domingo, 31 de outubro de 2021

Chomsky: o que esperar da COP-26

 

Foto: Prefeitura de Congonhas MG

Entrevista a Stan Cox, no Tom Dispatch | Tradução: Vitor Costa

Este mês marcará um momento crítico na luta para evitar a catástrofe climática. Na cúpula do clima global chamada de COP26, que começará na próxima semana em Glasgow, Escócia, os negociadores terão que lidar com a necessidade urgente de tirar a economia mundial de seu ritmo habitual, que poderá levar a Terra a até três graus Celsius de aquecimento antes do final deste século, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). No entanto, até agora, as promessas das nações ricas de reduzir as emissões de gases do efeito estufa têm sido fracas demais para conter o aumento da temperatura. Nos Estados Unidos, os planos climáticos do governo de Joe Biden em xeque, ameaçados pelos fundamentalistas do Partido Republicano e por uma ala conservadora dos democratas.

Nas últimas décadas, Noam Chomsky tem sido uma das vozes mais enérgicas e persuasivas no debate sobre a injustiça, a desigualdade e a ameaça representada pelo caos climático causado para a civilização e a Terra. Eu estava ansioso para saber de suas opiniões sobre as raízes da dramática situação atual e as perspectivas de a humanidade emergir desta crise para um futuro habitável. Ele concordou em falar comigo por meio de um chat em vídeo. O texto aqui é uma versão resumida de nossa conversa.

Chomsky, hoje com 92 anos, é autor de vários best-sellers políticos, traduzidos para múltiplas línguas. Suas críticas ao poder e sua defesa de autonomia e ação política das pessoas comuns inspiraram gerações de ativistas e organizadores sociais. Ele é professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts desde 1976. Eis a entrevista:

A maioria das nações que se reunirá em Glasgow para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, de 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, fez promessas de redução de emissões de CO². Na maioria das vezes, essas promessas são totalmente inadequadas. Que princípios você acha que deveriam guiar o esforço para prevenir uma catástrofe climática?

Os iniciadores do Acordo de Paris pretendiam ter um tratado obrigatório, não acordos voluntários – mas havia um impedimento: o Partido Republicano dos EUA. Estava claro que o Partido Republicano nunca aceitaria nenhum compromisso vinculativo. Este partido, que perdeu qualquer pretensão de ser uma organização política normal, dedica-se quase exclusivamente ao bem-estar dos super-ricos e do setor corporativo, e não se preocupa absolutamente com a população ou o futuro do mundo. A organização republicana nunca teria aceitado um tratado vinculante. Em resposta, os organizadores reduziram seu objetivo a um acordo voluntário, que contém todas as dificuldades que você mencionou.

Perdemos seis anos, quatro sob o governo Trump, que se dedicou abertamente a maximizar o uso de combustíveis fósseis e desmontar o aparato regulatório que, em certa medida, havia limitado seus efeitos letais. Até certo ponto, esses regulamentos protegiam setores da população da poluição, principalmente os pobres e as pessoas negras. Porque são eles que, é claro, enfrentam o principal fardo da poluição. São as pessoas pobres do mundo que vivem no que Trump chamou de “países de merda” que mais sofrem; eles são os que menos contribuem para o desastre e são as vítimas principais.

Não tem que ser assim. Há um caminho para um futuro habitável. Existem maneiras de ter políticas responsáveis, sãs e racialmente justas. Cabe a todos nós exigi-los, algo que os jovens de todo o mundo já estão fazendo.

Outros países têm suas próprias responsabilidades, mas os Estados Unidos têm os piores registros do mundo. Washington bloqueou o Acordo de Paris antes que Trump finalmente assumisse o cargo. Mas foi sob Trump que os Estados Unidos retiraram-se totalmente do acordo.

Se você olhar para os democratas mais sãos, que estão longe de serem inocentes, existem pessoas chamadas “moderadas” como o senador Joe Manchin (Democrata – Virgínia Oriental), o principal recebedor de financiamento do setor de combustíveis fósseis, cuja posição é a dessas empresas: nada de restrições, apenas “inovação”. Essa também é a visão da Exxon Mobil: “Não se preocupe, nós cuidaremos de você”, dizem eles. “Somos uma empresa com alma. Estamos investindo em algumas formas futurísticas de remover da atmosfera a poluição que estamos despejando nela. Tudo está bem, basta confiar em nós.” “Sem eliminação, apenas inovação” é uma ideia ruim porque, se a inovação vier provavelmente será tarde demais e terá efeito muito limitado.

Tome o relatório do IPCC que acabou de ser lançado. É muito mais terrível do que os anteriores e diz que devemos eliminar os combustíveis fósseis passo a passo, todos os anos, até nos livrarmos deles completamente, dentro de algumas décadas. Poucos dias depois de o relatório ser divulgado, Joe Biden fez um apelo ao cartel do petróleo da OPEP para aumentar a produção, o que reduziria os preços do gás nos Estados Unidos e melhoraria a posição do presidente perante a população. Houve euforia imediata nas pesquisas sobre mercado de petróleo. Há muito lucro a ser obtido, mas a que custo? Bem, foi bom ter a espécie humana por algumas centenas de milhares de anos, mas evidentemente isso foi tempo suficiente. Afinal, a vida média de uma espécie na Terra é aparentemente de cerca de 100 mil anos. Então, por que devemos quebrar o recorde? Por que nos organizar por um futuro justo para todos, quando podemos destruir o planeta ajudando corporações ricas a ficarem mais ricas?

A catástrofe ecológica está se aproximando em grande parte porque, como você disse uma vez, “todo o sistema socioeconômico é baseado na produção para o lucro e num imperativo de crescimento que não pode ser sustentado”. No entanto, parece que apenas a autoridade estatal pode implementar as mudanças necessárias de forma equitativa, transparente e justa. Dada a emergência que enfrentamos, você acha que os governos seriam capazes de justificar medidas como a restrição ao uso de recursos nacionais, a criação de regras para sua alocação de recursos ou racionamentos – políticas que necessariamente limitariam a liberdade das comunidades locais e indivíduos em suas vidas materiais?

Bem, temos que enfrentar algumas realidades. Eu gostaria de ver o movimento em direção a uma sociedade mais livre e justa – à produção para suprir necessidades, ao invés da produção por lucro, os trabalhadores capazes de controlar suas próprias vidas em vez de se subordinarem a patrões por quase toda a sua vida. O tempo necessário para que tais esforços sejam bem sucedidos é simplesmente longo demais para enfrentar esta crise. Isso significa que precisamos resolvê-la sob as instituições existentes – que, é claro, podem ser aperfeiçoadas.

O sistema econômico dos últimos quarenta anos foi particularmente destrutivo. Infligiu um grande ataque à maioria da população, resultando em um enorme crescimento da desigualdade e ataques à democracia e ao meio ambiente.

Um futuro habitável é possível. Não temos que viver em um sistema em que as regras tributárias foram alteradas para que bilionários paguem taxas mais baixas do que os trabalhadores. Não temos que viver em uma forma de capitalismo de Estado em que, só nos Estados Unidos, os 90% mais pobres, entre os assalariados, foram roubados em aproximadamente US$ 50 trilhões, em benefício de uma fração de 1%. Essa é a estimativa da RAND Corporation, uma estimativa muito conservadora, se olharmos para outros dispositivos que foram usados. Existem maneiras de reformar o sistema existente basicamente dentro da mesma estrutura de instituições. Eu acho que elas precisam ser transformadas, mas isso exigirá uma escala de tempo mais longa.

