O terceiro episódio da segunda temporada de Black Mirror passou despercebido por muitos – apenas mais um em meio ao clima cyberpunk que a série promove. Porém, The Waldo Moment
conta a história de um urso azul computadorizado (Waldo) que, com seu
sarcasmo, realiza entrevistas com políticos. Ao longo do episódio, Waldo
surfa na onda da lacração e decide se candidatar, sendo uma animação
artificial com resposta ágil e sarcástica versus candidatos humanos
repletos de deslizes carnais. Ainda que não sendo autômato de início,
Waldo abre questões sobre o alcance de tecnologias em espaços de decisão
do poder. Muito além da ficção, avança o uso de Inteligências
Artificiais (IAs) no cotidiano da política e da gestão pública, ainda
que não necessariamente substituindo as decisões humanas, mas provendo
suporte às análises que os humanos tomam. Assim sendo, qual o limite do
uso de IAs e onde estarão os humanos no futuro da relação entre política
e tecnologia? Seremos substituídos?
Política & tecnologia
Uma reivindicação por robôs no lugar de políticos e burocratas pode
ser argumentada por várias suposições populistas: “evitaria a
corrupção”, “promoveria neutralidade política nas escolhas”, “caminharia
mais para decisões técnicas”, ou até mesmo que “teria uma visão mais
holística e simultaneamente hipersegmentada para necessidades dos
cidadãos”. Porém, seriam tais IAs e robôs genuinamente neutros em suas
decisões? Ou mesmo capazes de decisões sensíveis a direitos e garantias
fundamentais? Quem ou o que pautaria o Estado e as políticas públicas?
É Langdon Winner (1986) que aponta, em Do Artifacts have Politics?,
que tal mito de uma tecnologia neutra e apolítica já vem sendo
desmontada há décadas, mas segue presente na seara política como esforço
de tentar despolitizar tal debate. Dois passos teóricos, no entanto,
são centrais:
1. É com a teoria de Determinação Social da Tecnologia (Pinch; Bijker, 1984)
que maturamos que os artefatos tecnológicos são influenciados pelo seu
contexto social. Isto é, conceber que a tecnologia não se desenvolve
apenas como resultado de sua dinâmica interna, mas molda a sociedade de
acordo com seus padrões e também é moldada pelo contexto social; e
2) diante da teoria de Política Tecnológica, na qual Winner (1986)
sugere que prestemos atenção às características das tecnologias em si e
aos significados destas características, isto é, além de apenas jogar
as implicações das tecnologias na conta do determinismo social.
Quase quatro décadas após, no entanto, lidamos com a crescente
virtualização das relações sociais e econômicas. Por um lado, um
movimento internacional pela abertura de dados públicos (Open Data), que esbarra na corrida pela dominância de dados e pela mobilização de algoritmos a interesses privados de corporações.
Por outro lado, uma dominância de aplicativos que facilitam o acesso ao
consumo para quem tem condições de consumir, enquanto impulsiona a
uberização do trabalho na outra ponta (Antunes, 2020).
Assim sendo, no que diz respeito à estrutura social em que a
tecnologia está, não seria possível uma suposta neutralidade utópica
para escolhas realizadas por uma Inteligência Artificial, haja vista que
os conceitos diversos que tal máquina viesse a utilizar já estão
imersos em uma sociedade e que mesmo seu método de aprendizado (learning)
seria realizado em meio a caminhos imersos na influência estrutural.
Além do mais, a própria lógica contida na tecnologia em si, de
classificação de usuários (cidadãos) em formato de dados, já explicita
seu viés – pois nem todas as situações são ou devem ser solucionadas
mecanicamente por dados de cidadãos transformados em unidades binárias
equivalentes.
É, portanto, na relação entre consumo, tecnologia e política que as piadas do outsider
computadorizado Waldo parecem fazer tanto sentido na série àqueles que o
alavancam nas eleições; ou ainda a sedutora ideia de se substituir
burocratas e representantes do povo por IAs. A instantaneidade na
interação dos usuários (cidadãos) e a hipersegmentação de sua narrativa
para com públicos diversos (oriundo da análise segmentada de dados) são
impulsionadas pelo contexto social construído de tal consumo
instantâneo, provocando a política à sua banalização, como se ela fosse
mais um consumo qualquer do dia a dia, tal como delivery. Mas onde,
então, entram as IAs nas etapas dos processos decisórios?
Poder & democracia
As tecnologias – quando abstratas e impalpáveis – não devem pautar
unilateralmente a política e a democracia. Pelo contrário, as
tecnologias – quando materiais e traduzidas à realidade – devem servir
como instrumentos para ampliar e qualificar a participação democrática.
Isto é, não deve existir uma polarização entre “novas tecnologias” vs.
“política”, ou ainda colocar “técnica” como antítese de “política”, uma
vez que tais novas tecnologias podem e devem ser empregadas pela
qualificação da política, gerando insumos técnicos para que decisões
políticas sejam tomadas de forma mais assertiva, com evidências. Caso
contrário, qual o sentido?
Além do mais, não deve existir dicotomia entre direito individual e direito coletivo à tecnologia (José Carlos Vaz, 2016),
principalmente na medida em que ganhos oriundos do acesso coletivo às
tecnologias são traduzidos em avanços tecnológicos que impactam
individualmente os cidadãos – e vice-versa. Em suma, a sociedade ganha
individual e coletivamente quando a tecnologia está à disposição dos
cidadãos; mas perde quando esta tecnologia é restrita apenas a um grupo
seleto, pois limita-se o potencial de avanços coletivos e capilaridade
da inovação. É neste contexto que a exclusão tecnológica também impulsiona a desigualdade econômica e social,
seja em nível local (dentro do próprio país, com a tecnologia não
empregada como direito coletivo) ou em nível internacional (com
submissão e servidão de dados a plataformas internacionais).
Se faz necessário, portanto, debater a função social da tecnologia,
para evitar que o avanço das tecnologias sirva de argumento para
despolitizar o debate tecnológico e transformar a participação
democrática em mera burocracia ou em consumo delivery banalizado – pois
ao contexto do Colonialismo Digital (Renata Ávila Pinto, 2018),
a redução do papel da política a mero consumo individualizado também
compõe a agenda – sem neutralidade – de corporações que se apresentam
como tecnocratas.
Assim sendo, por mais avançadas que sejam as novas tecnologias e a
própria Inteligência Artificial, o processo decisório de tomada de
decisão não deve deixar de ser manifestado pelo ator público humano –
seja este um burocrata do Estado, um representante eleito, ou a própria
sociedade civil organizada -; porém devem as novas tecnologias e as IAs
trazer maior auditabilidade e accountability para fiscalização
do Estado, na mesma medida em que trazem insumos e dados organizados
para que a tomada de decisão humana seja a mais embasada possível.
Portanto, as IAs a serviço da sociedade (como instrumento e artefato
pela qualificação informacional no processo decisório), e não a
sociedade conduzida pelas IAs (e por interesses ocultos de corporações
moldados via algoritmos).
Em suma, as fases de mudanças tecnológicas se apresentam como
momentos decisivos para ou se avançar pela democratização e bem-estar à
sociedade, ou se concentrar tecnologia para domínio de classes e
interesses ocultos. Cabe atenção para que os rumos de novas tecnologias
sirvam exatamente ao próprio povo, especialmente quando diz respeito à
própria organização e estrutura da política. Caso contrário, estaremos
preparados para uma tecnocracia de algoritmos com interesses
corporativos nos conduzindo?
* pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/politicos-serao-substituidos-por-inteligencia-artificial/ imagem da Internet
Um perfil do revolucionário francês, um Che Guevara do século XIX
Socialismo ou República? A extraordinária trajetória de Louis-Auguste
Blanqui, teórico e revolucionário republicano socialista francês, foi a
expressão viva da transição da democracia jacobina radical para o
socialismo proletário, associado aos nomes de Marx, Lassalle e Engels
(não por acaso, na França, esse socialismo era chamado de “socialismo
alemão”).
Nascido em 1805 em Puget-Théniers, Alpes-Maritimes, Louis-Auguste era
filho de Jean Dominique Blanqui, um girondino eleito para a Convenção,
que participou da votação da pena de morte de Luís XVI, e foi
encarcerado durante o Terror, antes de se tornar subprefeito no Primeiro
Império. Blanqui era de aparência frágil e doentia, mas também de
caráter obstinado e violento.
Foi educado em Paris no Colégio Massin onde ensinava seu irmão sete
anos mais velho, Jérôme-Adolphe (pensador liberal que se tornaria o
economista mais célebre da França). Já em 1822 (com 17 anos) militou
contra o processo dos quatro sargentos da Rochelle, acusados de
pertencer a uma sociedade conspirativa e de agitar na sua caserna. Jovem
estudante ao tempo da Restauração, Louis-Auguste aderiu em 1824 à Charbonnerie, os carbonários, organização revolucionária que lutava clandestinamente contra a monarquia dos Bourbons.
Blanqui iniciou-se assim no mundo de sociedades secretas e de
conspirações que o tornariam lendário no século XIX. Foi ferido (três
balas) em 1827 em manifestações de estudantes no Quartier Latin. Em 1828
tentou partir para a Grécia, para ajudar na insurreição desse país
contra o domínio otomano. Em 1829 entrou no jornal Le Globe,
fundado em 1824 pelo liberal Pierre Leroux, como estenógrafo e, depois,
como redator. Combateu o regime de Charles X, na revolução de julho de
1830, com as armas na mão; estudante de direito, participou do “Comitê
das Escolas” que, em janeiro de 1831, manifestou contra a “monarquia de
julho” (a de Louis Philippe, o “rei burguês”, que sucedeu Charles X).
Preso, foi condenado em 1832, no “Processo dos Quinze” como membro da Sociedade dos Amigos do Povo,
onde se vinculou a outros revolucionários, como Philippe Buonarroti
(1761-1837, descendente de Michelangelo, veterano da “Conspiração dos
Iguais” de Babeuf, de 1796), François-Vincent Raspail (1794-1878) e
Armand Barbès (1809-1870). Á primeira pergunta do juiz respondeu:
“Profissão, proletário; domicilio fixo: a prisão”.
Acuado no interrogatório pelo magistrado, rebateu: «Oui, Messieurs, c’est La guerre entre les riches et lês pauvres :les riches l’ont vouluainsi ; ils sont eneffetles agresseurs. Seulement ils considèrent comme une action néfaste le fait que les pauvres opposent une résistance. Ils diraient volontiers, em parlant Du peuple: cet animal est si féroce qu’il se défend quand il est attaqué».
Em 1836 foi líder da Sociedade das Famílias, fundada por
Barbès, sendo condenado a dois anos de prisão por fabricação de
explosivos. Perdoado pela anistia de 1837, militou na Sociedade das Estações;
preparou a insurreição de 12 de maio de 1839 em Paris, que fracassou,
depois de tomar a Prefeitura: o saldo foi de 50 mortos e 190 feridos.
Blanqui, detido, foi condenado à morte em janeiro de 1840 (pena não
executada). Embora possuísse formação universitária (Direito, também
estudou medicina), quando perguntado sobre sua profissão pelo juiz,
respondia: “Proletário” – tornando popular o termo de origem latina (os
que só tinham prole) no seu sentido contemporâneo (depois, Marx o usaria no final do Manifesto Comunista:
“Proletários do mundo, uni-vos!”). E disse: “É meu dever como
proletário, privado dos direitos de cidadania, rejeitar a competência de
uma corte em que só há membros das classes privilegiadas, que não são
meus semelhantes”.
Blanqui lutou pelo sufrágio universal, pela igualdade dos direitos
dos homens e das mulheres e pela supressão do trabalho infantil. Passou
36 anos (quase metade da sua vida) na prisão, sendo por isso conhecido
pelo apelido de “O Encarcerado” (L’enfermé, em francês).
“Socialista utópico”? Com certeza não, pois partidário da ação
revolucionária violenta (diversamente de Saint-Simon, Owen, Fourier,
Considérant). Uma das coletâneas de textos de Blanqui chama-se Instruction pour une Prise d’Armes,
mas, também, não marxista, por não adjudicar nenhum papel histórico
diferenciado à classe operária (ou ao seu governo). Para George
Lichteim, “o que fez decisivo o blanquismo no movimento revolucionário
na França foram as técnicas da conspiração e da insurreição armada, e a
idéia de uma breve ditadura transitória”. Blanqui insistia na
necessidade de una etapa intermediária de “ditadura temporal”, embora
não se referindo a uma “ditadura do proletariado”.
Blanqui, por outro lado, defendeu claramente a ideia de luta de classes,
em clara (e explícita) oposição aos “utopistas” (“Não há uma
comunidade, mas uma oposição, de interesses; não existe outra relação
que a luta entre eles”). Foi, para Arno Münster, “o primeiro que
formulou – depois de Babeuf – a teoria da luta revolucionária de
classes”. Mas não o fazia sobre a base da análise da especificidade
capitalista, mas sobre a lógica dos jacobinos mais radicais, que
defendiam que o direito à existência devia sobrepor-se ao direito de
propriedade. Uma minoria privilegiada, para Blanqui, violava o princípio
de igualdade, vigente na sociedade primitiva.
Como teórico (ou “economista”) crítico do capitalismo, filiava-se às
doutrinas do subconsumo, entendendo que as mercadorias se vendiam
uniformemente por cima de seu valor, não achando que a acumulação
capitalista se devesse à exploração da classe operária (a mais-valia
extorquida no processo de produção), mas ao “excesso” que os
capitalistas cobravam dos consumidores. O lucro do capital, para
Blanqui, não se originava na esfera da produção (a fábrica), mas na
esfera da circulação (o comércio). Chegou à conclusão da necessidade de
uma economia desmonetizada, em que os produtores cambiassem seus bens
pelo seu exato valor de custo, uma teoria pré-proudhoniana que fincava
suas raízes em um país ainda eivado de pequenos produtores rurais e
urbanos.
Blanqui via o conteúdo básico da história no movimento que conduzia
do individualismo absoluto dos selvagens, através de fases sucessivas,
ao comunismo, «sociedade futura» e «coroa da civilização». O meio para
superar o individualismo seria a instrução (pública): “O trabalho é o
povo; a inteligência são os homens que o dirigem”, chegou a escrever.
Mas sua prédica era anti-capitalista: “O capital é trabalho roubado”,
disse, antes de Proudhon (“a propriedade é um roubo”) ou de Marx.
