quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Um museu em chamas visto por uma de suas antropólogas

Aparecida Vilaça*

Sabemos que não temos mais nada: nem paredes, nem salas, nem acervos, nem livros, pois nossa biblioteca, a mais importante da América Latina em antropologia, queimou-se toda

Como muitas pessoas no Brasil, estive por horas hipnotizada diante da televisão vendo as imagens do fogo consumindo o Museu Nacional domingo à noite. À diferença da maioria das pessoas, entretanto, tentava identificar, em meio aos enquadramentos apresentados na tela, a janela da minha sala, com a esperança de não ver saírem dali as labaredas. Ao telefone, Rafael, com quem divido a sala, tirou-me do devaneio: está queimando, sim, Aparecida! Alguns livros, fitas K-7 originais (mas já copiadas!) das minhas gravações com os índios Wari’, com quem trabalho há 30 anos, computador, câmera, cadeiras, a mesa redonda para conversar com os alunos, as paredes amarelas que eu havia pintado e mesmo as pequenas esculturas de sapos instrumentistas, uma recordação de meu colega e amigo Gilberto Velho.

São, eu sei, perdas muito pequenas se comparadas àquelas de colegas que perderam toda a sua biblioteca pessoal e todo o seu material de pesquisa original. E infinitesimais ainda quando comparadas ao acervo de objetos, registros linguísticos e outros documentos que pesquisadores de todo o mundo haviam depositado ali, por séculos, confiantes de que estariam seguros para a posteridade. Não estavam. E não foi por falha dos nossos dirigentes, uma sequência de bravos diretores do nosso museu, que percorriam incessantemente as diferentes esferas dos governos estadual e federal, onde eram tratados como crianças pedindo um brinquedo novo e supérfluo. Eles sabiam, nós todos sabíamos, o que estava dentro daquelas paredes, e o estado em que se encontravam essas paredes: despencando, com cupins, rachaduras. Ninguém desistia, nem de trabalhar em meio à precariedade, nem de pedir ajuda.

Somos todos mais pobres hoje, mesmo os governantes e políticos que não têm noção da gravidade do que aconteceu, e ficam por aí dando entrevistas em que falam em reconstrução e recuperação, como se dependesse apenas do dinheiro que, agora, milagrosamente, começa a aparecer


Por mais da metade da minha vida frequentei quase diariamente o museu, primeiro como aluna de mestrado em antropologia social, depois como aluna de doutorado e, por fim, com um orgulho incontrolável no peito, como professora desse Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, o mais antigo do Brasil, criado em 1968, no auge da ditadura militar, por professores visionários determinados a criar um espaço para se discutirem questões prementes e fazer ciência em meio ao caos político. Antes do fogo, preparávamos a comemoração dos nossos 50 anos de vida, meio século em que nos mantivemos como um dos melhores programas de pós-graduação em antropologia do Brasil e do mundo. Falar do Museu Nacional em qualquer ambiente acadêmico implica portas abertas e respeito imediato. Hoje isso se reflete na avalanche de mensagens que recebemos de colegas do mundo todo, consternados, oferecendo ajuda, livros, salas de aula.

Segunda-feira de manhã, parados diante do esqueleto do palácio, ainda víamos fumaça saindo de uma das salas da frente. Pedacinhos de papel eram identificáveis em meio às cinzas que flutuavam. Por segurança, os bombeiros não nos deixaram entrar. Consternados, conjecturávamos sobre se isso ou aquilo poderia ter sobrado. Mas sabemos que não temos mais nada: nem paredes, nem salas, nem acervos, nem livros, pois nossa biblioteca, a mais importante da América Latina em antropologia, queimou-se toda. Nós, os professores da antropologia, doutores e pós-doutores, pesquisadores do mais alto nível do CNPq, cientistas da Faperj, com prêmios, medalhas e um enorme reconhecimento internacional, somos agora um bando nômade de funcionários da UFRJ, que ontem, diante do museu queimado, nos reunimos debaixo de uma árvore para dizer, garantir uns aos outros que ao menos estamos juntos. E conosco, ali do lado, com um ânimo de dar esperança a qualquer desabrigado, estavam nossos funcionários e nossos alunos e ex-alunos.

Como não se emocionar ao ver aqueles rapazes e moças, tão jovens, chorando copiosamente, abraçados uns aos outros? Eles estão determinados a continuar, assim como nós. E não pensem que as suas condições ali eram as melhores: boa parte encontrava-se sem bolsas de estudo e sem qualquer dinheiro para pesquisa, consequência dos cortes radicais impetrados pelo governo. E a pesquisa é a base do nosso trabalho. Antropólogos vão para lugares distantes, vivem com outras sociedades e outros povos por meses ou anos a fio, e voltam para nos contar o que aprenderam em suas teses, artigos, livros. Por meio deles vislumbramos outras formas de se viver, temos acesso a preciosos conhecimentos, saberes, técnicas, línguas. Outros mundos, alguns deles em vias de desaparecer, especialmente agora, depois de queimados os seus últimos registros nessas chamas aterradoras. Um conhecimento que se perde para nós, nossos descendentes, e para os próprios povos, que frequentavam o museu buscando conhecer alguns dos objetos produzidos pelos seus avós já mortos, ou conhecer a língua que não sabem mais falar.

Somos todos mais pobres hoje, mesmo os governantes e políticos que não têm noção da gravidade do que aconteceu, e ficam por aí dando entrevistas em que falam em reconstrução e recuperação, como se dependesse apenas do dinheiro que, agora, milagrosamente, começa a aparecer. Se o palácio imperial pode, quem sabe, ser recuperado, o que estava dentro dele, jamais. Nenhum dinheiro poderá comprar o nosso acervo, pois esses objetos, registros, documentos, gravações, papéis, gravuras, não existem mais em nenhum lugar do mundo.

Olhando para o esqueleto do nosso museu, veio-me a imagem de uma imolação, de alguém colocando fogo no próprio corpo como protesto, como revolta por tantos maus tratos e descaso. Compreendendo sua mensagem silenciosa e veemente, colocamos o nosso museu no colo, da forma que nos foi possível, cercando-o com um abraço. Todos juntos, professores, funcionários e alunos que conseguimos entrar em meio à truculência de policiais que jogavam bombas e empurravam pessoas aglomeradas no portão de entrada. Abraçamos o nosso morto, acarinhamos o cadáver da nossa casa.

Ter os meus alunos ao meu lado, fortes, de mãos dadas, esperançosos, carinhosos, fez-me ver uma faceta bonita do caos e acendeu a minha esperança no futuro. Um país em ruínas, corrupto, sem qualquer respeito à educação e à cultura, e esses alunos mostrando que o que experimentam ali é crucial para as suas vidas e que estão dispostos a lutar. Saibam, alunos queridos, que com vocês vivi alguns dos melhores momentos de minha vida, que aprendi certamente mais do que ensinei, e que estou pronta para continuar, para dar aulas debaixo das árvores do nosso jardim, se for o caso.
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*Aparecida Vilaça é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/Um-museu-em-chamas-visto-por-uma-de-suas-antrop%C3%B3logas?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo

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