A questão é: podemos prevenir a catástrofe climática dentro de uma estrutura de instituições capitalistas de Estado menos selvagens? Acho que há uma razão para acreditar que podemos, e há propostas muito cuidadosas e detalhadas sobre como fazê-lo, incluindo algumas em seu novo livro, bem como as propostas do meu amigo e coautor, o economista Robert Pollin, que trabalhou muitas dessas coisas em grandes detalhes. Jeffrey Sachs, outro excelente economista, usando modelos um tanto diferentes, chegou praticamente às mesmas conclusões. Essas são basicamente as linhas das propostas da Associação Internacional de Energia, de forma alguma uma organização radical, que nasceu das corporações de energia. Mas todos eles têm essencialmente o mesmo quadro.

Na verdade, existe até uma resolução do Congresso norte-americano, de autoria de Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markey, que descreve propostas muito avançadas, dentro da faixa de viabilidade concreta, nas condiç?os de hoje. Estima-se que custem de 2% a 3% do PIB, o que é perfeitamente possível. Não só resolveriam a crise, mas criariam um futuro mais habitável, sem poluição, sem engarrafamentos, e com trabalho mais construtivo e produtivo, e melhores empregos. Tudo isso é possível.

Mas existem barreiras sérias – as indústrias de combustíveis fósseis, os bancos, as outras instituições importantes, que são projetadas para maximizar o lucro e não se preocupam com mais nada. Afinal, esse era o slogan anunciado do período neoliberal – o pronunciamento do guru econômico Milton Friedman de que “as corporações não têm responsabilidade para com o público ou com a força de trabalho; sua responsabilidade total é maximizar o lucro para poucos”.

Por razões de relações públicas, empresas de combustíveis fósseis como a ExxonMobil costumam se apresentar sensíveis e benevolentes, trabalhando dia e noite para o benefício do bem comum. É o que chamamos de greenwashing.

Alguns dos métodos mais amplamente discutidos para capturar e remover dióxido de carbono da atmosfera consumiriam grandes quantidades de biomassa produzida em centenas de milhões ou bilhões de hectares, ameaçando os ecossistemas e a produção de alimentos, principalmente em nações de baixa renda e baixas emissões. Um grupo de especialistas em ética e outros estudiosos escreveu recentemente que um “princípio fundamental” da justiça climática é que “as necessidades básicas e urgentes das pessoas e dos países pobres devem ser protegidas contra os efeitos das mudanças climáticas e das medidas tomadas para limitá-la”. Isso parece excluir claramente esses planos de “emita carbono agora, capture-o mais tarde”, e outros exemplos do que podemos chamar de “imperialismo de mitigação do clima”. Você acha que o mundo pode lidar com esse tipo de exploração, à medida que as temperaturas sobem? E o que você acha dessas propostas de bioenergia e captura de carbono?

É totalmente imoral, mas é uma prática padrão. Para onde vão os resíduos? Não vão para o seu quintal, vão para lugares como a Somália, que não podem se proteger. A União Europeia, por exemplo, tem despejado seus resíduos atômicos e outros tipos de poluição na costa da Somália, prejudicando as áreas de pesca e as indústrias locais. É horrível.

O último relatório do IPCC pede o fim dos combustíveis fósseis. A esperança é que possamos evitar o pior e alcançar uma economia sustentável em algumas décadas. Se não fizermos isso, chegaremos a pontos de inflexão irreversíveis e as pessoas mais vulneráveis ??– e menos responsáveis ??pela crise – sofrerão primeiro e mais severamente as consequências. Pessoas que vivem nas planícies de Bangladesh, por exemplo, onde ciclones poderosos causam danos extraordinários. Pessoas que vivem na Índia, onde a temperatura pode passar de 49ºC no verão. Poderemos assistir o processo em que partes do mundo vão se tornando impossíveis para a vida.

Houve relatórios recentes de geocientistas israelenses críticos a seu governo, por este não levar em conta o efeito das políticas adota – entre elas, o desenvolvimento de novos campos de gás no Mediterrâneo. Uma de suas análises indicou que, dentro de algumas décadas, durante o verão, o Mediterrâneo estará atingindo o calor de uma jacuzzi e as planícies mais baixas serão inundadas. As pessoas ainda viverão em Jerusalém e Ramallah, mas as enchentes afetarão grande parte da população. Por que não mudar o curso para evitar isso?

A economia neoclássica subjacente a essas injustiças apoia-se em modelos econômicos de clima conhecidos como “modelos de avaliação integrados”. Resumem-se a análises de custo-benefício baseadas no chamado custo social do carbono. Com essas projeções, os economistas estão tentando jogar fora o direito das gerações futuras a uma vida decente?

Não temos o direito de jogar com as vidas das pessoas no Sul da Ásia, na África ou com pessoas em comunidades vulneráveis ??nos Estados Unidos. Você quer fazer análises como essa em seu seminário acadêmico? Ok, vá em frente. Mas não ouse traduzi-lo em política. Não se atreva a fazer isso.

Há uma diferença notável entre os físicos e os economistas. Os físicos não dizem “ei, vamos tentar um experimento que pode destruir o mundo, porque seria interessante ver o que aconteceria”. Mas os economistas fazem isso. Com base nas teorias neoclássicas, eles instituíram uma grande revolução nos assuntos mundiais no início dos anos 1980, que começou com [o presidente norte-americano] Jimmy Carter e acelerou com Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Dado o poder dos Estados Unidos em comparação com o resto do mundo, o ataque neoliberal – um grande experimento de teoria econômica – teve um resultado devastador. Não precisava ser um gênio para descobrir. Seu lema era: “O Estado é o problema”.

Isso não significa que você elimine decisões; significa apenas que você as transfere. As decisões ainda precisam ser tomadas. Se não forem tomadas pelo Estado, que está, ainda que de forma limitada, sob influência popular, serão tomadas por concentrações de poder privado, que não têm responsabilidade perante o público. E seguindo as instruções de Milton Friedman, esses grupos não têm nenhuma responsabilidade para com a sociedade que lhes deu o presente da incorporação. Eles têm apenas o imperativo de autoenriquecimento.

Margaret Thatcher então aparece e diz que não existe sociedade, apenas indivíduos atomizados que, de alguma forma, estão se organizando no mercado. Claro, há um pequeno detalhe que ela não se preocupou em acrescentar: para os ricos e poderosos, há bastante sociedade. Organizações como a Câmara de Comércio, a Mesa Redonda de Negócios, ALEC, e muitas mais. Eles se reúnem, se defendem e assim por diante. Há muita sociedade para eles, mas não para o resto de nós. A maioria das pessoas tem que enfrentar a devastação do mercado. E, claro, os ricos não. As corporações contam com um Estado poderoso para salvá-las sempre que houver algum problema. Os ricos precisam ter um Estado poderoso – assim como seus poderes de polícia – para garantir que ninguém fique em seu caminho.

Onde você vê esperança?

Nos Jovens. Em setembro, houve uma “greve” climática internacional; centenas de milhares de jovens saíram para exigir o fim da destruição ambiental. Greta Thunberg recentemente pronunciou-se na reunião de Davos, entre os grandes e poderosos, e deu a eles um recado sóbrio sobre o que estão fazendo. “Como vocês ousam”, disse ela, “vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias.” Vocês nos traíram. Essas são palavras que deveriam ser gravadas na consciência de todos, especialmente as pessoas da minha geração que as traíram e continuam a trair a juventude e os países do mundo.

