domingo, 2 de setembro de 2018

A FELICIDADE

 Lya Luft*
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Contesto um pouco o "éramos felizes, e a gente não sabia". 

Pois eu acho que em geral sabíamos, sim, se prestássemos um pouco de atenção. Quem não sentiu um reconfortante bem-estar em conversa com amigos leais, ou no sofá junto da pessoa amada, ou com as crianças ao lado, cobertor sobre as pernas se fizesse frio, assistindo com elas a todos os programas infantis que as deliciavam... e você, confesse, se deliciava também? Lembro-me de assistir, com netas e netos bem pequenos, aos Backyardigans: eu era sempre o pinguim Pablo. Era divertido, leve, mágico. 

Por que precisamos ser sérios, rigorosos, aprumados e chatos? Um dos maiores elogios que recebi foi quando uma das netas, já com quase 16 anos, me disse que sou "uma avó muito divertida". Pois com as minhas amadas avós, há décadas, era tudo respeitoso, embora com muito afeto. Usavam roupas escuras, cabelos grisalhos, faziam bolos ou tricotavam roupinhas de bebê, cuidavam do jardim ou cuidavam de nós quando os pais viajavam. Nem havia televisão para nos divertirmos juntas. Mas, mesmo então, havia aqueles momentos em que contavam maravilhosas histórias de suas próprias infâncias, a gente boquiaberta - então um dia a vó tinha subido numa goiabeira, caindo e quebrando o braço? Hoje, ler e contar histórias ainda pode ser um privilégio, e, em lugar de reclamar porque a meninada usa iPhone ou iPad demais, quem sabe algumas coisas a gente divide com eles? 

Também fomos inundados por uma sensação de alegria nos primeiros encontros com o novo namorado, desde que tenham sido delicados e românticos, não brutos e sob efeito de alguma droga. Relação de pessoa com pessoa, em qualquer idade, bonito demais. 

Quem não sentiu a alma transbordando na primeira viagem, seja para a praia próxima ou para outro país? Lembro-me da primeira vez em que, a convite para trabalho sobre um livro meu, fui sozinha à Europa. Eu estava acordada, antes mesmo de o dia clarear, quando avistei ao longe, sobre uma enorme paisagem negra, uma fita vermelha que me espantou. Perguntei, ignorante que era, e a comissária me explicou sorrindo que era o amanhecer sobre a África. Até este momento recordo a emoção intensa. 

Às vezes, a alegria é minúscula mesmo, como há instantes tomando café vendo a orquídea amarela que a zeladora de nossa casinha na Serra me entregou da última vez, e continua luminosa. 

Fomos felizes muitas vezes. Isso ricocheta no nosso agora e nos possibilita abrir o coração para tantos momentos bons que se oferecem, mas estamos fechados demais para sentir: um simples acordar com o dia nascendo, uma voz ao telefone, nossa própria divertida perplexidade com alguma bobagem que cometemos - como eu, recentemente, ter deixado o talão de cheques embaixo das carteiras de vacinas de Melanie e Penélope e ficar atormentada até que alguém veio me dizer que tinha encontrado o talão naquele lugar improvável. E me senti, naquele instante, extraordinariamente feliz. 

Como escrevi mil vezes - e repito porque gosto -, não é preciso ter experiências extraordinárias - em geral, inalcançáveis. Basta olhar, sentir e se permitir largar por uns instantes a medíocre lamúria que nos entorta o coração e o pensamento.
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* Escritora
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=6b727b0adb10456c09ea1455af2b21e5
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