico 28/09/2018