Agora temos uma luta. Ela pode ser vencida, mas quanto mais atrasados estivermos, mais difícil será. Se tivéssemos resolvido isso há dez anos, o custo teria sido muito menor. Se os EUA não fossem o único país a recusar o Protocolo de Kyoto, teria sido muito mais fácil. Bem, quanto mais esperarmos, mais trairemos nossos filhos e netos. Essas são as escolhas. Eu não tenho muitos anos; muitos de vocês têm. A possibilidade de um futuro justo e sustentável existe e há muito que podemos fazer para chegar lá antes que seja tarde demais.

Fonte:  http://desacato.info/chomsky-o-que-esperar-da-cop-26/#more-279913

Sorria, você não está sendo filmado

 Juliana Sayuri* 

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Getty Images

De condomínios fechados a ilhas particulares, quanto mais exclusiva, mais cara ela é: por que a privacidade se tornou um dos maiores luxos da atualidade

Isolar-se em uma ilha paradisíaca, com areia branca e água azul cristalina do Oceano Índico, o melhor spa, as melhores frutas da estação, as melhores iguarias servidas por chefs estrelados, todos os caprichos atendidos por concierges habilidosos como gênios da lâmpada de Aladim, dançar como se ninguém estivesse olhando – e sorrir pois você não está sendo filmado. Se instalar-se num lugar assim já é exclusivo a poucos afortunados, poder fazer tudo isso sem precisar se expor é a cereja dos privilégios. Isso porque a privacidade se tornou um plus, um valor agregado ao mercado de alto luxo.

Um publicitário poderia divulgar um destino assim com uma campanha carpe diem sobre sombra e água fresca finalizada com a frase “não tem preço”. Mas tudo tem. No caso, são cerca de US$ 75 mil (R$ 415 mil) a diária. Era este o valor para se hospedar na maior ilha particular no arquipélago das Maldivas quando ali se abriram as portas do Waldorf Astoria Maldives Ithaafushi, informou a revista Forbes.

Parte da lógica que rege o mercado de luxo, portanto, é a da ostentação, o contrário da privacidade

Ithaafushi, como foi batizada a área privada no Atol Malé Sul, quer dizer “ilha das pérolas”. A proposta, definiu o gerente do resort dias antes da inauguração, era transformá-la em “um destino de primeira classe altamente requisitado, mas para poucos”. Para atender aos hóspedes, poucos como pérolas, o hotel conta com equipe especializada em “garantir que todas as suas necessidades sejam atendidas com a máxima discrição”, destacou o porta-voz.

Luxo, lato sensu, significa “privilégio, raridade, suntuosidade”, define André D’Angelo, especialista em marketing e mercado premium e autor de “Precisar, Não Precisa: Um olhar sobre o consumo de luxo no Brasil” (2018) e “Por uma Vida Mais Simples” (2015). Serviços e produtos de luxo são considerados caros e bons, distribuídos de maneira seletiva ou exclusiva. São supérfluos também, no sentido de serem “substituíveis” por um equivalente funcional não tão caro, acrescenta ele.

Luxo atrai consumidores por dois motivos: status e prazer, e ambos podem estar associados, diz D’Angelo. “Parte da lógica que rege o mercado de luxo, portanto, é a da ostentação, o contrário da privacidade. Friso a palavra ‘parte’ pois nem todo o mercado é assim. As marcas, inclusive, se identificam por serem mais ou menos adeptas da privacidade, ainda que indiretamente”, pondera.

Há marcas que investem em logomarcas e monogramas para se ver de longe e há clientes que as procuram justamente pois imaginam que serão notados com elas – basta lembrar de grifes que incluem logos gigantes em suas peças, como o cavalo da Ralph Lauren depois de um anabolizante no canto da camisa polo.

Achava-se que experiências exclusivas eram a nova fronteira do luxo, discretas, não ostentatórias. Mas esqueceram de combinar com as redes sociais

Outras marcas, ao contrário, apostam em peças mais discretas, sem identificação imediata. E isso se estende aos serviços, inclusive na indústria de turismo. “Antes, achava-se que experiências exclusivas eram a nova fronteira do luxo, por serem discretas, não ostentatórias. Esqueceram de combinar com as redes sociais, em que tudo virou imagem postável.”

Isto é, muitas vezes, privacidade é uma miragem num mundo de influenciadores digitais, artistas e aspirantes a celebridades.

Estratégia emoji

Para Jayme Drummond, 50, especialista em hospitalidade, a pandemia dividiu os clientes em dois tipos: os hedonistas, que agora querem curtir a vida ao máximo pois ficaram muito tempo dentro de casa; e os minimalistas, que passaram a priorizar um estilo de vida mais reservado. “Privacidade faz parte do universo de alto luxo”, diz Drummond, o carioca do Carioca NoMundo no YouTube, que explora experiências de viagens de alto padrão. Isso se nota, exemplifica ele, desde a busca por cabines na primeira classe nos aviões até a preferência por resorts e hotéis exclusivos, estruturados em vilas particulares, às vezes com mordomo 24 horas.

“Há quem prefira privacidade total e nem sequer têm contas em redes sociais; são extremamente bem-sucedidos, fazem viagens incríveis e não têm perfil no Instagram, por exemplo”, conta Drummond. “Outros querem compartilhar suas experiências em redes sociais e transformam sua vida quase num reality. Outros ainda as usam como ferramenta de trabalho. Mas mesmo quem trabalha com isso quer uma certa privacidade em determinados momentos”, avalia.

Ele, por exemplo, mostra no YouTube suas experiências a bordo de aviões e flanando por hotéis e destinos desejados, de um resort superexclusivo na Polinésia Francesa ou um safári na África do Sul – mas preserva sua vida pessoal ou da intimidade de sua casa, família e amigos. “Consigo separar isso de forma confortável. Todo mundo, num determinado grau, gosta de privacidade.”

A busca por essa tal privacidade às vezes se manifesta não em palavras, mas em emojis. Mais precisamente, em emojis cobrindo os rostos das pessoas: há perfis abertos de pessoas públicas, como influenciadores digitais e artistas, que vêm utilizando essa estratégia para preservar a identidade dos fotografados.

Um dos primeiros exemplos está do outro lado do globo, onde a food influencer Margaret Lam, de Hong Kong, fez sucesso com o perfil @little_meg_siu_meg perambulando por Tóquio. Little Meg foi quem guiou o chef norte-americano David Chang a um dos endereços gastronômicos na capital japonesa na segunda temporada da série “Ugly Delicious”, lançada em 2020 – no episódio, o rosto dela foi digitalmente mascarado por um smiley o tempo todo.

Mais recentemente, a autora Olivia Harrison destacou num artigo na revista Refinery29, um braço da Vice Media, celebridades que estão cobrindo o rosto de seus filhos ao postar fotos no Instagram, de atores hollywoodianos como Orlando Bloom, Kristen Bell e Chris Pratt a modelos como Ashley Graham e Gigi Hadid. “O que torna esse fenômeno tão interessante”, ela escreveu, “é que muitas das celebridades que usam emojis para talvez pôr uma barreira de privacidade em torno de seus filhos são também as que compartilham quase todo outro aspecto de suas vidas com seus seguidores e fãs”.