A organização operária através de sociedades secretas obedecia à
forte repressão dos governos da Santa Aliança, em toda a Europa. Em
1844, o levantamento dos tecelões alemães da Silésia (imortalizada na
peça teatral de Gerhart Hauptmann, Os tecelões), provou que a
agitação operária estendia-se por todo o continente. Em 1843, a grande
organizadora operária francesa, Flora Tristán (filha de uma francesa e
de um aristocrata peruano), fazia um chamado: “Venho propor a união
geral dos operários e das operárias, de todo o reino, sem distinção de
ofícios. Esta união teria por objetivo construir a classe operária e
construir estabelecimentos (os Palácios da União Operária) distribuídos
por toda França. Seriam aí educadas crianças dos dois sexos, dos seis
aos 18 anos, e seriam também recebidos os operários doentes, os feridos e
os velhos. Há na França cinco milhões de operários e dois milhões de
operárias”.
A pena de Blanqui foi comutada em reclusão à vida, foi internado no
Monte Saint-Michel, depois na prisão-hospital de Tours, e perdoado em
1847. Chegado à Paris em 25 de fevereiro de 1848, com a explosão da
revolução, fundou a Sociedade Republicana Central. Reclamou, com toda a
esquerda, o adiamento das eleições, organizando as manifestações de 17
de março e 16 de abril (quando esteve à cabeça de uma manifestação de…
cem mil operários!). A 22 de março enviou uma carta “Aos clubes
democráticos de Paris”, afirmando que a substituição de uma monarquia
por um sistema republicano no mudaria nada, se não acabasse com a
exploração operária pelos patrões: “A República seria uma mentira, se
fosse só a substituição de uma forma de governo por outra. A República é
a emancipação dos operários, o fim do reino da exploração, a chegada de
uma ordem nova que libertará o trabalho da tirania do capital”. O
patriotismo popular deveria ser anti-burguês: “Guerra à morte
entre as classes que compõem a nação! O partido verdadeiramente nacional
ao qual os patriotas devem se unir é o partido das massas. Os burgueses
escolhem o regime que faz funcionar o comércio, incluso se está aliado
ao estrangeiro”.
Em 15 de maio tentou uma nova insurreição, mas fracassou, foi detido e
condenado a dez anos de prisão em Belle-Île-en-Mer. Alexis de
Tocqueville, deputado conservador, em Souvenirsde 1848,
lembrou Blanqui como “horrível”: “Tinha suas bochechas macilentas e
enrugadas, os lábios brancos, o ar doente, mau e imundo, uma palidez
suja, o aspecto de um corpo decadente, sem linha visível, com uma velha
levita negra grudada sobre membros esquálidos e descarnados; parecia ter
vivido em um esgoto”.
Militou de novo contra o Segundo Império, proclamado em 1851,
agrupando estudantes e trabalhadores; gozou de breve liberdade entre
1859 e 1861, quando foi novamente encarcerado em Belle-Île-en-Mer (desde
a prisão, dirigiu uma carta-apelo ao comitê socialista de Londres, que
foi publicada, prefaciada por Karl Marx). Novamente escapou e
refugiou-se na Bélgica (Bruxelas), em agosto de 1865, regressando a
Paris quatro anos depois, graças a uma anistia geral; continuou
organizando insurreições (na verdade, putschs armados) que
terminaram sempre em fracasso (e em prisão). Para Anton Pannekoek,
“vinculava-se a Blanqui, o intrépido conspirador revolucionário, o
segmento do proletariado que entendia como necessária a conquista do
poder político por uma minoria decidida, que, conduzindo a massa
mediante sua experiência e atividade, poderia manter o poder através de
uma estreita centralização”. Para Engels, por sua vez, “os blanquistas
eram, outrora, no quadro da grande massa, socialistas, dotados apenas de
instinto proletário-revolucionário”.
Com a queda de Napoleão III, Blanqui reapareceu em Paris em 1870: a
12 de janeiro tentou uma insurreição armada durante o funeral de Victor
Noir, o jornalista assassinado por Pierre Bonaparte (primo do
Imperador). Depois da derrota francesa na guerra franco-prussiana (com a
batalha de Sedan, em setembro de 1870), Blanqui criou um jornal, La Patrie en Danger,
para apoiar a resistência de Gambetta contra os prussianos. Participou
do motim de 31 de outubro de 1870, ocupando a Prefeitura de Paris
durante algumas horas: detido, por isso, na véspera da Comuna de março
de 1871, e condenado à deportação pelo governo de Adolphe Thiers, foi
internado em Clairvaux em razão de sua idade (66 anos).
A maioria na lendária Comuna era composta por seguidores de Blanqui: o
“partido blanquista” era uma realidade, organizado em “seções”, segundo
a tradição jacobino-radical da I República. Disse Engels: “Os membros
da Comuna dividiram-se em uma maioria, os blanquistas, que predominaram
no Comitê Central da Guarda Nacional, e uma minoria, os membros da
Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que compunham a escola
socialista preponderantemente formada por adeptos dos proudhonistas”.
Edouard Vaillant, responsável educacional da Comuna, por exemplo, era
membro do partido blanquista (no entanto, segundo Engels, “conhecia o
socialismo científico alemão”). Os blanquistas, que não faziam parte da
AIT (fundada em 1864), foram desde o início maioria no Comitê Central da
Guarda Nacional, e buscaram derrubar o governo provisional de Louis
Jules Trochu e, depois, de Thiers. Por duas vezes antes de 18 de março
de 1871 (proclamação da Comuna), em outubro de 1870 e janeiro de 1871,
organizaram insurreições que tinham como objetivo explícito a
instauração da Comuna, porém foram mal-sucedidos. Os blanquistas
cultivavam uma teoria conspirativa e “vanguardista” da revolução,
julgavam que a revolução seria conduzida no início pela vanguarda de um
pequeno grupo de revolucionários dedicados, nos moldes dos jacobinos da
Revolução Francesa de final do século XVIII.
Mas, simultaneamente, mantendo uma organização clandestina e coesa de
militantes disciplinados e dedicados, os blanquistas puderam fazer um
amplo trabalho de divulgação revolucionária no proletariado, mesmo sob
as repressivas condições do regime de Napoleão III, e forjaram um
conjunto de lutadores que se conheciam mutuamente e eram reconhecidos
pelos demais operários por sua honestidade e abnegação. Esse conjunto
pôde, quando a situação revolucionária se estabeleceu, tomar decisões
rápidas e decisivas, e mais ou menos afinadas com o estado de ânimo do
conjunto da classe. A ligação concreta e viva com a vida da classe
acabou suprindo as debilidades de sua ideologia.
Para Engels, “os proudhonistas foram, em primeira linha, os
responsáveis pelos decretos econômicos da Comuna, tanto pelos seus
aspectos gloriosos quanto inglórios, tais como os blanquistas, por suas
ações e omissões políticas. E, em ambos os casos, quis a ironia da
história – tal como, de costume, quando doutrinadores assumem o timão do
navio – que uns e outros fizessem o contrário daquilo que prescrevia
sua doutrina de escola: os blanquistas, educados na Escola da
Conspiração, mantidos coesos pela disciplina férrea que a esta
corresponde, partiam da concepção de que um número relativamente pequeno
de homens decididos e bem organizados seria capaz de, em certo momento
favorável, não apenas assumir o timão do Estado, como também de,
mediante a dinamização de grande e implacável energia, mantê-lo o tempo
necessário, até que conseguissem arrastar a massa do povo para a
revolução, a ser agrupada em torno do pequeno grupo dirigente. Para
tanto, seria indispensável a mais severa e ditatorial centralização de
todo o poder nas mãos do novo Governo Revolucionário”.
