sexta-feira, 14 de setembro de 2018

ELEIÇÕES DAS PATOLOGIAS



Dunker: "Depois de se bater tanto nas instituições (...), surgiu um discurso que diz: 'Tudo isso que está aí é uma droga, eu não faço parte disso'. Mas, então, onde é que essas pessoas vivem?"


 Às vésperas da mais imprevisível eleição presidencial deste século, o brasileiro tenta lidar com fraturas públicas e privadas que se tornaram parte do cotidiano desde junho de 2013. Os políticos e seus marqueteiros, por sua vez, tentam antecipar quais serão os "afetos mobilizadores" de quem irá às urnas.

"Embora o cansaço seja evidente, os afetos que darão a geografia dessa eleição ainda não estão claros", afirma o psicanalista Christian Dunker, de 52 anos, um caso pouco convencional de intelectual prestigiado entre seus pares (ele leciona na Universidade de São Paulo) e pop entre diletantes e estudantes, com quem se comunica por meio de vídeos no YouTube.

Ele também é um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Nesta entrevista ao Valor, o autor de "Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil Entre Muros" (Boitempo, 2015) e "Reinvenção da Intimidade" (Ubu Editora, 2017), entre outros, fala sobre traumas da polarização política, embates na nova arena digital e sua visão do que chama de neoliberalismo.

Valor: Por que a convivência com quem pensa diferente se tornou tão complexa? Christian Dunker: A imagem que a gente tem de uma conversa polarizada está hiperinflacionada. Ela tem distorções, pois confia que as pessoas estão aguerridas, falando de política dia e noite. Mas isso não é verdade. Pelo o que eu ouço no meu observatório do divã, não é esse mais o tom. Vejo silenciamento, recuo, luto, ressentimento e cansaço, que são afetos mais frios. As pessoas se queixam de que a vida está pior, estão se sentindo mais sozinhas. E, hoje, "mais sozinho" significa menos pancadaria.

Valor: Estão fugindo do "inimigo"...
Dunker: Acontece que o inimigo é superimportante subjetivamente, ele dá sentido à sua vida. Mas, quando está representado como "morto" ou alguém realmente perigoso, de quem não se deve chegar perto - seja ele um petista, seja um coxinha ou do MBL -, isso distancia as pessoas, gerando um sofrimento muito pior. Agora é que estamos pagando a conta.

Vejo silenciamento, recuo, luto, ressentimento e cansaço, 
que são afetos mais frios. As pessoas se queixam de que a vida está pior, estão se sentindo mais sozinhas. E, hoje, "mais sozinho" significa menos pancadaria.

Valor: O que mais pode se esperar dessa conta?
Dunker: Eu tenho ido a escolas e empresas e vejo que a questão do suicídio é muito preocupante. Onde estavam esses jovens há três, quatro anos? De repente isso se tornou visível socialmente, é um problema de outra magnitude. Vive-se muita solidão, com o privado para lá e o privado para cá, sem intimidade. É desamor demais, algo que mói a alma das pessoas. Daí, nessa hora, quando os partidos nos chamam para a campanha, não há mais forças. As pessoas não conseguem ir para outra guerra.

Valor: Como ficam diante disso?
Dunker: Depois de se bater tanto nas instituições, nos partidos, nas autoridades e no poder, surgiu um discurso que diz: "Tudo isso que está aí é uma droga, eu não faço parte disso". Mas, então, onde é que essas pessoas vivem? Na sua bolha mental, numa paisagem de Rivotril artificialmente criada, com retoques de Prozac, uma ajuda da tecnologia e uma Cannabis com álcool para dar uma modulada. Isso tem limites. 

 Vive-se muita solidão, com o privado para lá e o privado 
para cá, sem intimidade. É desamor demais, 
algo que mói a alma das pessoas.

