quarta-feira, 15 de setembro de 2021

A loucura na sociedade de classes

Dassayeve Távora Lima*

No espaço do leitor, Dassayeve Távora Lima analisa o lugar social da loucura na dinâmica de produção e reprodução do capitalismo.

Este texto se propõe a realizar uma breve análise sobre a relação social com a loucura no modo de produção capitalista. Por isso, tomo como mote um exame teórico do lugar social da loucura na dinâmica de produção e reprodução do capitalismo, recorrendo, na maior parte do texto, a uma análise geral com um grau considerável de abstração. Isto se deve, principalmente, devido ao caráter sintético e, ao mesmo tempo geral do objeto de análise. Neste escrito, não me proponho a discutir aspectos relacionado à alienação, determinação social da loucura e do sofrimento psíquico. O foco será tão somente situar, de forma breve, o louco e a loucura no âmbito da sociedade de classes.

A relação social que estabelecemos com a loucura, como fenômeno complexo que é, só pode ser compreendida em sua totalidade se situada na dinâmica de antagonismo de classes que estrutura a nossa organização social. Isso porque, enquanto fenômeno social, a loucura não se dá em abstrato, isolada e desconectada do mundo, mas sim, nas relações concretas e efetivas, objetivadas no modo em que estamos inseridos de produzir e reproduzir a vida. Se, segundo Frantz Fanon, para “se aprofundar na estrutura de determinado país, é preciso visitar seus hospitais psiquiátricos” (2020, p. 261), também vale aqui a relação inversa: se quisermos nos aprofundar no entendimento da loucura, é preciso saber como ela se relaciona com as estruturas sociais e políticas de cada contexto.

Em primeiro lugar, cabe dizer que a loucura nem sempre foi vista como um problema social em si mesma – cabe ressaltar que, quando afirmamos isso, não estamos defendendo uma visão fetichizada ou idealizada da loucura. Sem adentrarmos muito numa discussão que não cabe para os fins deste escrito, a loucura é uma forma específica de estar e se relacionar com o mundo, porém, são as condições sociohistóricas que irão determinar, em grande medida, a qualidade dessa relação. Basaglia (2010) costumava dizer que existe um “duplo da doença”: o louco não sofre apenas pela sua experiência alienada com a realidade; ele sofre, também, em decorrência do tratamento social que recebe (sua coisificação, processos de institucionalização, violência manicomial, etc.).

A relação social com a loucura, ou seja, a forma que nos habituamos a compreendê-la, interpretá-la e a lidar com ela propriamente, foi se modificando historicamente a depender do modo de organização social, das relações de produção e da representação social que cada sociedade atribuía ao fenômeno. A título de exemplificação, em diversos momentos históricos, a loucura já foi entendida como “expressão de sabedoria”, “manifestação do sagrado” e “aproximação da verdade”. Enquanto fenômeno humano, portanto, social, a loucura carece de uma essencialidade ou universalidade (seja essa positiva ou negativa), no sentido de que ela não é a mesma em cada momento histórico e cultural. Os signos, representações, relações e mediações que estabelecemos com a loucura dizem mais do contexto sociohistórico que vivemos do que da loucura em si. Parafraseando Marx, “a loucura é a loucura. Só em determinadas condições é que ela se torna um problema social” – e, em última análise, somente em determinadas condições ela se torna também uma doença.

A grosso modo, a loucura passou a ser entendida como um problema social que demandava alguma forma de intervenção do Estado a partir do que chamamos de Revolução Industrial. Isso porque o modo de produção capitalista que ora se desenvolvia demandava uma força de trabalho que fosse, a um só tempo, dócil e produtiva. Para os moldes do capital, o louco não era nem produtivo (visto que não era possível extrair mais-valor do seu trabalho), nem dócil (o que faz com que, até hoje, habite no imaginário cultural a ideia de que o louco é um sujeito “perigoso”), o que fez com que esse se tornasse um sujeito indesejável socialmente (FOUCAULT, 2014).

