segunda-feira, 27 de setembro de 2021

UMA TRISTEZA EM CADA ESQUINA

J.J. CAMARGO*

De volta às sinaleiras de Porto Alegre, trabalho infantil tem consequências  devastadoras, mas pode ser solucionado | GZH

Com menos de um quinto da população com reserva econômica para ficar em casa, enquanto milhões de empregos eram pulverizados, era previsível que depois de 18 meses de controvérsias estéreis as nossas esquinas estivessem repletas de comerciantes amadores vendendo bagulhos baratos que penduram nos retrovisores dos nossos carros, na esperança de comover-nos, e voltando correndo antes que o sinal abra, só para constatar que ainda não foi dessa vez.

Mais triste ainda é o batalhão de famélicos que, não tendo nada para oferecer, portam improvisados cartazes de papelão anunciando o desespero pela sobrevivência, na expectativa remota de que a palavra "fome", multiplicada pelo número de filhos, acenda um resíduo de misericórdia. A maioria disfarça a indiferença olhando o celular, enquanto alguns, poucos, alcançam umas moedas, através de uma fresta no vidro, tão pequena que não permita que um gesto de tamanha magnanimidade abra o caminho para um assalto.

Num sábado lindo, prenunciando primavera, o Adilson se instalou numa esquina movimentada, onde a sinaleira de três tempos lhe dava a chance de circular entre os carros com seu passo manco. Seu equipamento comercial se resumia a um caixote que servia de depósito de microbandejas de isopor, com morangos mirrados, trazidos sabe-se lá de onde.

Quando o sinal fechou, ele pegou uma amostra em cada mão e se deslocou entre os carros para mais uma tentativa. Tendo deixado a retaguarda aberta, se expôs ao inacreditável: foi assaltado. Duplamente. Ao ver um moleque de posse de uma de suas preciosas bandejas, saiu em corrida desengonçada atrás dele, e um comparsa completou o roubo, apanhando o que restava da sua féria e correndo na direção oposta. Quando o sinal abriu, deu tempo de ver que só tinha sobrado o caixote.

Dobrei na esquina, andei uns 30 metros e, desconfortável, estacionei. Voltando para a rua, o encontrei sentado no caixote, segurando o rosto entre as mãos, com os olhos fechados. Arregalou o olho choroso contra o sol quando percebeu que eu falava com ele, porque afinal ele não tinha mais nada para ser levado. Sentei na mureta e, entendendo que eu não tinha o protótipo de assaltante, ele relaxou:

- O que foi, seu doutor? Eu sou o Adilson.

Tinha vindo do Interior com dois irmãos, que ele se empenhara em convencê-los que a vida na cidade grande era mais fácil, e os três tinham conseguido emprego como pedreiro e auxiliar de obras. Com a chegada da pandemia, a construtora fechou depois de dois meses sem trabalho e os irmãos tinham voltado para a roça. Quando quis saber porque ele tinha ficado para trás, foi de uma sinceridade arrasadora:

- Por causa do meu pai, que tinha dito que um dia eu ia voltar para casa, arrependido. Ainda não estou pronto para essa vergonha.

Os médicos experientes são especialistas em consolar, porque é isso que fazemos todos os dias, a vida toda, mas que coisa ruim é ficar sem palavras!

Como se eu fosse responsável pela pobreza do mundo, quis saber o quanto ele teria faturado se todo o estoque tivesse sido vendido. A modéstia da ambição, me comoveu ainda mais:

- Ah, por cima, ia me sobrar uns 34 pilas, mas quebrava meu galho no fim de semana.

Arredondei a conta para cima e, antes de sair, pensando que eu só tinha livrado a miséria de dois dias, e sentindo a dor antecipada da segunda-feira implacável, ainda ouvi um agradecimento que me liquidou:

- Mas não percisava, doutor.

* Médico, escritor e palestrante gaúcho.

Imagem da Internet

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=70bcb5d39e5a2631f6918372855f55a9

Nenhum comentário:

Postar um comentário