E, sempre segundo Engels, “o que fez a Comuna, cuja maioria era
composta precisamente por esses blanquistas? Em todas as suas
proclamações, dirigidas aos franceses da província, conclamou estes à
formação de uma Federação Livre de Todas as Comunas Francesas com Paris,
à formação de uma organização nacional que, pela primeira vez, devia
ser criada verdadeiramente pela própria nação. Precisamente o poder
opressor do Governo Centralista, então existente – as forças armadas, a
polícia política, a burocracia, criadas por Napoleão, em 1798, e que,
desde então, foram assumidas por todos os novos governos como
instrumentos bem-vindos, a serem utilizados contra seus adversários –
precisamente esse poder havia de sucumbir, por todos os lados, tal como
em Paris já havia sucumbido”.
Depois da “semana sangrenta” de maio e do fim da Comuna, os
blanquistas, a grande maioria presos ou exilados (o próprio Blanqui foi,
novamente, condenado à deportação em 1872), acabaram aderindo à AIT nos
seus derradeiros anos de existência, mas não superaram suas idéias, e
desapareceram enquanto corrente do movimento nos anos seguintes. Para
Friedrich Engels, em O Programa dos Exilados Blanquistas da Comuna:
“Blanqui é essencialmente um político revolucionário. Ele é um
socialista só através de sentimentos, através de sua simpatia para com o
sofrimento do povo, mas ele não tem nem uma teoria socialista, nem
quaisquer sugestões práticas definitivas para soluções sociais. Na sua
atividade política, era essencialmente um homem de ação, acreditando que
uma pequena minoria bem organizada iria tentar um golpe de força
política, no momento oportuno, e poderia levar a massa do povo com eles,
através de alguns êxitos, e assim dar início a uma revolução
vitoriosa”.
Entre os anarquistas, a Comuna teve a consequência de enfraquecer as
concepções cooperativistas proudhonianas, e reforçar as tendências
bakuninistas. Nem anarquista nem marxista, mas sempre “blanquista”,
Blanqui escreveu centenas de artigos e, em L’Eternité par les Astres (de
1872) defendeu a teoria do “eterno retorno” (bem antes de Nietzsche):
os átomos de que estamos compostos se reproduzem uma infinidade de vezes
em infinitos lugares, de modo tal que todos teríamos uma infinidade de
sósias…
A França pós-Comuna foi o berço das correntes que se tornaram
predominantes no anarquismo europeu nas décadas seguintes: o
anarco-sindicalismo e o terrorismo individual, em cujo corpo de ideias
as lições da revolução parisiense tinham pouco espaço. Em 1871,
portanto, quando caíram os últimos communards atingidos pelas
balas da reação, encerrou-se um capítulo da história do movimento
operário e socialista mundial. Uma cortina de violência desceu sobre o
cenário político europeu. Liberais e conservadores, republicanos e
monarquistas se uniram numa nova santa aliança contra o proletariado
revolucionário.
Ainda assim, na Bélgica, o país relativamente mais industrializado da
Europa, Bakunin e Blanqui ainda acharam eco entre os operários
francófonos (valões), mas a socialdemocracia alemã (marxista) tinha mais
influência entre os flamencos, de fala germânica. Eleito deputado em
Bordeaux em abril de 1879, Blanqui teve sua eleição invalidada, por se
encontrar detido, não pode assumir a cadeira, mas foi indultado e
liberado em junho. Em 1880, lançou o jornal Ni Die uni Maître,
que dirigiu até sua morte, vítima de derrame cerebral, depois de
pronunciar um discurso em Paris, a 1º de janeiro de 1881. Foi enterrado
no cemitério de Père Lachaise, em um túmulo criado pelo artista Jules
Dalou. Seu principal livro, Crítica Social, de 1885, na verdade uma vasta coletânea de artigos, foi de publicação póstuma.
Morto Blanqui, acabou o “blanquismo”? Como epíteto, ele sobreviveu em
muito à pessoa que o inspirou. O blanquismo influenciou fortemente os
populistas russos (narodniki). Nos primórdios do socialismo
russo, e ainda muito depois, não faltaram os que quiseram contrapor o
“espontaneísmo democrático” do jovem Trotsky ao “blanquismo ditatorial”
de Lênin, com sua teoria do partido centralizado e profissional, que
expusera no Que fazer, embora o próprio Lênin afirmasse que os
blanquistas acreditavam que “a humanidade se libertaria da escravatura
assalariada não por meio da luta de classe do proletariado, mas graças à
conspiração de uma pequena minoria de intelectuais”. Ainda depois da
vitória soviética de 1917, os bolcheviques continuaram sendo acusados de
“blanquismo”, tanto pelos seus adversários à direita (socialdemocratas)
como à esquerda (os “comunistas conselhistas”).
Em Il Popolo d’Italia, o jornal fascista fundado e editado por Benito Mussolini, o epígrafe era uma sentença de Blanqui: “Chi hadel ferro hadel pane”
(“Quem tem ferro [armas] tem pão”). Walter Benjamin o considerou, em
suas “Teses sobre a História”, como o personagem mais intimamente ligado
ao século XIX. Blanqui não virou rosto de camiseta, nem de pôster, como
Che Guevara. Mas é, atualmente, em Paris e outras cidades francesas,
nome de rua, boulevard, praça, e até de estação de metrô. Foi “recuperado” pela iconografia oficial.
Revolucionário francês, talvez o maior de todos, Blanqui não superou,
doutrinal ou politicamente, as condições históricas, econômicas e
políticas de seu próprio meio, no sentido amplo. Sua política e sua
teoria (no seu caso, praticamente uma coisa só) não resistiram à
passagem do tempo, nem sequer no curto prazo. Mas, marcaram
decisivamente seu tempo, por isso o fantasma de Blanqui reaparece uma e
outra vez, nos debates políticos.
*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).
Refrências
Alexis de Tocqueville. Souvenirs de 1848. Paris, Gallimard, 1964.
AngiolinaArru. Clase y Partido em la I Internacional. El debate sobre La organización entre Marx, Bakunin y Blanqui 1871-1872. Madri, Comunicación, 1974.
Anton Pannekoek. Die neue blanquisme. Der Kommunist nº. 27, Bremen, 1920.
Arthur Rosenberg. Democracia e Socialismo. São Paulo, Global, 1986.
Friedrich Engels. O programa dos exilados blanquistas da Comuna. In: Osvaldo Coggiola (ed.). Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo, Xamã, 2001.
George Lichteim. Los Orígenes del Socialismo. Barcelona, Anagrama, 1970.
Gustave Geffroy. L‘Enfermé. Paris, 1897.
Louis- Auguste Blanqui. Maintenant, Il Faut des Armes. Paris, Éditions La Fabrique, 2007.
Louis-Auguste Blanqui. Écrits sur La Révolution. Textes politiques et lettres de prison. Paris, Galilée, 1977 (prefácio de Arno Münster).