Dessa forma, o louco era visto como um sujeito “desviante”, pois era alguém inadequado para desempenhar o modelo de trabalhador imposto pelo capital. Surgia então um problema: o que fazer com a massa sobrante, onerosa e improdutiva que a própria dinâmica capitalista havia criado? O que fazer com pessoas que não produzem em uma sociedade que vive sob o imperativo da produtividade e do lucro? Cabia, portanto, ao Estado, dar uma resposta a esse problema, criando mecanismos de gestão desse excedente improdutivo da classe trabalhadora – que Basaglia (2010) nomeou de “refugo social”.

Como resposta, o Estado burguês criou aparatos institucionais de gestão, exclusão, e segregação entre os “normais” e “anormais”: os hospícios, manicômios ou, como vieram a ser chamados futuramente, hospitais psiquiátricos. O que fica evidente é que, desde sua gênese, os manicômios surgem como uma resposta do Estado que tinha como propósito não o cuidado, tratamento e assistência a essas pessoas em sofrimento, mas sim, promover uma forma de separação entre a força de trabalho produtiva e a massa improdutiva excedente. Não se tratava de criar dispositivos de acolhimento e cuidado, mas de criar aparelhos de repressão àqueles que não podiam participar do jogo social e da venda da força de trabalho.

Os manicômios são assim compreendidos como superestruturas que emergem da estrutura social, tendo como principal objetivo invisibilizar as contradições do próprio modo de produção capitalista e garantir as condições necessárias para o pleno funcionamento da dinâmica de produção e reprodução social. Não existe capitalismo sem manicômio, assim como não existe manicômio sem capitalismo. Ambos têm uma relação profunda de interdependência, visto que, à medida que o capitalismo produz o manicômio, o manicômio ajuda a sustentar o capitalismo.

Ao passo em que o capitalismo produz a alienação e a loucura, ele a esconde através da institucionalização (MARX, 2006; 2010; 1858; BASAGLIA, 2010). Se o louco não é lucrativo como força de trabalho, ele o é como consumidor dos serviços do manicômio e seus insumos. Se o louco é uma denúncia viva das contradições do capitalismo, ele precisa ser segregado, invisibilizado, silenciado, e, no seu extremo, aniquilado social e objetivamente. Se ele não encontra trabalho – e sequer pode compor o exército industrial de reserva –, pode ser mão de obra barata (ou não paga) no circuito manicomial. E assim sucessivamente. Tudo isso, mais uma vez, evidencia que a relação entre manicômio e capital é extremamente imbricada.

Além disso, cabe destacar que, quando falamos em classe trabalhadora, não estamos falando de uma massa homogênea, genérica e abstrata (COLLINS; BILGE, 2021). A relação social com a loucura que se estabelece no modo de produção capitalista, atravessada e mediada pela lógica asilar-manicomial, não atinge a todos da mesma forma. Desconsiderar isso seria lidar com uma classe trabalhadora idealizada, carente de concreção. A lógica asilar-manicomial, como qualquer outra estrutura de opressão, impacta de modo diverso e de forma ainda mais violenta a depender dos marcadores sociais de raça, gênero, sexualidade, etc. (DAVIS, 2016).

No que diz respeito à dimensão de raça, a lógica asilar-manicomial sempre encontrou como pilar de sustentação o aparato ideológico do racismo científico, que deu base para discursos de supremacia branca sob o pretexto de que a população negra era biologicamente mais disposta à loucura. Esse discurso passou a ter ainda mais força com a psiquiatria e criminologia eugenista lombrosiana, que postulava a ideia de que, a partir de características biológicas e fenotípicas, seria possível prever quais as pessoas mais dispostas ao crime. Essas características, que não por acaso eram compartilhadas por pessoas não-brancas, fizeram com que se disseminasse a tese do “sujeito suspeito”. O argumento subjacente, por mais tosco e anticientífico que seja, desempenhava uma função prática de dominação racial, visto que, quanto mais distante do estereótipo do branco europeu, mais periculosa seria a pessoa. Resultado disso é que a lógica asilar-manicomial, aliada à estrutura de opressão racista, fez com que a população negra (e pessoas não-brancas em geral) fossem o público prioritário da institucionalização manicomial.

