domingo, 5 de setembro de 2021

Você vai ver o que você (não) vai ver: olhar para conhecer

 Januária Cristina Alves*

Para as afegãs, o retorno do Talibã é 'o fim do mundo'

Ao mesmo tempo em que vivemos a incerteza em busca de algo a que nos agarrar, sabemos o tempo todo que a mentira faz parte do jogo

Há eventos que, por si só, são impactantes e relevantes pelo simples fato de estarem acontecendo, como a guerra do Afeganistão, que foi notícia durante os 20 anos da presença militar americana no país e agora volta aos holofotes da mídia e do mundo com a retirada destes, e a tomada do poder pelos Talebans. Não bastasse ser um fato que tem repercussões de toda ordem: humana, social, econômica, militar, tornou-se também um acontecimento que já virou um “case de sucesso” quando o assunto é desinformação.

No dia 26 de agosto, quando houve uma explosão no aeroporto de Cabul causada pelo Estado Islâmico, mal os estilhaços baixaram poeira, a internet e as redes sociais foram inundadas por imagens do acontecimento. E quase que em tempo real todos “vimos” o que estava ocorrendo ali. Só que não. Como alertou a colunista do UOL e fundadora da agência de checagem de fatos Lupa, Cristina Tardáguila: “... a desinformação corre solta sobre o Afeganistão”. Para toda uma geração que cresceu acreditando que “uma imagem vale mais do que mil palavras” ou que aquilo que nossos olhos vêem são a prova cabal da realidade, constatar que há uma enorme distância entre o que vemos e o que de fato acontece é uma imensa frustração, para ficar apenas com o sentimento mais imediato que nos acomete.

Buscamos a conexão com a realidade porque é do humano contar com algumas certezas para viver a incerteza da morte, que, como diz o ditado “é a única certeza que temos”. Porém, ao mesmo tempo em que vivemos a incerteza em busca de algo a que nos agarrar para cumprirmos a nossa jornada, sabemos o tempo todo que a mentira faz parte do jogo, a partir do nosso próprio comportamento. Mentimos para nós mesmos, nos iludimos, contamos histórias enviesadas.

Eduardo Gianetti explica isso muito claramente em seu livro “Auto-engano”): “por instinto involuntário, para se sentir confortável com suas crenças e sua auto-imagem, o homem só ouve, escolhe e ratifica as opiniões que confirmam o que ele pensa. Na mesma medida em que refuta e até apaga as que lhe são divergentes. (...) Mentimos para nós mesmos o tempo todo: adiantamos o despertador para não perder a hora, acreditamos nas juras de amor da pessoa amada, lembramos e esquecemos de acordo com nossas convicções. Para o nosso bem e nossa ruína, o auto-engano permeia grande parte das opções e julgamentos que fazemos.” Ou seja, como diz de modo bastante “direto e reto” a boneca sabida Emília, criação de Monteiro Lobato, em “Memórias da Emília”: “bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. (...) Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso”.

Este é o tempo de valorizar o nosso olhar como uma ferramenta imprescindível para nos conectar com a nossa experiência e a partir dela construirmos o nosso conhecimento

Talvez tentando resolver o dilema "Verdade X Mentira” escolhemos o olhar como a experiência mais próxima do real com que poderíamos contar. Mas o advento da tecnologia trouxe com ela o universo tridimensional, as realidades paralelas, os metaversos e as imagens que vemos, certamente não conhecemos. E esse é um dos grandes mistérios do nosso tempo, outra grande questão cuja resposta estamos em busca, enquanto tateamos no escuro: não sabemos se vamos ver o que vamos ver.

No documentário “Janela da alma”, José Saramago, um dos maiores escritores do nosso tempo, vencedor do Nobel de Literatura, diz: “para conhecer as coisas, há de dar-lhes a volta toda. Dar-lhes a volta toda”. Ele profere essa frase que tornou-se famosa quando relata sua experiência de olhar o Teatro de Ópera de Lisboa a partir do camarote, uma visão diferente daquela que tinha quando estava no “poleiro”. Saramago frisa aqui precisamente a diferença entre ver e conhecer. Talvez esse seja o exercício cotidiano que temos de nos propor nestes tempos em que vivemos, em que as imagens podem ser adulteradas, subvertidas, censuradas, enquadradas com fins escusos, criando outros universos que não o aqui e agora. É fundamental que percebamos que as imagens não “dão a volta toda”, porque não carregam em si todos os sentidos.

No mundo virtual as imagens possuem a força de conectar as pessoas em torno de uma mesma interpretação. Os signos que ali estão podem ser identificados por qualquer um de nós (quem não reconhece um meme ou um emoji?), até porque sabemos que a seleção de todos eles é feita por algoritmos que obedecem a um mesmo padrão. As imagens permitem a abstração, a interpretação, mas a maneira vertiginosa com que são exibidas mais nos distraem do que nos convidam a conferir-lhes um sentido.

É importante estarmos atentos aos diversos enigmas que elas carregam, cada um com diferentes objetivos. É imperioso, neste momento, olharmos em 360 graus, como diz Saramago, porque as imagens nem sempre revelam, cabe-nos perguntar sobretudo, o que elas escondem. Pois, afinal de contas, é o enquadramento que define a imagem, como alerta o cineasta alemão Win Wenders: “...costumamos olhar um enquadramento pelo que ele contém num quadro, numa foto ou num filme. Normalmente pensamos no que está no interior. Mas o verdadeiro ato de enquadrar consiste em excluir algo. Acho que o enquadramento se define muito mais pelo que não se mostra do que pelo que se mostra. Há uma escolha contínua quanto ao que será excluído.”

Este é o tempo de valorizar o nosso olhar como uma ferramenta imprescindível para nos conectar com a nossa experiência e a partir dela, construirmos o nosso conhecimento. Eugênio Bucci, em seu livro “A superindústria do imaginário” nos alerta que “o capitalismo se deu conta que o olhar não é simplesmente um polo receptor das mensagens prontas, mas uma força constitutiva de sentido social. (...) A ação de olhar, mais do que ver isso ou aquilo, é tecer um sentido para isso ou aquilo”.

Para se ter olhos de ver é preciso construir o olhar, educá-lo, dar-lhe referências para que ele possa fazer escolhas. É fundamental cuidar para que a imagem não tome o lugar da experiência, para que o fotografar o momento não seja mais interessante do que vivê-lo. E é essa prática atenta e constante que nos ajudará a ver o que é, e não o que parece ser. E assim, quando assistirmos às cenas que as mídias nos mostram vertiginosamente, talvez seja possível duvidar, inquirir, pesquisar e checar e rechecar. Isso porque a melhor imagem, aquela que revela o instante com um sentido, na Era da Desinformação, pode ser o verdadeiro tesouro no final do arco-íris.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna), membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco. - Imagem da Internet 

Fonte:https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/Voc%C3%AA-vai-ver-o-que-voc%C3%AA-n%C3%A3o-vai-ver-olhar-para-conhecer?position-home-esquerda=1&utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo

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