O diálogo não é um desafio de entrevista: é um
obstáculo humano e quase universal
29 de
setembro de 2021 | 03h00
Meu canal
no YouTube (Prazer, Karnal) e a pandemia estimularam uma nova faceta
profissional. Virei entrevistador. Função curiosa para a qual não houve
preparo. Não fiz curso, nem sequer li um livro introdutório (algo no estilo
“Como se tornar entrevistador”...). Aliás, não existe um curso superior sobre
entrevistas. O mais próximo disso é um jornalista que tem de estudar muitas
coisas, não apenas a arte de entrevistar.
Por outro
lado, assisti, como você, querida leitora e estimado leitor, a muitas entrevistas
ao longo de minha vida toda. Fui entrevistado algumas vezes. A partir dessa
experiência, lanço a pergunta: o que é ser um entrevistador?
Eu
começaria dizendo o comum: há entrevistadores que têm enorme amor à própria
voz, preferindo ouvi-la mais tempo à do entrevistado. São os que se aproveitam
de quaisquer deixas e fazem longos comentários pessoais a cada resposta. Em
resumo: são entrevistadores que não deixam o entrevistado falar. Sim, feche os
olhos e logo lhe vem à cabeça um ou dois tipos assim.
Há,
claro, o entrevistador advogado do diabo. Busca as contradições de cada fala,
apresenta provas contrárias ao que foi dito, estabelece as incoerências e, no
fundo, “detona” o entrevistado. Há tipos ainda mais complexos, pois montam
armadilhas para os entrevistados: colocam no ar um inimigo dele para uma
pergunta ao vivo na busca de uma humilhação disfarçada como “debate”. Há os que
agridem o entrevistado, inclusive fisicamente. De uns tempos para cá, ser
entrevistado tem risco de hematoma.
Há ainda
outro tipo de armadilha com entrevistados: recebo você, deixo-o à vontade,
sirvo água e cafezinho, conversa “fiada” enquanto arrumamos as luzes e os
microfones. Bem relaxado, o entrevistado emite opiniões variadas e livres, mais
“solto” do que se estivesse sendo filmado. Enfim começa a entrevista formal só
que os trechos que mais serão aproveitados são os primeiros, quando o
entrevistado supunha que ainda não estivesse sendo gravado. É uma
entrevista-armadilha, infelizmente real e até comum.
Uma boa
entrevista tem como alvo o diálogo entre uma pessoa e um público. A pessoa é
seu convidado e, como tal, merece todo respeito. O público também merece o
melhor possível de dados e de informações. O entrevistador é um intermediário
que facilita a comunicação entre os dois mundos. A primeira virtude do
entrevistador é o controle do narciso. Não pode se comportar como um aluno mais
velho que ataca os que estão começando aquele estudo. Existe, diante de mim, um
ser humano que tem algo a dizer. Existe um público a quem também eu sirvo. Eu
sou a peça mais descartável de todas naquela situação. No máximo, sou um
facilitador, um esclarecedor. Assim, cabe a mim deixar a pessoa bem à vontade
para ela não se sentir agredida ou constrangida. Há pessoas tímidas e o bom entrevistador
deve lidar com isso. Devo também lidar com o respeito ao público. Muitos
entrevistados querem apenas falar de coisas positivas e eu posso trazer, com
todo respeito, outro olhar. Não creio que um entrevistador bom deva ficar em
silêncio quando uma opinião contrária à ética seja emitida na entrevista.
Existem dois polos a serem evitados: um é a vontade de destruir o entrevistado,
de “lacrar”, chocar, causar impacto e colher likes. Nesse caso, não estou
entrevistando alguém, mas “bombando” a audiência do meu canal ou do meu veículo
de comunicação. Não entrevisto, apenas miro na minha carreira e nos ganhos da
audiência monetizada. Esse tipo de entrevistador é, no fundo, um mercador
desonesto. No polo oposto, aquele que concorda com as maiores barbaridades
ditas pelo entrevistado, inclusive racismo ou homofobia. Assim, poderíamos
dispensar o entrevistador e dizer ao entrevistado: fale o que quiser por todo o
tempo que puder.
Devo
pontuar a entrevista com tópicos de interesse público. Devo dirigir a resposta
de volta ao tema da pergunta quando o entrevistado foge do tópico. Introduzo
algum humor para dar leveza. Confiro ritmo, sem quebrar a cada instante as
frases. As técnicas não são fixas, porém se adaptam ao tipo do entrevistado e
ao tema. Nunca devo promover “armadilhas” para alguém que aceitou falar comigo.
É desonesto. Com frequência, a falta de caráter se traveste de interesses
nobres como “interesse do público”.
A boa
entrevista tem um traço de maiêutica socrática: busca a resposta dentro do
entrevistado. A boa pergunta tem o traço do mestre de Atenas: revela algo para
o público e, igualmente, para o entrevistado. É uma arte de dar à luz, trazer
algo à vida, sem fórceps, da forma mais natural possível.
O diálogo
não é um desafio de entrevista: é um obstáculo humano e quase universal. A
comunicação é complicada, sempre. Se enfrentamos problemas para diálogos em
família, com ambiente reduzido e conhecido, imaginem-se os obstáculos com
pessoas mais desconhecidas.
A favor
do entrevistador? Quase todo mundo quer falar, e muito. Adoramos falar de nós
mesmos. Tenho entrevistado a quem mal consigo dizer um “boa noite” e dali sai
uma saraivada de fatos e histórias. Há pessoas muito divertidas. Outros, um
pouco menos. O narciso é universal, inclusive de quem faz as perguntas. O dom
do silêncio é algo escasso sob holofotes. Minha esperança é aprender a me ouvir
para ser capaz de escutar outros de forma intensa. Acho que é a virtude final
de um entrevistador: ser analisado antes de se dispor a analisar alguém.
É
HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR
DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS
“A noite não adormece nos olhos das mulheres”
(EVARISTO, 2017, p. 26). Li este verso de Conceição Evaristo à noite,
quando descansava os olhos fora da tela do computador que me prendeu por
todo o dia. Enquanto lia, pensava nas roupas que estavam dentro da
máquina esperando meu intervalo para colocá-las no varal. Lembrava
também que o feijão cozido tinha acabado e vi em algum lugar que devemos
colocar os grãos de molho por algumas horas antes do cozimento. Lembrei
de minha mãe, e de como eu sempre acordava depois dela e dormia antes.
Hoje em dia é raro eu dormir antes de alguém, as noites foram encurtando
conforme eu cresci.
À noite, ninguém me apressa. Escrevo no meu tempo. Não há
nada a ser enviado pois o horário é impróprio para incomodar pessoas
decentes. Penso melhor no silêncio, organizo minhas elaborações
textuais, enxergo os erros e acertos da pesquisa, me vejo nela. Pesquiso
a fé individualizada, que foge das instituições, que se faz recolhida
nas realidades de quem as professa e não quer se adequar às normas das
igrejas, dos terreiros, dos templos. E nem sempre por discordar das
regras, muitas vezes por reconhecê-las como legítimas e afirmar não ser
possível viver aquele tipo de experiência. Dizem: “Muito obrigada, mas
hoje não.”
