segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Geração X supera millennials, pois é menos histérica diante da vida

 João Pereira Coutinho*

Uma série de linhas e traços geométricos que se cruzam formando uma figura que se parece com a letra X 
Publicada nesta terça-feira, 14 de agosto de 2021 - Angelo Abu

Fenômenos como a cultura do cancelamento seriam impensáveis no mundo dos que nasceram entre 1965 e 1980

Será que a geração X vai salvar o mundo? Falo da minha geração, claro, nascida entre 1965 e 1980. A colunista Hephzibah Anderson, na Prospect britânica, acredita que sim.

Nas guerras geracionais, ouvimos falar dos baby boomers —que tiveram todos os privilégios— e dos millennials —que exigem todos os privilégios.

Mas esquecida, ignorada, desprezada, está a geração X de que falava Douglas Coupland quando batizou o movimento no romance “Generation X: Tales for an Accelerated Culture” (ou geração X, histórias de uma cultura acelerada).

Para Anderson, só os X serão capazes de mediar o conflito entre boomers e millennials. Até porque são os X que alimentam esse conflito: hoje com 40 ou 50 anos, eles dominam a mídia e, com seus artigos incendiários, criam tensões e ressentimentos entre avós e netos. Hora da reconciliação?

Pobre Anderson. Reconciliação? Ela sabe pouco sobre a geração X, apesar de se declarar uma membro da tribo.

Começo pelo básico: Douglas Coupland não inventou a geração X. Coupland apenas se inspirou no trabalho do historiador cultural Paul Fussell, o primeiro a falar de uma “categoria X” na obra “Class: A Guide Through the American Status System” (aula, um guia pelo sistema de status americano). É um livro notável de 1983 que analisa as diferenças de classe, das mais óbvias às mais sutis, que persistem nos Estados Unidos.

A “categoria X” aparece no final, como aquela que poderá suplantar essas divisões de classe ao ignorá-las completamente. O que define os X é uma vontade de liberdade, um gosto pela individualidade, uma indiferença à opinião dos outros que, por vezes, ganha contornos indelicados. Aliás, a paródia (ou a ironia) é a linguagem natural dos X, sempre dispostos a perder um amigo, mas nunca uma piada. É por isso que os X não têm relação pacífica com pais ou patrões, figuras de autoridade que merecem uma higiênica distância.

De resto, Fussell vai aos pormenores e descreve as roupas dos X (despretensiosas e confortáveis), os carros (banais e invariavelmente sujos), o consumo de álcool (generoso) e as conversas (eruditas, verborrágicas e, não raras vezes, ociosas).

Os X são cabeças falantes, nem sempre bem pensantes, para quem o mundo não existe para ser transformado —ou reconciliado. A simples expressão “rumo a um mundo melhor” é suficientemente provinciana para ser levada a sério.

Os X não levam nada a sério, incluindo eles próprios. Fenômenos contemporâneos como a cultura de cancelamento, as microagressões ou a necessidade de “safe spaces” seriam impensáveis no mundo da geração X: o paternalismo desses fenômenos é veneno para quem faz da autonomia um valor sagrado. A primeira vez que li Paul Fussell tive a estranha sensação de me olhar no espelho. Sim, o conceito de geração é vago e cientificamente duvidoso.

Mas, em poucas linhas, também eu me reconhecia naquela tribo, sem orgulho ou vexame.

Certas passagens, aparentemente banais, conquistaram-me de imediato: os X preferem ficar molhados a usar uma gabardina para a chuva, escrevia o autor. E, em matéria financeira, não é a falta de dinheiro que os impede de se comportarem como aristocratas (arruinados). Que imagem! Que verdade! E que distância para as gerações passadas ou futuras!

Essa sensação de reconhecimento sairia reforçada pouco depois, assistindo aos filmes que os X começaram a produzir sobre eles próprios: “Vida de Solteiro”, de Cameron Crowe, “Caindo na Real”, de Ben Stiller, e essa obra-prima do diletantismo de nome “Slacker”, assinada por Richard Linklater.

A trilogia que o mesmo Linklater faria mais tarde (“Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr do Sol” e “Antes da Meia-Noite”) revelaria uma dimensão que escapou a Fussell. Os X são os últimos românticos. Como na canção dos Prefab Sprout, eles ainda são capazes de fazer um banquete de uma mesa de migalhas. Moral da história?

Sim, mil vezes sim: o narcisismo dos X, o solipsismo que os afeta, pode não ser saudável para uma sociedade. Há causas públicas que merecem atenção —e os X têm um certo défice de paixão política que às vezes resvala na indiferença e no cinismo. Mas essa indiferença, na dose e no contexto certos, tem um mérito que falta aos millennials e seus seguidores, sobretudo à geração Z nascida no século 21: ela é menos histérica perante as dissonâncias da vida. Viver e deixar viver é o lema da geração X. Porque um banquete de migalhas pode ser melhor do que um jantar perfeito que nunca chega.

* Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2021/09/geracao-x-supera-millennials-pois-e-menos-histerica-diante-da-vida.shtml

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