Em pouco tempo, disseminaram-se as mais variadas teses eugenistas na psiquiatria e no campo da chamada higiene mental – lógica essa que, infelizmente, não foi efetivamente superada. Ainda hoje convivemos com seus resquícios, que se manifestam desde ações oriundas da trágica “Guerra às drogas” (que, na verdade, se configura como uma estratégia de extermínio e controle da população negra e periférica), até as ações higienistas de repressão e internação compulsória que com frequência acontecem com usuários de drogas em pontos de uso, vide as operações policiais na cracolândia.

Com relação à opressão por gênero, sabe-se que, em seu percurso histórico, a lógica asilar-manicomial sempre andou de mãos dadas com o patriarcado. O manicômio, como estrutura de manutenção e reprodução do capitalismo e do patriarcado, sempre foi (e, na verdade, continua sendo) o aparelho repressivo do Estado destinado a receber e depositar as mulheres que já não podiam cumprir seus “papéis” na dinâmica de produção e reprodução social. Importa ainda ressaltar que os manicômios desempenhavam (e desempenham) o papel de repressão às mulheres que, por quaisquer motivos, se rebelem contra a opressão patriarcal.

Além disso, a psiquiatria manicomial hegemônica, enquanto construto ideológico com verniz supostamente científico, foi (e, mais uma vez, continua sendo) um instrumento de perpetuação e violência do patriarcado. Coube à psiquiatria a formulação de um discurso supostamente científico que justificasse teoricamente a submissão das mulheres, baseando-se, especialmente, em abordagens biologicistas reducionistas. Tais “explicações”, obviamente, essencialmente ideológicas, atribuíam ao “feminino” o “descontrole das paixões”, “a fraqueza moral” e, em especial, a “não-racionalidade” e “passionalidade”, visto que a faculdade da razão era concebida como atributo particularmente masculino. Não por acaso, é tão comum, ainda hoje, se referirem a quaisquer mulheres que levantem a voz contra o patriarcado ou que questionem os papéis sociais de gênero, como “loucas”, “lunáticas” e “histéricas”. A redução à qualidade de louca, ou seja, à uma categoria psicopatológica, serviu (e ainda serve) como instrumento de dominação do patriarcado, através da deslegitimação da contestação e do discurso das mulheres.

Em resumo, a relação social estabelecida com a loucura, inclusive nos dias de hoje, é uma relação mediada muito mais pelo lugar social que essa ocupa do que pela loucura em si. Compreender a loucura enquanto fenômeno social, é compreendê-la no âmbito do antagonismo e embate entre classes sociais. Não é possível lidar com a loucura como um fenômeno isolado e abstrato. Entender a relação social com a loucura, na atualidade, implica pensá-la enquanto fenômeno particularmente humano no jogo de forças do capitalismo. Não há análise concreta da loucura se ignorarmos a contradição fundamental do modo de produção vigente e a luta de classes. Por fim, a título de sintetização, finalizo com um trecho emblemático de Alfredo Moffatt em Psicoterapia do oprimido, um clássico da luta antimanicomial:

Onde se pode apreciar a injustiça de nosso sistema econômico é no fato que, para um mesmo tipo de sintomas, para um mesmo grau de perturbação mental, nas classes altas tem-se um tratamento curto com reintegração social, enquanto que na classe operária o mesmo caso de delírio leva a um destino de aniquilamento. Uma situação parecida ocorre nos casos de delito: aquele que rouba para comer vai preso e aquele que rouba milhões é um respeitável e poderoso cavalheiro, que viaja seguidamente para a Europa (MOFFATT, 1981, p. 53-54).

 *Dassayeve Távora Lima é psicólogo (11/10355). Mestre em psicologia e políticas públicas (UFC). Especialista em caráter de residência em saúde da família. Especialista em psicologia em Saúde (CRP 11). Militante antimanicomial e administrador do perfil e podcast Saúde Mental Crítica.


Referências bibliográficas
BASAGLIA, Franco. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FANON, Frantz. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. São Paulo: Ubu, 2020.
FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2014.
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O crescimento da loucura na Grã-Bretanha. New-York Daily Tribune, 20 de Agosto de 1858.
MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. São Paulo: Editora Cortez, 1981.

Fomte:  https://blogdaboitempo.com.br/2021/09/14/a-loucura-na-sociedade-de-classes/

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