Vivem uma fé gratuita, quase sempre herdada desses mesmos lugares que
se tornaram distantes de suas realidades, dotada dos mesmo elementos e
tradições que tomam outros significados quando adequados a outro
cotidiano. São pessoas sem religião, mas religiosas. Tudo é uma questão
de como se conceitua o sentimento de crer sem pertencer, que continua
existindo com ou sem conceito. Tenho interesse na fé, mas mais que isso,
me interesso pelas pessoas, por suas histórias, pelo antes e pelo
agora. A pesquisa acontece no momento em que conheço mulheres
trabalhadoras do sexo que decidem me contar suas vivências de fé
desvinculadas das religiões, mas essa fé não existe sozinha. Penso: como
separo a fé e a pessoa? Como conto a história de alguém? Como separo eu
e minha pesquisa? Por que estudo histórias de fé de trabalhadoras
sexuais? O que essas mulheres sentem? Qual a distância entre nós?
Quando percebo, sou meu trabalho, estou ali amarrada pelo recorte de
gênero. Consigo apostar que, assim como eu, elas estão acordadas
enquanto os outros dormem, pensando em seus filhos e suas filhas, no
almoço e no jantar do próximo dia, visitando algumas memórias, lembrando
das roupas sujas que continuarão sujas se elas não fizerem nada. “A
noite não adormece nos olhos das mulheres, há mais olhos que sono”
(EVARISTO, 2017, p. 26). Não falo que não nos cansamos, mas que não
dormimos. Nosso cansaço é antigo, se torna parte de nós. Vemos nossos
colegas de trabalho avançarem nas nossas frentes enquanto fazemos o café
das reuniões. Ganham cargos importantes e comemoram com belos jantares
enquanto preparamos a comida e limpamos a sujeira.
E aprendemos que é preciso uma distância do objeto de estudo, um
ateísmo metodológico, devemos deixar as emoções de lado e trabalhar
racionalmente. Mas eu não sei não me envolver. Quando entrevisto
mulheres e elas dizem que algo dói, eu sinto, é também minha dor. Quando
eu escrevo que vidas marginalizadas importam, que são também frágeis e
devem ser cuidadas, que histórias de vida de trabalhadoras sexuais devem
estar junto das histórias de vida dos papas, eu sei sobre quem estou
falando, sei nomes, sobrenomes e endereços. Minha fala tem lugar e
referencial, posso apontar para a realidade e mostrar o que minhas
palavras dizem. Falo sobre fome, pobreza, gênero, violência, fé, dor e
rupturas. Quando falo sobre o outro, ou a outra, eu posso te dizer
nomes, se quiser. São pessoas, não conceitos. Por ser uma fala
localizada, vai ficando pessoal, me pego escrevendo sobre mim e sobre
minha família para explicar minha perspectiva, quando o sistema me pede
para escrever no plural e me mostra que ciência não é sobre o
particular. Onde acho o plural se não no particular?
Isso se torna um problema quando entrego os textos porque
me entrego junto. Com as análises, vão os sacrifícios que faço para me
manter pesquisadora, a tristeza de não ver minhas semelhantes em lugares
de poder. Ser exceção nesses espaços já corta nossas esperanças antes
de começarmos a jornada. Apesar de estudar e reconhecer as violências de
gênero, quando acontecem comigo eu demoro alguns instantes, nem sempre
sei o que dizer, nem sempre digo algo. Quando digo, tento entender,
antes, o que fiz ou falei de errado, se meu tom foi muito rude. Volto o
problema para mim antes de ficar irada. Quando a violência é contra
outra mulher, eu não vejo distância alguma. É também comigo, pertenço ao
particular de mulher. Há algo nelas que também pertence a mim, e o que
escrevo não é só meu, ou somente eu.
“A noite não adormece nos olhos das mulheres” (EVARISTO, 2017, p.
26), mas precisamos dormir. Nos doamos demais nos nossos trabalhos, nas
linhas que escrevemos. Ser pesquisa e pesquisadora nos ocupa
integralmente. Gênero é muito mais que categoria de análise, é um
marcador existencial. Mas exaustas e com sono disputamos os mesmos
lugares com homens descansados e nutridos, criados para desenvolver suas
habilidades sem se preocuparem com a dimensão privada da vida. Suas
casas são apenas casas, e não oficinas. Seus jantares são apenas comida,
não os fizeram. Conseguem falar sobre mulheres no universal sem
identificá-las na realidade, sem chorar suas dores. Conseguem dizer que
temos que ler mulheres, mas não sabem o que é uma mulher, se perdem nas
idealizações, nos arquétipos. Por não dormirmos, estamos exaustas. Somos
como Adélia Prado quando diz em seu poema Exausto “eu quero
uma licença de dormir, perdão pra descansar horas a fio, sem ao menos
sonhar a leve palha de um pequeno sonho”. Quero, com outras mulheres,
acordar descansada, sem culpa. Ser “semente. Muito mais que raízes.”
(PRADO, 2015, p. 28), potência, mais que alicerce.
Referências
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. Ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
PRADO, Adélia. Poesia Reunida. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2015.
Escrito por Pierre Charbonnier (Tradução de Fabio Mascaro Querido) | Imagem:
Logo adiante você lê um trecho de Abundância e liberdade, primeiro livro do filósofo Pierre Charbonnier (foto) no Brasil, publicado pela Boitempo Editorial com tradução de Fabio Mascaro Querido.
No livro, Charbonnier - que trabalha no Centro Nacional de Pesquisas
Científicas da França - argumenta que para entender o que está
acontecendo (nos campos político, ambiental, econômico, dentre outros)
com o planeta é necessário retornar às formas de ocupação do espaço e do
uso da terra vigentes nas sociedades da primeira modernidade ocidental
(até o século XVII). Chega a essa ideia a partir de uma investigação
filosófica sobre as origens da história ambiental, construindo uma
interpelação sobre os sentidos da palavra liberdade neste momento de
crise.
***
Um abismo se abriu entre o horizonte ordinário da ação política e a
magnitude das mudanças de que nos falam os cientistas. A crise climática
e o conjunto de perturbações que a acompanham nos aparecem, pela sua
dimensão, como demasiado maciças e intimidadoras para serem objeto de
uma resposta adequada, isto é, ajustada às suas características
materiais. E ainda que, graças à história, já conheçamos bastante bem o
feixe de causas que provocaram o atual descarrilamento geoecológico, a
reviravolta exige um esforço que interesses imediatos, hábitos
consolidados e a inércia dos dispositivos técnicos tornam difícil de
imaginar. Este é, aliás, o paradoxo expresso pelo conceito de
antropoceno, atualmente em voga: a humanidade dotou-se de tal poder que
se tornou um ator geológico, mas, ao mesmo tempo, criou um monstro, um
objeto em grande parte fora do alcance das capacidades de controle do
qual, no entanto, se orgulha. A política do antropoceno apenas expôs,
assim, a lacuna impressionante entre o nível de exigência que nos é
imposto pela provação climática e o alcance de nossos dispositivos de
regulação.
Mas esse abismo, se existe, não deve ser reificado: ele não decorre da natureza da ação e do pensamento político in abstracto,
mas da forma como nossos instrumentos de governança são concebidos,
assim como da defasagem entre eles e as aspirações coletivas que, porém,
pretendem traduzir. Esses instrumentos funcionam agora, nas palavras de
Jedediah Purdy, como “infraestruturas de decisão” que “nos mantêm
afastados dos problemas mais importantes” e nos constrangem a viver no
âmbito de “instituições e práticas que, embora tenham sido refutadas
pelas circunstâncias, denunciadas como inadequadas, ainda assim
persistem”.[nota 1] Privados dos meios de ação
adaptados à situação em que vivemos, circunscritos a uma arquitetura
jurídica que define o quadro e os limites às intervenções até agora
implementadas, somos sempre tentados a depor as armas e a situar a
questão ecológica para além — em uma luta pela sobrevivência ou pela
salvação — ou aquém — na acumulação de gestos individuais — da política.
