segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Deturpação sistemática do uso das palavras põe em risco a própria civilidade

Vera Iaconelli*

Manifestante mostra camiseta pró-armamento durante o ato antidemocrático de 7 de setembro em São Paulo  

Manifestante mostra camiseta pró-armamento durante o ato antidemocrático de 7 de setembro em São Paulo - Keiny Andrade - 7.set.21/Folhapress

A distorção é tão escancarada e obscena que nos faz duvidar da nossa própria capacidade argumentativa

A frase “quem ama não mata” foi um divisor de águas no combate à violência contra a mulher. Ela ajudou a desmascarar o escandaloso termo “crime passional”, baseado na ideia de que o amor poderia ser tão imenso, que levaria o sujeito —homem, claro— a matar —uma mulher, claro— quem não fez jus ao seu nobre sentimento. A pista falsa impede a vítima de se defender, pois faz supor que seria ingratidão recusar ser espancada por quem, afinal, te “ama” tanto.

Fica mais difícil sustentar esse argumento quando se cria um slogan que separa o joio do trigo e aponta um sentido fundamental do amor: o amor é aquilo que faz barreira aos nossos desejos suicidas e homicidas. Se o ato sabidamente violento é narrado como não o sendo, é a própria crença na linguagem que fica abalada. E sem linguagem não há cura, nem individual, nem coletiva.

A Folha estampou uma foto do ato antidemocrático de 7 de setembro, na qual um homem trajava uma camiseta com a frase “armai-vos uns aos outros” sobre o rosto de Bolsonaro. Ao subverter a máxima cristã “amai-vos uns aos outros” em um discurso de violência, o autor da “obra”, que não quis se identificar, revela a distorção absoluta da fala que sujeitos autoritários insistem em associar ao cristianismo. Estratagema antigo, largamente utilizado nas Guerras Santas, na Inquisição, no Nazismo, no Talibã (distorcendo o Alcorão), enfim, é o “Nome da Rosa” (1980) de Umberto Eco.

Aos brados, a jornalista Dani Monteiro gravou um vídeo, no qual usa diversas vezes a palavra liberdade como justificativa para sua presença no ato golpista, cujo objetivo é o fechamento do STF, a intervenção militar e, portanto, o fim da democracia. Nada muito original quando lembramos que a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de 1964 também usou da deturpação do sentido das palavras família, Deus e liberdade para instalar o terror de Estado.

A distorção é tão escancarada e obscena que nos faz duvidar da nossa própria capacidade argumentativa. E a intenção é essa mesma. Tendo que defender o óbvio, a estupefação nos assola, a eloquência desaparece e ficamos sem palavras. Não estamos mais num diálogo no qual as diferenças podem ser discutidas a partir de fatos que nos servem de esteio e onde há um chão comum de inteligibilidade. Somos jogados para o reino do nonsense, cuja intenção —nada oculta— é atacar a própria linguagem, única ferramenta da civilidade. Se o próprio código é atacado, não há diálogo viável, não há sequer possibilidade de pensar.

Trata-se do oposto da poesia, na qual a linguagem é tensionada ao máximo na tentativa —sempre vã— de dizer o indizível da nossa experiência. Se tentarmos descrever o amor, por exemplo, não conseguiremos chegar a um termo final. Mas dessa impossibilidade de dizer tudo é que se cria a arte e suas infinitas expressões.

No sequestro das palavras —termo usado por Gregório Duvivier em excelente artigo de 2016— temos o oposto, no entanto. Nesse caso, palavras servem para despistar e desmentir, nos afastando da experiência comum e uns dos outros. Em episódio do podcast Café da Manhã, deste jornal, o sempre necessário Sérgio Rodrigues aponta a importância de estarmos atentos aos discursos que distorcem e imobilizam.

Por exemplo, que fim levou “corrupção” depois que começou a circular o termo peculato, vulgo rachadinha? Ou ainda, a redução da palavra “família”, cujo discurso autoritário ignora a multiplicidade real.

Amor, liberdade, democracia... quando e como vamos resgatá-las?

 *Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2021/09/deturpacao-sistematica-do-uso-das-palavras-poe-em-risco-a-propria-civilidade.shtml 

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