“Se não pode vencê-los, renda-se logo a eles” talvez seja a lógica por trás de decisões na direção oposta. Foi o caso da atriz Déborah Secco, que desde cedo expôs sua filha, Maria Flor. “Sempre tive certeza de que não conseguiria evitar a exposição dela”, ela disse à Veja, em 2017. “Então quis evitar que, cada vez que ela aparecesse, isso causasse uma comoção. Acho que, ao divulgar a imagem da Maria, ela vai ficando mais comum e não desperta tanta curiosidade”, justificou, ao dizer que não conseguiria blindar a filha, que então tinha menos de 2 anos, por não ter “o dinheiro da Sandy”, ilustrou a atriz.

Exclusivo a 1%

Paparazzi à parte, a pandemia expôs desigualdades nas mais diversas áreas e na privacidade não foi diferente. Afinal, a quem é possível isolar-se com acesso ilimitado a serviços, produtos e lazer, com segurança digital e integridade física, um teto sob a cabeça e três refeições quentes por dia, sem necessidade de se deslocar para trabalhar – aliás, sem necessidade de sequer trabalhar? Ter tudo isso com uma pitada extra de luxo, a privacidade, talvez seja imaginável apenas para os mais ricos dos mais ricos, o 1%.

“A vida dos 99% hoje é forçadamente mediada pelas mídias digitais ligadas ao capitalismo de vigilância”, diz o antropólogo Rafael Evangelista, pesquisador do LabJor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

A vigilância vai desde a esfera do Estado (por exemplo, com coleta de dados necessários para elaborar políticas públicas) até a iniciativa privada (cujo modelo de negócios conta com tecnologias de monitoramento e o big data para nutrir análises de mercado, identificar comportamentos e moldar tendências). “Um nível de vigilância faz parte da nossa vida social moderna e não é necessariamente ruim. Nociva é a exploração autoritária ou comercial dessa vigilância de modo a aprofundar assimetrias de poder”, critica.

A privacidade se tornou um tipo de moeda de troca. Os dados acabam sendo usados no mercado

Assimetrias que se notam nos mínimos detalhes do dia a dia na internet e nas ruas: depender do Wi-Fi grátis de um parque público ou ter o próprio 5G; alugar um AirBnb ou arrematar uma ilha particular; ou, acrescenta Evangelista, pedir um Uber ou ter um motorista particular e não deixar rastros de deslocamento, nem digitais. “É um exemplo trivial, mas mostra como quem tem mais dinheiro tem mais possibilidade de se proteger mais da vigilância de aparelhos, apps e serviços que usariam nossos dados como fonte de lucro. Escapar disso é mais difícil para quem tem menos poder aquisitivo.”

No Brasil, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) vale não apenas no âmbito digital, mas inclui todas as dimensões da vida, lembra a jornalista Mariana Gomes, 23, cofundadora da Conexão Malunga, cujo foco é tecnologia, e pesquisadora do Cepad (Centro de Estudos e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia) da UFBA (Universidade Federal da Bahia). “Isso porque a privacidade se tornou um tipo de moeda de troca. Os dados muitas vezes acabam sendo usados no mercado, extrapolando a esfera digital”, assinala. E, como os algoritmos não são neutros, sempre há quem está mais exposto que outros: corpos negros são mais visados do que brancos, por exemplo; corpos femininos, mais que masculinos.

“’Poesia não é um luxo‘, dizia a autora Audre Lorde [1934-1992], ativista negra e referência da teoria feminista contemporânea. Pois é, muitos elementos da nossa vida são tratados como privilégios, como algo além e para poucos. Mas, tal como a poesia, a privacidade não é um privilégio, um luxo. Ou, ao menos, não deveria ser.”

*Jornalista. Historiadora

Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/tem-alguem-olhando/privacidade-virou-luxo/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama

sábado, 30 de outubro de 2021

Lançado um novo inédito de Kafka: ‘Os desenhos’

Dibujos Kafka.  

Dibujos Kafka.Ardon Bar-Hama

Um volume reúne pela primeira vez todas as ilustrações do autor de ‘A metamorfose’, que permaneceram 63 anos no cofre de um banco de Zurique

É escritor, mas lhe custa encontrar as palavras. “Como descrever a maneira como andávamos no sonho! (…) Espera, que lhe desenho. Andar de braços dados é assim [desenho]. Nós, por outro lado, andávamos assim [desenho].” É Franz Kafka em uma carta de 1913 à sua noiva, Felice Bauer. “Deve saber que tempos atrás eu era um grande desenhista (…). Naquela época, já se passaram muitos anos, esses desenhos me satisfaziam mais do que qualquer outra coisa”, confessa-lhe poucas linhas depois. O autor de A metamorfose já desenhava antes de escrever, em 1901, e desenhou muitíssimo, até quase o último dia de sua vida, em 1924; em qualquer espaço (folhas soltas, manuscritos ornamentados, um caderno, cartões postais, margens de livros jurídicos…) e com um estilo peculiar, mas compatível com sua obra literária. Quase dois terços desses desenhos eram o último grande inédito de Kafka que restava, após passarem 63 anos repousando no cofre de um banco de Zurique, e que agora, junto com as 41 ilustrações anteriormente conhecidas, saem à luz para somar os 163 que compõem Os desenhos, uma coedição internacional de sete países.

Surpreende como o autor tenha cultivado essa faceta, porque afirmava que os judeus não eram pintores: “Não sabemos representar as coisas de maneira estática. Sempre as vemos fluindo, em movimento, como mudança”. Mas o fato é que Kafka continua a desenhar ao mesmo tempo que a escrever: entre 1901 e 1907 o faz intensamente e com ambição artística, sobretudo em sua etapa na Universidade Alemã de Praga, onde fez aulas de desenho e frequentava cursos de História da Arte.

Mas se foi duro com sua escrita, ainda mais inflexível foi com suas ilustrações. A faceta artística deste outro Kafka tem tintas, claro, kafkianas. Em seus desenhos, principalmente as figuras humanas parecem muito frágeis, enigmáticas, inquietantes, filhas de poucos traços, onde às vezes aparece alguma característica animal. Estão em “uma suspensão e um movimento insólitos, liberados da força da gravidade; desafiam a coordenação cinestésica das partes do corpo”: parecem desorientados e carecem de coordenação, ou de movimento intencional, sustenta a filósofa Judith Butler em um dos textos incluídos no livro. Não é incomum que as cabeças (ou os círculos que as representam) estejam separadas de um corpo frequentemente de extremidades longuíssimas.

Desenho da Kafka, de entre 1901 e 1907, no qual anotou: "Arrogância da riqueza".
Desenho da Kafka, de entre 1901 e 1907, no qual anotou: "Arrogância da riqueza". Ardon Bar-Hama

“Assim como sua escrita, seu desenho está muito ligado ao seu tempo, é expressionista e aborda assim o corpo: a situação corporal, a postura, já é muito importante em seus romances; isso se vê, no caderno de desenho inédito, nas variantes que faz sobre um lutador, inspirado possivelmente no guerreiro Borghese”, cita Joan Tarrida, diretor da editora Galáxia Gutenberg, que edita a obra na Espanha. Seguindo o rastro de um estudo do suíço Andreas Kilcher também incluído no volume, que soma 356 páginas, é possível observar nas ilustrações de Kafka também a influência da arte japonesa e da sua caligrafia: traços muito pretos e largos, feitos como se fosse a pincel.

Como em sua produção escrita, o humor aparece deste modo, mas “o grotesco vem da diferença corporal… Tudo parece indicar que desenhava em arrebatamentos”, indica Tarrida, apontando um desenho de cabeça para baixo, reproduzido tal como estava no caderno: “Não observava se estava direito ou ao contrário, ou de lado…”, comenta, diante de ilustrações que foram reproduzidas aproximando-se o máximo possível do tamanho real, e sem recortes.