Curiosamente, a questão ambiental havia padecido por várias décadas de
um defeito oposto. A inquietação que carregava consigo era, de certa
forma, subdimensionada em comparação com as questões sociais que
dominaram os debates até o final do século XX: a conquista da justiça
econômica e social, a descolonização, os direitos humanos, mas também,
mais simplesmente, o imperativo de desenvolvimento material, lançavam
uma sombra intimidante sobre a defesa dos ambientes naturais, que só
poderia legitimamente aparecer como uma luta secundária. Por muito
tempo, a ecologia permaneceu como prima pobre da crítica social,
justamente porque não se percebia como ela poderia captar demandas
radicais por justiça. Felizmente, esse período ficou para trás, e a
ideia de que a ecologia política reconfigura e prolonga as lutas do
passado não é mais considerada uma hipótese extravagante. O
ambientalismo clássico, que fazia da natureza seu fetiche e de seu gozo
livre seu ideal, deu lugar a uma reformulação material dos conflitos
sociais, em maior sintonia com sua história.
Isso não significa, entretanto, que finalmente dispomos de uma
bússola intelectual e prática capaz de nos guiar em meio ao desafio
climático. A linguagem política moderna está tão profundamente ligada a
formas de apropriação do solo, de gestão dos recursos e de autoridade
científica agora obsoletas que precisa passar por uma mutação completa e
exigente. Encontramos elementos nesse sentido nos movimentos de
simetrização, com frequência erroneamente atacados como uma destruição
da modernidade. O questionamento da ordem epistêmica e política que
mantinha afastados o social e o natural, o Ocidente e o resto do mundo,
foi, na realidade, uma tentativa de salvaguardar a reflexividade
política contra qualquer fixação, ou seja, contra a ilusão de que aquilo
que, em determinado momento da história, tinha se constituído como um
motor de progresso, continuaria assim para sempre. O regime da dupla
exceção, que por muito tempo garantiu aos modernos sua dominação
ecológica e política, se tornou — queiramos ou não — inoperante pelos
acontecimentos recentes, e, por isso, outras formas de se estabelecer no
mundo precisam avançar sobre seus escombros. Os imperativos de ontem
podem muito bem, portanto, se constituir nas ameaças de hoje, mas é
preciso muita prudência quando se trata de decidir o que queremos herdar
e de quais fardos históricos queremos nos livrar.
[...] Os acontecimentos do presente nos incitam a reler a tradição
filosófica e suas principais categorias colocando no centro do jogo a
ocupa ção e o uso da terra, assim como as relações entre as autoridades
científica e política. Não porque a questão ecológica tenha sempre
estado presente, à sombra da filosofia, mas porque essa ocupação e esses
usos, na medida em que são elementos onipresentes do imaginário
político moderno — para o bem ou para o mal —, nos permitem identificar
um fio condutor na longa temporalidade dos conflitos sociais. O espaço
coabitado e suas características materiais fornecem pontos de ligação a
um conjunto de regras de acesso, de exploração, de distribuição, a
formas de conhecimento ou de cooperação, e dão origem a rivalidades e
alianças que constituem a trama de nossa expe riência histórica. O breve
período durante o qual a abundância material e energética pôde gerar a
emancipação coletiva, período que agora está em vias de se encerrar,
contribuiu para afastar de nosso horizonte esses componentes da vida
política. Acreditávamos então que pensar politicamente significava
pensar as condições abstratas da justiça, ditadas pela deliberação
intersubjetiva, ao passo que essa abstração era um efeito das condições
materiais bem particulares que tornaram possível a autonomia-extração.
Essa é também a razão pela qual esses componentes materiais se fazem
ouvir com estrondo. Muitos se surpreendem, hoje, que algo tão trivial
como o clima possa ter um significado político — e alguns, diante desse
lembrete perturbador, preferem negá-lo. Ver o acúmulo de ondas de calor,
os eventos climáticos extremos, o derretimento de geleiras ou o colapso
de popula ções de insetos como fenômenos políticos de grande
importância está em descompasso manifesto com nossa definição implícita
do que é político. É necessário, portanto, reaprender a pensar nossos
arranjos com a terra, sem cair na dupla armadilha representada, por um
lado, pela idealização de um estado anterior à abundância — que nada
tinha de ideal e que está perdido para sempre —, e, por outro, por um
naturalismo político para o qual, para fazer frente ao desafio
climático, bastaria estar atento às normas imanentes ao mundo vivo. Não
podemos, portanto, nos reconectar com uma imemorial sobriedade feliz,
nem que seja apenas em função da importância das lutas industriais em
nossa definição do espaço democrático e científico, e tampouco podemos
considerar o futuro como o prolongamento de uma dinâmica histórica
familiar.
É isso que torna a situação atual tão trágica. A crise ecológica e
climática provoca uma ruptura quase total das pontes que habitualmente
nos ligam ao passado — porque a terra que habitamos não é a mesma de
antes —, mas também ao futuro tal como o havíamos imaginado até agora.
Herdamos um mundo em que nenhuma categoria política disponível foi
projetada para gerir e, nesse sentido, legamos uma tarefa aparentemente
impossível. Essa solidão histórica, o fato de o passado e o futuro nos
aparecerem como definitivamente perdidos, assim como o desânimo que a
acompanha, podem, no entanto, ser atenuados se conseguirmos contar nossa
história recente e organizar o mapa dos nossos vínculos de tal forma
que a política e o uso da terra não sejam mais heterogêneos um em
relação ao outro. O realinha mento da questão social com a questão
ecológica, sem evidentemente negar os abandonos e as mudanças de escala
que as mantêm afastadas, permite conferir a esse tecido histórico
dilacerado uma parte de sua unidade, e à ação política uma parte de seus
pontos de referência.
Em um artigo marcante, Dipesh Chakrabarty afirmou, há dez anos, que
“nenhum debate sobre a liberdade desde o Iluminismo demonstra uma
consciência da dimensão geológica da agência humana, que tomava forma,
porém, ao mesmo tempo e por meio dos mesmos processos que a aquisição da
liberdade. Os filósofos da liberdade, acrescenta, estavam sobretudo
ocupados — e compreensivelmente — em encontrar formas de escapar da
injustiça, da opressão, da desigualdade, ou mesmo da uniformidade”.[nota 2]
A afirmação é de fato verdadeira se compreendermos a ação geológica no
sentido maximalista que lhe foi dado pelos teóricos do antropoceno. Mas a
dimensão ecológica da ação coletiva, entendida em um sentido
ligeiramente mais amplo, saturou esses debates, pelo menos nos
bastidores. A conquista da autonomia e o estabelecimento dos
dispositivos jurídicos, técnicos e econômicos da abundância foram em
grande parte concebidos nos mesmos moldes, a fim de lidar com problemas
considerados idênticos. É o que chamei de “pacto liberal”: a fórmula
teórica e prática que fez do crescimento intensivo, depois extensivo, o
veículo da emancipação política, ampliando o horizonte do possível. Essa
ligação entre a formação do mundo material e a conquista da liberdade
era, sob muitos aspectos, uma ligação indireta e despercebida — e é isso
o que torna a afirmação de Chakrabarty compreensível. A base ecológica
das controvérsias políticas estava frequentemente implícita, como algo
que assombra o pensamento sem, porém, ser formulado.
