domingo, 19 de setembro de 2021

Nita Freire: ‘A curiosidade dos jovens venceu a difamação’, diz viúva de Paulo Freire

Ana Maria de Araújo Freire, Dona Nita, viúva de Paulo Freire Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo 

Ana Maria de Araújo Freire, Dona Nita, viúva de Paulo Freire Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

Viúva do educador e responsável legal por sua obra, ela diz que, de volta do exílio, o marido seguiu enxergando uma sociedade racista, machista e elitista 
 

Pedagoga e doutora em Educação pela PUC-SP, Ana Maria Araújo Freire, Dona Nita, é a segunda mulher de Paulo Freire, com quem se casou em 1988. Tem 87 anos e, desde 1997, quando o educador morreu, é a responsável legal pelo seu legado e obra.

Como a senhora está celebrando o centenário do Paulo Freire?

O presente que pude dar a ele foi organizar e lançar três livros sobre sua obra. Um deles é “A palavra boniteza na leitura de mundo de Paulo Freire”, que é muito especial para mim. Paulo era muito romântico e delicado e quando começamos a namorar ele me telefonava e perguntava: “como vai a minha boniteza”?

E assim a conquistou...

Que nada, já tinha me conquistado (rindo). Aquela era a forma de ele expressar cuidadosamente o amor que tinha por mim. Mais tarde, quando já estávamos casados, ele escreveu sobre a boniteza e percebi que a palavra não era só sinônimo de bonito para ele, havia a perspectiva da vida política e da ética, sinônimo de bom, verdadeiro, justo. Paulo dava conotações novas a palavras antigas. Quando ele foi secretário municipal de Educação falou, em uma ocasião, de “meninos populares”. Sociólogos reagiram: o termo não existia. Ele respondeu, delicado, que podia até não existir no universo teórico, mas no real ele provava que sim, estava inclusive naquele momento mesmo passando a mão na cabeça de um.

A senhora usou duas vezes a palavra "delicado" para se referir a Paulo Freire...

E como isso faz falta pra gente, né? Hoje é o jogo da crueldade, do necrófilo, do desejo de espezinhar o outro. “Ele”, aliás, perseguiu o Paulo, o chamou de todos os nomes, inclusive de energúmeno. Mas essa implicância é por não conhecer a obra. É ignorância. Fico com a reação da juventude: foram atrás, quiseram descobrir quem é esse Paulo de quem “ele” fala tão mal e tantos elogiam. A curiosidade dos jovens venceu a difamação.

A senhora conheceu o Paulo ainda menina?

Sim. Tinha 6 anos, e ele trabalhava com minha mãe na administração escolar. A casa da minha família era em frente ao colégio, as portas ficavam abertas, via ele zanzando pra cima e pra baixo. Paulo tinha vergonha do corpo, era muito magro, embora guloso. Ele detestava que seus joelhos “enormes” ficassem à mostra, pois “todo mundo ficava olhando”. Mas a família não tinha dinheiro para comprar calças compridas. Lembro que a mãe dele certa vez comprou um pano mais em conta e costurou para ele sossegar. Muitos anos depois, percebi que, antes de dormir, ele pegava a calça pelos lados e a deixava esticar antes de pendurar num calceiro. Era um costume de um tempo em que a calça tinha de ficar limpa a semana toda.

A pobreza moldou a construção da “Pedagogia do oprimido”?

Sim. Paulo não escreveu sobre ideias, mas sobre a existência. Quando ele trata da morte do pai é algo real, sentido. Ele foi atingido profundamente pela dor. Sentiu a perda de forma contundente e ela forma sua obra.

O Programa Nacional de Alfabetização, a prisão , o exílio, vocês conversavam sobre algumas dessas duras perdas?

Sim, mas ele não se apiedava dele mesmo. Tinha um caráter muito forte. Não queria sair do Brasil de jeito nenhum. (O ex-deputado) Plínio de Arruda Sampaio contava que, quando Paulo chegou ao Chile, a tristeza acabou assim que começou a trabalhar na alfabetização de trabalhadores. Estava animado, pois a alternativa era se entregar ao desespero. Ele preferiu abraçar o começo de uma nova vida.

Como ele viu o Brasil pós-ditadura?

Com as mesmas preocupações. Seguia vendo uma sociedade racista, elitista e machista. Paulo dizia que nas andanças dele pelo mundo nunca viu uma sociedade na qual a burguesia era tão má, tão discriminatória, tão persecutória dos outros. Ele também dizia: “Nita, não estamos livres de um novo regime de extrema-direita”. Ah, Paulo...

Há homenagens ao centenário de Paulo Freire no mundo inteiro, mas não do MEC. A senhora se surpreendeu? 

Já esperava isso. O atual ministro (Milton Ribeiro) falou em uma de suas pregações (antes de assumir o cargo) que os filhos devem sentir dor para aprender. Em 1947 Paulo já se dedicava a uma outra pregação, a de que não havia lógica alguma em ferir para educar. Este é um retrocesso imenso. Deixe-lhe dizer uma coisa que considero importante... 

Por favor... 

A nordestinidade do Paulo foi muito forte. O pensamento dele é mesmo radical, neste ponto estão certos, e ele vem de lá. Mas sabe o que era radical para ele? Fincar suas raízes, ficar ereto, de pé, mas sempre procurando as profundezas de sua cultura. Ele analisava o passado o tempo todo e radicalizava mesmo o presente, tendo em vista o futuro. Ele dizia sempre: “conhecer tem alguma coisa de adivinhar, da percepção”. 

Do que a senhora sente mais saudade dele?

Vejo as fotografias na cômoda do quarto e converso como se ele me escutasse. Digo: “Paulo, 24 anos que você se foi e a necessidade de sua presença na minha vida continua igual”. Sinto falta da delicadeza, do respeito pela minha autonomia, do toque dele, do meu grande amigo. E sinto todos os dias.

Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/nita-freire-curiosidade-dos-jovens-venceu-difamacao-diz-viuva-de-paulo-freire-25203037

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