Fuçar os cestos de papéis

A sobrevivência dos desenhos também merece a adjetivação do sobrenome do autor. Em seu famoso testamento de 1921, Kafka especificou ao seu testamenteiro e amigo Max Brod que destruísse tanto seus textos… como seus desenhos. Nisso, Brod não cumpriu sua vontade. E mais: ele havia se dedicado a recolher dos cestos de papéis aquilo que Kafka descartava, enquanto lhe pedia que lhe desse de presente as folhas rabiscadas com seus desenhos. E inclusive se pôs a recortar, nos livros de direito do autor de O castelo, as margens que o escritor havia semeado com seus desenhos, “numa espécie de contraposição carnavalesca aos conteúdos jurídicos”, aponta Kilcher.

Brod, em um duríssimo périplo fugindo da invasão nazista em Praga, 1939, levou para a Palestina todo o legado do seu amigo, que havia morrido em 1924. Lá deixou a parte das duas sobrinhas do escritor que haviam sobrevivido ao Holocausto. Estas, por sua vez, acabariam em 1961 depositando o acervo na biblioteca Bodleiana de Oxford. De lá procede boa parte dos 41 desenhos de Kafka conhecidos até agora. O testamenteiro guardou sua parte em um banco de Tel Aviv, mas quando a crise do canal de Suez eclodiu, em 1956, ele temeu pelo desaparecimento do Estado de Israel e então transferiu tudo para quatro caixas-fortes de um banco de Zurique, o atual UBS. Brod, depois, acabou legando sua parte à sua secretária, Ilse Ester Hoffe.

Tanto Hoffe como Brod sempre impuseram entraves à exibição e publicação desses desenhos. “Brod os tinha recortado e manipulado e, em parte, ao cedê-los à sua secretária em vida, já não eram deles”, lança Tarrida como hipótese para justificar a atitude esquiva do testamenteiro neste âmbito. Nos anos oitenta, Hoffe chegou a pedir 100.000 marcos a um editor alemão apenas para mostrá-los. Quando ela morreu, em 2007, teve início uma disputa judicial entre seus herdeiros e a Biblioteca Nacional de Israel, porque a 11ª cláusula do testamento de Brod dizia que o material custodiado no banco de Zurique devia ser depositado no centro israelense. A vitória da biblioteca, selada em 2019, acabou com os 63 anos de ostracismo de uma centena de desenhos inéditos que ficaram em poder do amigo de Kafka.

“Só restam agora [como inéditos de Kafka] algumas anotações de quando ele era estudante de hebraico”, observa o editor Tarrida, que publica a obra completa do autor tcheco na Espanha e anuncia para 2022 o segundo volume da correspondência do escritor, compreendidaentre 1914 e 1918 – o período da I Guerra Mundial –, seguindo o padrão do selo alemão Fischer. “Ao editá-las cronologicamente, aparece um Kafka mais real, menos obsessivo do que desenhado nas correspondências agrupadas por correspondentes, como se fez até agora”, aponta. Restam, no máximo, um par de volumes mais, mas o processo é lento, porque “se acredita que pode haver mais alguma carta inédita, e isso freia e revira tudo”, admite Tarrida. Um trabalho puramente kafkiano.

Fonte:  https://brasil.elpais.com/cultura/2021-10-29/lancado-um-novo-inedito-de-kafka-os-desenhos.html?mid=DM86981&bid=786363725

‘A trama da vida’: a importância dos fungos no mundo

Merlin Sheldrake*

 Capa do livro "A trama da vida", estampada em tom lilás com ilustração de fungos


O ‘Nexo’ publica trecho de livro que aborda o papel dos fungos na vida na Terra. Com mais de 2 milhões de espécies, eles deram o suporte evolutivo para que as plantas pudessem se desenvolver fora do ambiente aquático e, graças à sua capacidade decompor poluentes químicos e complexos, são aliados importantes no combate à crise climática

Os fungos estão por toda parte, mas é difícil visualizá-los. Eles estão dentro de você e ao seu redor. Sustentam você e tudo de que você depende. Enquanto você lê estas palavras, os fungos estão mudando a forma como a vida acontece, como têm feito há mais de um bilhão de anos. Estão decompondo rocha, fazendo solo, desestabilizando poluentes, nutrindo e matando plantas, sobrevivendo no espaço, induzindo visões, produzindo alimentos, fazendo remédios, manipulando o comportamento animal e influenciando a composição da atmosfera. Os fungos fornecem a chave para compreender o planeta em que vivemos e a maneira como pensamos, sentimos e nos comportamos. No entanto, em grande parte, eles vivem longe dos nossos olhos, e mais de 90% das espécies ainda não foram descritas. Quanto mais aprendemos sobre os fungos, mais as coisas deixam de fazer sentido sem eles.

Os fungos constituem um dos reinos da vida — uma categoria tão ampla e movimentada quanto “animais” ou “plantas”. Leveduras microscópicas são fungos, assim como as extensas redes de cogumelo-do-mel, ou do gênero Armillaria, um dos maiores organismos do mundo. O atual detentor do recorde, no estado do Oregon, Estados Unidos, pesa centenas de toneladas, espalha-se por dez quilômetros quadrados e tem algo entre 2 mil e 8 mil anos. Provavelmente existem muitos espécimes maiores e mais antigos que ainda são desconhecidos.

Muitos dos eventos mais extraordinários da Terra foram — e continuam sendo — resultado da atividade dos fungos. As plantas saíram da água há cerca de 500 milhões de anos graças à colaboração com os fungos, que serviram como um sistema de absorção por dezenas de milhares de anos, até que elas desenvolvessem raízes. Hoje, mais de 90% das plantas dependem de fungos micorrízicos (do grego mykes, “fungo”, e rhiza, “raiz”), que conseguem ligar árvores em redes compartilhadas, chamadas de “internet das árvores”. Essa antiga associação deu origem a todas as formas de vida terrestre conhecidas, cujo futuro depende da capacidade de plantas e fungos de formar relacionamentos saudáveis e estáveis.

As plantas esverdearam o planeta, mas, se pudéssemos voltar ao período Devoniano, 400 milhões de anos atrás, ficaríamos impressionados com outra forma de vida: os Prototaxites. Esses pináculos vivos espalhavam-se por toda a paisagem. Muitos eram mais altos que um

prédio de dois andares. Nada chegava perto desse tamanho: havia plantas, mas elas não passavam de um metro de altura, e os animais com espinha dorsal ainda não haviam saído da água. Pequenos insetos faziam suas casas na estrutura gigante, mastigando-a até formar salas e corredores. Esse grupo enigmático de organismos — acredita-se que eram fungos enormes — foi a maior estrutura viva em terra firme por pelo menos 40 milhões de anos, vinte vezes mais tempo que a existência do gênero Homo.

Até hoje, novos ecossistemas terrestres são criados por fungos. Quando ilhas vulcânicas se formam ou geleiras encolhem, descobrindo a rocha nua, os liquens — uma associação de fungos e algas ou cianobactérias — são os primeiros organismos a se estabelecer e formar o solo no qual as plantas criarão raízes. Em ecossistemas bem desenvolvidos, a terra escoaria rapidamente com a chuva, não fosse pela densa malha de fungos que a mantém unida. Dos sedimentos no fundo do mar à superfície dos desertos, dos vales congelados na Antártida às nossas entranhas e orifícios, há poucos lugares no mundo onde não há fungos. Uma única planta pode conter de dezenas a centenas de espécies em suas folhas e caules. Esses fungos formam um tecido no espaço entre as células vegetais constituindo um brocado intrincado e ajudam a defendê-las das doenças. São encontrados em todas as plantas que tenham crescido em condições naturais; são parte da planta tanto quanto as folhas e raízes.