Valor: Vivemos mais um ano com fatos que deixarão marcas profundas na vida pública (em 2018 houve o assassinato de Marielle Franco, a prisão do ex-presidente Lula, o atentado a Jair Bolsonaro) e, logo mais, haverá uma eleição turbulenta. Como isso nos afeta?
Dunker: Ninguém aguenta uma vida de revoluções. A vida não suporta o vazio, mas também não suporta períodos extensos de anomia. Atualmente, uma das formas de criticar o neoliberalismo passa por reconhecer que ele cria anomia para depois administrá-la. Primeiro causa o caos - desarma, desmantela e desmonta instituições -, para em seguida reorganizar os escombros, reaparelhar as ruínas e remontar as coisas.

Valor: Como sua crítica ao neoliberalismo se relaciona com a psicanálise?
Dunker: A ideia da ordem e da desordem foi intrinsecamente perturbada por uma retórica com efeitos reais, segundo a qual a vida precisa estar em permanente renovação e numa hipermodernidade. Isso também tem a ver com um dos processos fundamentais do neoliberalismo, que é a intensificação das experiências. O ideal é que a vida tenha uma estrutura de viagem e que o sujeito esteja sempre viajando. Da viagem se extrai o máximo, com a promessa de uma vida em estágio de extraordinariedade.

 Ninguém aguenta uma vida de revoluções. A vida não 
suporta o vazio, mas também não 
suporta períodos 
extensos de anomia.

Valor: Qual a ligação disso com a crise atual?
Dunker:
Essa promessa de algo extraordinário cria vidas decepcionadas, nas quais, ao menos para uma minoria, os "sucessos" não são nada mais que a prescrição de um destino. Por isso está faltando algo mais, há um déficit de extraordinariedade e de confirmação de certa excepcionalidade. Isso parece ter formado um clima em que era preciso fazer alguma coisa - tanto para a direita como para a esquerda, para o bem e para o mal. Levou a um apossamento da ideia de que é possível mudar. E isso é muito importante.

Valor: Qual a consequência disso?
Dunker: O que a gente teve nesse período de turbulência foi uma intensificação, uma saída do armário dos demônios. É como se a mãe de cada um dissesse que todos somos incríveis e podemos falar qualquer coisa, avacalhar, soltar os cachorros, agredir os outros. Assim foram os processos de identificação grupal que fragmentaram o país.

 Mas eu acredito que estamos em um momento que
 deveríamos valorizar mais, que é extremamente 
democrático, de ampliação da palavra. 
Tem mais gente na conversa.

Valor: O que pensa sobre a nossa dificuldade em debater nos espaços virtuais?
Dunker: Com o advento digital, houve a inclusão no universo da palavra, no sentido de opinar sobre assuntos de interesse público, de 40 milhões de pessoas. É como se 40 milhões de pessoas entrassem numa festa sem formação política específica e com muita insatisfação. Um fala X, o outro fala Y e o terceiro sai gritando. Mas eu acredito que estamos em um momento que deveríamos valorizar mais, que é extremamente democrático, de ampliação da palavra. Tem mais gente na conversa.

Valor: O que pode surgir agora?
Dunker: As políticas são "corpos em disputa", e cada corpo se define por uma gramática básica. Isso tem a ver com narrativas de sofrimento, mas também com afetos hegemônicos. Mais ou menos assim: "Vamos conversar. Mas qual será o tom da conversa? Qual o afeto de base? Será medo, inveja, ressentimento ou desamparo?". Essa não é uma disputa em que se vota. A gente não chega lá e decide que será o medo.

Valor: Qual deve ser o afeto preponderante nesta eleição?
Dunker: Os afetos sempre andam em pares, pelo menos dois. E se alimentam, como o ódio e o medo, o ódio e a inveja, ou medo e inveja. Nessa eleição isso ainda não se formou. Não sabemos qual a dinâmica de afetos que darão a geografia da conversa.

Valor: Os marqueteiros são bons em identificar os afetos mobilizadores?
Dunker: Eles são impressionantes. Vários vêm da psicologia, com background em psicanálise, e podem virar uma eleição com pequenas indicações. Parece mágica. Uma eleição é um processo que exige leitura de subjetividade. Os dados são importantes, mas cada vez mais a teoria da ação racional não está dando certo na economia, nem na psicologia científica e na política. O que o marqueteiro faz é a leitura de subjetividade.
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Reportagem por Por Robson Viturino | Para o Valor, de São Paulo

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