Seja como for, o historiador indiano, nessa passagem, apontou para o
verdadeiro problema: em que medida o processo interminável de aquisição
da liberdade está sujeito a uma história material, e como essa história
coloca em questão o significado dessa conquista? Pode-se ver claramente
aqui o descompasso com a tese clássica do materialismo histórico,
outrora no centro da paisagem crítica. Para ela, a vocação da práxis era
produzir liberdade ao mesmo tempo que produzia o mundo humano.
Doravante, a história ambiental das ideias políticas deve permitir — ao
lançar luz sobre os domí nios geoecológicos nos quais a razão política
moderna se apoiou — proteger e estender a esfera da liberdade garantindo
a reprodução do mundo vivo.
***
Esse desajuste conceitual e político não é evidente por si mesmo,
sobre tudo porque, no passado, a ecologia política foi essencialmente
formulada como uma crítica do progresso. Ou, mais precisamente, como uma
crítica do confisco do sentido do progresso por dispositivos técnicos e
econômicos autônomos e cegos, cujo poder alienante precisava ser
denunciado. Da Escola de Frankfurt a Marcuse e André Gorz, essa crítica
se inscreve em um julgamento da razão instrumental moderna, que teria
falhado em sua missão emancipatória. Ou, o que é mais ou menos a mesma
coisa, que teria excedido seus propósitos originais a fim de deixar o
campo aberto a uma utopia formalista infernal. A hipótese fundamental
que animava esse movimento supunha que a abolição das estruturas da
alienação, quer se apliquem ao homem ou à natureza, permitiria
reconquistar uma humanidade livre por essência, capaz de reconstituir o
que sempre deveria ter sido a relação com o mundo. Eliminados os desejos
inautênticos criados pelo capitalismo tecnocientífico para se
autojustificar, finalmente removeríamos a pesada pedra colocada sobre a
liberdade humana pelos abusos da razão.
Anular com um único gesto as duas grandes explorações que definem a
era industrial era evidentemente um objetivo louvável. Mas o problema é
que essa aposta não resiste à análise: na verdade, não dispomos de
nenhum conceito de autonomia que seja verdadeiramente alheio aos
mecanismos da abundância. Em outras palavras, não basta eliminar pela
magia da crítica os poderes predatórios ligados à expansão indefinida do
capital para que possa renascer uma relação harmoniosa com os outros e
com o meio ambiente. Dizer que a liberdade tem uma história material é
também assumir que ela é constantemente definida, ou pelo menos
colorida, por relações ecológicas que não podem ser neutras. A liberdade
dos modernos está ligada às affordances da terra,[nota 3]
aos conflitos industriais, às possibilidades abertas pelo
“desenvolvimento”, e hoje está suspensa pelo desafio climático. As lutas
e as categorias que lhe dão conteúdo são realidades sócio-históricas de
parte a parte, e, a não ser que sejamos capazes de caracterizar com o
mínimo de precisão os novos agenciamentos que permitirão recarregar sua
definição, a tarefa corre o risco de ficar inacabada.
O que bloqueia a emergência de um pensamento político ajustado à
crise climática não é apenas, portanto, o capitalismo e seus excessos. É
também, em parte, o próprio sentido da emancipação do qual somos
herdeiros, construído sob a matriz industrial e producionista e que
resultou no estabelecimento de mecanismos de proteção ainda dependentes
do reinado do crescimento. O obstáculo está em nós, entre nós: em nossas
leis, em nossas instituições, e não em um espectro econômico
sobranceiro que se poderia denunciar confortavelmente do exterior. O
Estado social, apesar de seus imensos benefícios, ajudou, por exemplo, a
consolidar os objetivos de desempenho econômico que condicionam seu
financiamento e que, por isso mesmo, provocam a concorrência entre
riscos sociais e riscos ecológicos. A crise dos Gilets jaunes
[Coletes amarelos], na França, é uma ilustração perfeita disso: a
taxação dos combustíveis, a fim de dissuadir seu uso, entra em conflito
com a sensação de liberdade de milhões de pessoas enredadas nas
infraestruturas de mobilidade herdadas dos Trinta Anos Gloriosos. [nota 4] É
preciso, portanto, desenvolver mecanismos para diminuir nossa
dependência dessas energias sem violar as aspirações coletivas nelas
embutidas. Essa dupla limitação não pode ser resolvida nem denunciando
“a ideologia do automóvel” nem compensando suas externalidades, mas
reinventando as instituições de proteção, as infraestruturas urbanas,
seus mecanismos de financiamento, assim como os vínculos sociais que aí
encontram seu lugar. Essa é uma das razões pelas quais a ecologia e a
política são hoje quase indistinguíveis uma da outra, depois de terem
estado em posições diametralmente opostas por tanto tempo. A maioria das
demandas mais urgentes por justiça que se ouve hoje em dia, seja em
escala local ou global, leva a questões relacionadas à energia, ao uso
dos solos, à dinâmica da vida e aos fluxos de matérias que estruturam a
distribuição da riqueza. E, desde que sustentemos um conhecimento
crítico dessas redes de dependência na teia das quais nossas existências
ganham vida e se confrontam, desde que sigamos essa pista e a
construamos como um lugar privilegiado para o pensamento político, é
possível estimular a emergência desse sujeito coletivo crítico de um
novo tipo.
NOTAS
[nota 1] Jedediah Purdy, This Land is Our Land, Princeton University Press, 2019, p. 87
[nota 2] Dipesh Chakrabarty, The Climate of History. In: Four Theses, Critical Inquiry, v. 35, n. 2, 2009, p. 208.
[nota 3] Nota do Pernambuco: DizPierre
Charbonnier: "Por essa expressão são entendidas as posições oferecidas
pelas características da terra ao imaginário político e jurídico, na
ocorrência aqui de um contexto anterior à grande indústria e à máquina
[na Europa do século XVII]. A terra apresenta constrangimentos espaciais
e econômicos, alguns dos quais estruturais, tal como o fato de se ter
de estabelecer regras de convivência num território limitado e
disputado, e outros acidentais – como os 'limites naturais' formados por
um litoral, uma cordilheira, por aquelas propriedades ecológicas
diferenciadas, férteis ou não, ou pela presença de minas. A arte
política sempre lida com essas affordances, que não são nem
determinações puras e simples, nem simples elementos de decoração: o que
se faz é tirar o máximo de partido do jogo, a fim de imaginar parcerias
e de projetar princípios de solidariedade."
[nota 4] Nota do Pernambuco: Denominação criada no
fim dos anos 1970 pelo economista francês Jean Fourastié (1907-1990) que
designa o período que vai de 1945 a 1973 - cerca de três décadas
imediatamente posteriores à Segunda Guerra e até a primeira grande crise
do petróleo; São anos nos quais ocorreram profundas transformações
(sociais, econômicas etc). A expressão foi pensada por Fourastié a
partir do caso francês (e outros europeus) e dos países da América do
Norte.