A capacidade dos fungos de prosperar em tamanha variedade de habitats depende de suas diversas habilidades metabólicas. O metabolismo é a arte da transformação química. Os fungos são prodígios metabólicos e podem procurar, recuperar e consumir detritos de forma engenhosa, rivalizando apenas com as bactérias. Usando coquetéis de enzimas e ácidos potentes, eles podem quebrar algumas das substâncias mais difíceis do planeta, desde a lignina, o componente mais robusto da madeira, até a rocha, o óleo cru, o plástico de poliuretano e o explosivo TNT. Poucos ambientes são extremos demais para os fungos. Uma espécie identificada em rejeitos de mineração é um dos organismos mais resistentes à radiação já descobertos e pode ajudar a limpar locais com resíduos radioativos. O reator nuclear que explodiu em Chernobyl abriga uma grande população desse fungo. Várias dessas espécies tolerantes ao rádio crescem em partículas radioativas “quentes” e são capazes de aproveitar a radiação como fonte de energia, assim como as plantas usam a energia da luz solar.

Os cogumelos dominam o imaginário popular quando o assunto é fungo, mas, assim como os frutos das plantas são parte de uma estrutura muito maior que inclui ramos e raízes, o cogumelo é apenas a estrutura macroscópica de reprodução, chamada também de esporoma, o local onde os esporos são produzidos. Os fungos usam os esporos como as plantas usam as sementes: para se espalharem.

O cogumelo é a forma pela qual o fungo apela a outros seres e elementos, do vento ao esquilo, para ajudar na dispersão dos esporos ou impedir que interfiram nesse processo. É a parte visível, pungente, cobiçada, deliciosa, muitas vezes venenosa do fungo. No entanto, os cogumelos são apenas uma abordagem entre muitas: a esmagadora maioria das espécies de fungo libera esporos sem produzir cogumelos.

Todos nós respiramos fungos a todo momento, graças à prolífica capacidade de seus esporomas de dispersarem esporos. Algumas espécies liberam esporos de forma explosiva, em aceleração 10 mil vezes maior que um ônibus espacial logo após o lançamento e atingindo velocidades de até cem quilômetros por hora — alguns dos movimentos mais rápidos entre os seres vivos. Outras espécies criam seu próprio microclima: os esporos são levados para cima por uma corrente de vento gerada pelos cogumelos à medida que a água evapora de suas lamelas. Os fungos produzem cerca de 50 megatoneladas de esporos por ano — o equivalente ao peso de 500 mil baleias-azuis —, o que faz deles a maior fonte de partículas vivas no ar. Os esporos são encontrados nas nuvens e influenciam o clima, desencadeando a formação das gotículas de água que compõem a chuva e dos cristais de gelo que formam a neve, a água-neve e o granizo.

Certos fungos, como as leveduras que fermentam o açúcar em álcool e fazem o pão crescer, consistem em células únicas que se multiplicam por brotamento, dividindo-se em duas. No entanto, a maioria dos fungos forma redes de muitas células conhecidas como hifas: estruturas tubulares finas que se ramificam, se fundem e se entrelaçam formando a filigrana anárquica do micélio. O micélio representa o mais comum dos hábitos dos fungos e pode ser mais bem entendido não como uma coisa, mas como um processo — uma tendência irregular e exploratória. Água e nutrientes fluem pelos ecossistemas dentro das redes de micélio. O micélio de algumas espécies de fungo é eletricamente excitável e conduz ondas de atividade elétrica ao longo das hifas, de forma análoga aos impulsos elétricos nas células nervosas dos animais.

As hifas constituem o micélio, mas também estruturas mais especializadas. Essas estruturas, como o cogumelo, são formadas a partir de hifas compactadas. Realizam muitas proezas além de expelir esporos. Alguns esporomas, como as trufas, produzem aromas que os colocaram entre os alimentos mais caros do mundo. Outros, como o cogumelo-gota-de-tinta (Coprinus comatus), podem germinar através do asfalto e levantar pedras pesadas do pavimento, embora não sejam feitos de material resistente. Colha um cogumelo e você pode fritá-lo e comê-lo. Deixe-o em uma jarra, e sua carne branca e brilhante se liquefará em uma tinta preta como breu em poucos dias.

Essa engenhosidade metabólica permite que os fungos criem uma ampla variedade de relacionamentos. Seja nas raízes ou nos brotos, as plantas dependem dos fungos para nutrição e defesa desde sempre. Os animais também dependem dos fungos. Depois dos seres humanos, os animais que formam as maiores e mais complexas sociedades da Terra são as formigas-cortadeiras. As sociedades podem chegar a mais de 8 milhões de indivíduos, com ninhos subterrâneos que passam de trinta metros de diâmetro. A vida das formigas-cortadeiras gira em torno de um fungo que elas cultivam em câmaras cavernosas e alimentam com pedaços de folhas.

As sociedades humanas estão igualmente entrelaçadas com os fungos. Doenças causadas por eles provocam perdas de bilhões de dólares — o fungo da brusone destrói uma quantidade de arroz suficiente para alimentar mais de 60 milhões de pessoas todos os anos. As doenças fúngicas das árvores, como a doença-do-olmo-holandês e a ferrugem-de-castanheira, transformam florestas e paisagens. Os romanos oravam ao deus do bolor, Robigus, para evitar doenças fúngicas, mas não foram capazes de deter a fome que contribuiu para o declínio do Império Romano. O impacto das doenças fúngicas está aumentando em todo o mundo: as práticas agrícolas insustentáveis reduzem a capacidade das plantas de formar relações com os fungos benéficos dos quais dependem. O uso generalizado de produtos químicos antifúngicos levou a um aumento sem precedentes de novas superpragas fúngicas que ameaçam a saúde humana e a vegetal. À medida que os seres humanos espalham fungos causadores de doenças, criam-se oportunidades para sua evolução. Nos últimos cinquenta anos, a doença mais mortal já registrada — causada por um fungo que infecta anfíbios — se espalhou pelo mundo através da circulação humana. Ela já levou noventa espécies de anfíbios à extinção e ameaça exterminar mais de cem. A variedade de banana que responde por 99% das remessas globais, a nanica, está sendo dizimada por uma doença fúngica e poderá entrar em extinção nas próximas décadas.

*Merlin Sheldrake nasceu na Inglaterra em 1987, estudou biologia em Harvard e é doutor em ecologia tropical pela Universidade de Cambridge por sua pesquisa sobre redes fúngicas subterrâneas nas florestas do Panamá. “A trama da vida”, seu primeiro livro, recebeu o prêmio Wainwright em 2021 e foi traduzido para mais de 20 idiomas.

A trama da vida: Como os fungos constroem o mundo

Merlin Sheldrake

Trad. Gilberto Stam

Ubu e Fósforo

368 páginas

Lançamento em 1 de outubro

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/10/29/%E2%80%98A-trama-da-vida%E2%80%99-a-import%C3%A2ncia-dos-fungos-no-mundo?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A maldição da reeleição dos políticos. Por que não abolir isso?

 Juan Arias*


Presidente Jair Bolsonaro 
Presidente Jair BolsonaroJoédson Alves (EFE)

Em vez de fazer pactos com o demônio a fim de se reelegerem, os presidentes poderiam se interessar mais em resolver os problemas mais graves do país

O Brasil vive um dos momentos de maior convulsão política e social das últimas décadas. Para explicar esse fenômeno, as teorias se multiplicam. Mas há algo de que pouco se fala e talvez seja um dos principais motivos: a reeleição de políticos.

Tomemos o exemplo que temos diante de nossos olhos: o da presidência de Jair Bolsonaro. Antes de ser eleito, ele sabia que o assunto interessava à opinião pública, o que demonstrou pelo fato de que durante sua campanha eleitoral fez a seus possíveis eleitores a promessa de que “acabaria com a reeleição”. Tinha aprendido durante seus 30 anos como deputado federal que o tema é crucial nas crises políticas que o país sofreu.

Bolsonaro, que descumpriu praticamente todas as suas promessas eleitorais, passou a ter como principal preocupação, assim que foi eleito, garantir sua reeleição em 2022. A tal ponto que todos os crimes que cometeu durante a pandemia de covid-19 se devem a seu temor de não ser o escolhido nas urnas.

Toda a conduta criminosa que a CPI da Pandemia acaba de trazer à tona, e pela qual foi acusado de crime contra a humanidade, se deveu ao temor de que a covid-19 pudesse criar uma crise econômica que colocaria em xeque sua reeleição. Melhor, então, que morressem os que tivessem que morrer do que manter obrigatórias as restrições, inclusive a perda de empregos, para evitar o maior número possível de vítimas.

Todo o calvário da crise criada pelo capitão se relaciona hoje, incluindo suas ameaças de golpe de Estado, com o medo de não ser reeleito. Tudo seria diferente, no entanto, se ele tivesse cumprido sua promessa de acabar com a reeleição.

Se dermos uma olhada na situação política brasileira desde a redemocratização, perceberemos as crises provocadas pela lei de reeleição presidencial. É bem possível que se essa lei não tivesse sido aprovada, hoje, seria muito diferente, pois teria se livrado das muitas crises políticas que o empobrecem.

Se não houvesse a reeleição, tudo seria muito diferente. Em vez de fazer pactos com o demônio a fim de se reelegerem, os presidentes teriam se interessado mais em resolver os problemas mais graves do país e em trabalhar para deixar uma marca positiva em sua passagem pelo poder. Seria ainda mais fácil um dia voltarem ao cargo se sua imagem fosse lembrada como positiva.

Um presidente da República não pode ser um faraó egípcio ou um rei irremovível. Em quatro anos de Governo poderiam ser julgados pela opinião pública pela herança de bem-estar e segurança que deixaram.

Quatro anos é pouco? Não, é uma eternidade capaz de transformar um país.

Um presidente poderia ser capaz, em seu mandato de quatro anos, de fazer duas ou três reformas importantes, como a política. Hoje são mais de 30 partidos no Congresso, 90% deles sem ideologia. São máquinas para enriquecimento, algo que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Poderia fazer a reforma tributária para que os mais ricos fossem os que pagassem mais impostos e assim houvesse mais dinheiro para resolver os graves problemas sociais. Poderia fazer, entre muitas coisas, a reforma da educação e saúde públicas para que fossem a inveja do setor privado.

Por que os políticos responsáveis pelas reformas geralmente enviam filhos e netos para escolas e hospitais privados, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Europa, onde as universidades e hospitais públicos costumam ser melhores do que os privados? A melhor forma de um presidente retornar ao poder é deixando saudades de seu mandato se ele for capaz de aumentar o bem-estar e a felicidade dos cidadãos.

O caso, por exemplo, de Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher da história do Brasil, teria sido muito diferente se ela tivesse presidido o país por apenas um mandato. Ao terminar, tinha 54% de aprovação, um dos mais altos, superando até o popular Lula. Se Dilma tivesse se aposentado ao final do primeiro mandato, em que foi aplaudida pela opinião pública, muita coisa teria mudado. Ela não teria passado pela humilhação do impeachment que acabou apagando sua vida política. Com certeza Lula teria voltado à presidência, não teria ido para a cadeia, e hoje o Brasil não sofreria a hecatombe criada por Bolsonaro, que nunca teria sido eleito.

Os analistas políticos deveriam estudar melhor o ressurgimento da extrema direita fascista até mesmo com nostalgias nazistas, não só no Brasil, mas em todo o mundo, a começar pelos EUA e Europa. Seria preciso pensar se pesa mais nesse contexto a deterioração da democracia e da política tradicional, transformada em balcão de negócios, acúmulo de privilégios e distanciada da opinião dos eleitores, o que a desacredita aos olhos da população.

O mundo necessita de uma reflexão profunda sobre o desprestígio e o cansaço geracional do conceito de democracia, que não sabe mais responder às demandas de um planeta em época de profunda transformação. Seria preciso consultar mais a nova geração de jovens que já vivem em outra dimensão cósmica e não se entusiasmam com os paradigmas de uma forma de fazer política que não sabe acompanhar a velocidade com que o mundo está evoluindo.

Uma das anomalias da política tradicional é, por exemplo, seu excesso de masculinidade em uma sociedade que está quebrando todos os paradigmas de gênero. Se o número de mulheres ultrapassa o de homens em todo o mundo, isso não se reflete na política, embora sua missão seja garantir o bem-estar da sociedade e não criar ideologia. Se alguém conhece, de fato, as reais necessidades das pessoas e toca com as mãos a crueldade da desigualdade, é a mulher, que está mais perto do flagelo e das angústias sociais e familiares.

Sim, não basta dizer que o mundo está cansado da democracia e pressiona para voltar aos tempos do absolutismo e da barbárie. Os democratas de coração que veem a política apenas como um serviço à sociedade e não como um seguro de vida para si e suas famílias precisam refletir e compreender que a democracia só será salva se a política for vista como um serviço prestado à sociedade em vez de um privilégio que, para ser mantido e perpetuado, levou à invenção do mecanismo perverso da reeleição.

Portanto, o melhor antídoto para a onda de fascismo que cresce no mundo é reconstruir a cansada democracia que, apesar de ser a melhor forma de convivência pacífica da humanidade, é hoje acossada por tentações autoritárias que causam morte, injustiça e fome no mundo.

O fundador e primeiro editor deste jornal, Juan Luis Cebrián, agora membro da Real Academia Espanhola, acaba de escrever: “Estamos em um mundo conturbado, sujeito a grandes transformações. Se quiserem ser úteis à comunidade, os governantes ou aqueles que desejam chegar ao poder precisam ouvir mais e pregar menos, e se reunir com seus eleitores. Afinal, é a eles e não à nomenklatura que devem a honra e a glória. Mas são também os eleitores que detêm o direito de expulsá-los do templo”.

Hoje, no Brasil, diante da tragédia do Governo golpista do capitão Bolsonaro, dado o conluio entre as diferentes instituições estatais que se alimentam e se defendem, quem tem que reconquistar o direito de expulsá-lo do templo da política é quem estão sofrendo os efeitos maléficos de sua incapacidade de liderar o país, antes que seja tarde demais.

Depois de ficarem expostas as veias abertas da ignomínia criada pelo presidente com a pandemia, as ruas e praças do Brasil precisam urgentemente ressoar de novo sob o grito de “Fora com o Bolsonaro!” para que se possa recuperar a paz e a esperança perdidas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Em busca do fundo do poço

 José Castilho*

Ilustração: Mariana Tavares

O Brasil necessita ser recriado e isso só será possível quando superarmos as políticas economicistas e subalternas aos interesses de oligarquias

01/10/2021

A velocidade e a intensidade opressiva dos sobressaltos políticos, econômicos e culturais diários que estamos vivendo buscam, com a ânsia do esperado encontro, o fundo do poço desse sofrido período histórico. Afinal, diz o dito popular, quando chegamos a esse estágio final de decadência, só poderemos nos levantar, ressurgir, reconstruir, alçar voos.

Nesse momento que escrevo a coluna, a leitura dos principais acontecimentos da semana mostra que nem a vertiginosa velocidade da queda é suficiente para enxergarmos a escuridão do fundo que poderia nos levar novamente às alturas. No contexto das milhares de pessoas que saíram às ruas vestidas com as cores nacionais no dia de comemorações da Independência, encontramos, mais uma vez, a síntese do que há de pior em muitos dos nossos conterrâneos: a enorme dificuldade cognitiva, marcada pela intransponível dificuldade em ler e compreender criticamente o real; a ignorância de conceitos básicos da cidadania e dos direitos e deveres que regem a civilidade na vida em comunidade; o imenso atraso cultural e educacional marcado pelo colonialismo imbricado sobre aderência a pensamentos e ideologias regressivas e autoritárias.

Assistimos, atônitos, a declarações, palavras de ordem, entrevistas aos meios de comunicação que mais parecem pertencer ao mundo do nonsense e da perversão imposta pelo ódio à humanidade, do que a pessoas que convivem conosco em nossas famílias e que cruzam as ruas do país identificados como seres humanos. O teor e a ordem de grandeza desses infames mundos paralelos, profusamente difundidos pelas redes sociais, estão explícitos num apertar de botões, corroborando esta triste constatação.

Tristes e difíceis tempos que vão se caracterizando pelo ressuscitar de fantasmas autoritários pretensamente enterrados, como, por exemplo, as ideologias fascistas e nazistas. Se o fenômeno não é apenas brasileiro, as pesquisas recentes sobre o ressurgimento das ideias e movimentos neonazistas no Brasil são mais que preocupante, e deveriam acender todas as luzes de alerta nos verdadeiros democratas. Em matéria na Folha de S. Paulo no dia 15/08/2021, a jornalista Fernanda Mena, baseada na pesquisa da antropóloga Adriana Dias, revela que houve um crescimento exponencial de “células neonazistas” no Brasil: de 75 agrupamentos em 2015 para 530 em maio/2021. Outro dado da reportagem revela a explosão de conteúdo com apologias ao nazismo nas redes: de 1.282 episódios em 2015, saltou-se para 9.004 em 2020, mais de 600% de aumento. Ainda no mundo virtual, foram removidas 329 URL/endereços de conteúdo nazista em 2015 contra 1.659 remoções em 2020. É sempre bom lembrar que são atividades criminosas, ilegais e que atentam contra a democracia e a Constituição. E elas estão em crescimento. E todo esse movimento de ultradireita ganha legitimidade e visibilidade na “esteira da ascensão do discurso sectário do hoje presidente Jair Bolsonaro”, como bem assinala a jornalista, e como pudemos atestar nas ações e verbalizações do presidente e de seus militantes que foram às ruas no último 7 de setembro.

Quando afirmamos ou ouvimos que a política hoje no Brasil é alimentada pelo discurso do ódio, é preciso acrescentar que este não nasce de um processo natural, numa leitura ao inverso da filosofia de Rousseau que entendia que o homem nasce naturalmente bom. O brasileiro, assim como todos os seres humanos, não tem o mal intrincado no espírito, mas seu comportamento como cidadão é fruto de uma história de iniquidades e explorações selvagens e extratoras, brutalizada pela marca do escravismo estrutural que deformou nossa sociedade e seus valores, dividindo seres humanos pelo ódio de classe, de cor da pele e etnia, de sua condição sexual e econômica, somados à permanente exclusão do seu direito à leitura e à educação. A república das milícias, retratada no livro de Bruno Paes Manso, não seria possível sem os nossos 500 anos de história.

E como sair desse tenebroso e injusto mundo sem termos a firme convicção de que somente políticas públicas vigorosas, suprapartidárias e de Estado, pactuadas com a Sociedade Civil, são o único caminho do resgate deste interminável “fundo do poço” no qual nos encontramos?

Será que conseguiremos compreender a real dimensão do exemplo que estamos tendo com a vacinação em massa nesta pandemia mortal? Depois de quase 600 mil vidas ceifadas pela Covid-19, do descaso genocida da política pública de saúde, somente agora, com a vacina, o país realiza uma ação imposta pela força da resistência cidadã ao desgoverno e damos os primeiros passos para sair da crise sanitária. Se o fato sanitário é evidente, é preciso compreender que a política pública em escala, agora aplicada e sintetizada pelo SUS e pelos esforços dos institutos de pesquisa científica, é o único instrumento para enfrentar uma questão desta natureza e dimensão, com potencial para arrasar o país e sua população.

Ora, o mesmo raciocínio se aplica a todas as questões igualmente estratégicas para a necessária reconstrução nacional que se impõe após o desastre humanitário e social que estamos sendo submetidos desde o golpe que depôs a presidente constitucionalmente eleita, e que culminou com a eleição e preservação até hoje do ser indizível que ocupa a presidência.

Recuperar a Política Pública nas áreas imprescindíveis é a principal missão da sociedade brasileira e seus representantes. O país já demonstrou que pode fazer isso em várias áreas.

No âmbito da formação de leitores, do direito à leitura para todos, já construímos o alicerce legal com a Lei 13.696/2018 da Política Nacional de Leitura e Escrita. Igualmente, já demos demonstração recente que investimentos públicos baseados em um Plano Nacional de Livro e Leitura é capaz de aumentar exponencialmente os investimentos que saltaram da média histórica, apenas no âmbito da Cultura, de 6 milhões de reais/ano até 2006 para 90 milhões/ano no período de 2008 a 2010 (Fonte: relatório do MinC/DLLLB – Balanço das ações de livro e leitura – 2003/2010).

Os dados atuais mostram exatamente o oposto. Matéria recente do jornal O Globo demonstra que o orçamento da área cultural caiu pela metade nos últimos dez anos. Mesmo com a crise econômica de 2011, o extinto MinC tinha um orçamento de R$ 3,33 bilhões, hoje transformados em R$ 1,77 bilhão. E ainda, conforme o mesmo jornal, o desgoverno não consegue executar o diminuído orçamento: 30% da verba em 2020 não foi gasta e em 2021, faltando quatro meses para o final do ano, apenas 36,5% dos recursos disponíveis foram empenhados.

É preciso comprometer essas prioridades nas propostas dos candidatos a nos governar nas eleições de 2022. As barbáries que convivemos na nossa história e no presente acachapante só poderão ser superadas se começarmos a investir em Políticas Públicas de Estado que priorizem a Educação, a Cultura, as Ciências e as Humanidades, formadoras de consciências cidadãs. O Brasil necessita ser recriado e isso só será possível quando superarmos as políticas economicistas e subalternas aos interesses de oligarquias financeiras e políticas, que só servem à paralisia do desenvolvimento sustentável e equânime que todos queremos e que é possível conquistar.

* É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

 # Edição 258, outubro de 2021

Fonte: https://rascunho.com.br/colunistas/leituras-compartilhadas/em-busca-do-fundo-do-poco/