sexta-feira, 8 de outubro de 2021

“A missão do jornalismo independente nunca foi tão importante como hoje”


Sean Zanni/Patrick McMullan via Getty Images
 
Um texto da jornalista filipina Maria Ressa, agora laureada com o Nobel da Paz, publicado pela VISÃO, em abril de 2020, ao abrigo do acordo com a revista Time, sobre a importância do jornalismo num mundo em pandemia e dominado por poderes cada vez mais autoritários

Por todo o mundo, há líderes com cada vez mais poderes. É isso que esta pandemia exige: uma abordagem coordenada de toda a nação com um dirigente poderoso ao leme. Mas temos de ser prudentes, para que as medidas adotadas no combate a esta crise não venham a causar outra: a morte da democracia como nós a conhecemos.

Para lidar com a Covid-19, países como o Brasil, a Índia, a Jordânia e a Tailândia têm vindo a restringir a liberdade de Imprensa e a liberdade de expressão. Em nações como a Coreia do Sul, os EUA e Israel, foi imposta uma vigilância intrusiva [através dos telemóveis] para controlar o movimento dos cidadãos, em detrimento dos direitos humanos. Estas medidas draconianas dão imensa força aos líderes no topo da hierarquia, cujos valores e juízos estão sujeitos a pouca ou a nenhuma exigência de responsabilidade.

Alguns dirigentes aproveitam-se desse poder. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán já governa por decreto e por tempo indeterminado. Na Bolívia, no Chile, em Israel e na Roménia, os governantes reforçaram competências devido ao vírus e usam-nas para consolidarem o seu domínio e marginalizarem a dissidência.

E depois temos o meu país, as Filipinas. Em finais de março, o Presidente Rodrigo Duterte colocou a maior parte do território em confinamento social. Rodeado por homens fardados, reduziu os transportes públicos e falou em quarentena, a partir de casa, em checkpoints e no recolher obrigatório – mas pouco disse sobre o vírus ou a ajuda económica aos que dela necessitam. Aonde é que as pessoas vão buscar alimentos e outros bens essenciais? O que vai acontecer aos que precisam de ganhar diariamente a vida, aqueles que, como dizemos nas Filipinas, estão na situação de “não há trabalho, não há salário”?

Em 24 de março, o Presidente aumentou os seus poderes, ao abrigo do estado de emergência, ao assinar uma lei eufemisticamente designada por “Bayanihan” – “Curar Unidos”. A palavra bayanihan faz alusão a uma tradição comunitária de trabalho em conjunto para resolver um problema. O Congresso [em Manila] convocou uma reunião urgente e, apesar de não haver um plano coerente por parte de Duterte, os deputados aprovaram, em apenas 24 horas, a lei que ele lhes pediu, oferecendo-lhe mais de 4 900 milhões de euros para enfrentar a pandemia.

Quanto ao Senado, embora tivesse dificultado o pedido de Duterte para nacionalizar companhias privadas (por enquanto, ele pode apenas ordenar a estas empresas que ajudem o governo), acabou por aceitar uma medida de última hora, penalizando os que “difundirem informações falsas… nos média sociais e em outras plataformas… com o objetivo claro de promover o caos, o pânico, a anarquia, o medo ou a confusão”, e ainda outra medida destinada a sufocar a nossa Imprensa livre. A pena prevista é de dois meses de prisão e uma multa até um milhão de pesos filipinos [mais de 18 mil euros].

Em 1 de abril, Duterte instruiu publicamente a polícia sobre como deveria agir se as pessoas resistissem à ordem de quarentena: “Atirem a matar!”. No dia seguinte, foi isso exatamente o que aconteceu, em Agusan del Norte, quando um agricultor de 63 anos foi mandado parar numa operação stop por não usar máscara facial. Embriagado, ele queixou-se, alegadamente, de falta de comida e terá pedido ajuda. O relatório policial acusou-o de tentativa de ataque com uma lâmina, referindo que foi por isso que um dos agentes o matou.

Mas nem tudo são más notícias: ao contrário de Orbán, os poderes do estado de emergência de Duterte têm um prazo de três meses. A maioria dos filipinos está vigilante online – exigindo respostas, mais testes à Covid-19 e mais equipamento de proteção individual para os profissionais de saúde – bens essenciais que deveriam ter sido fornecidos há muito mais tempo. Depois das ordens do Presidente para “atirar a matar”, os filipinos nas redes sociais iniciaram uma campanha com a hastag #OustDuterteNow [Derrubem o Duterte Agora].

A missão do jornalismo independente nunca foi tão importante como hoje, quando são tomadas decisões sem transparência. Agora, mais do que nunca, os factos são importantes. A verdade é importante. E é também importante manter um sistema de pesos e de contrapesos. Ainda que sejam necessários poderes de emergência nestes tempos extraordinários, não devemos desistir das nossas liberdades tão duramente conquistadas. Recuperá-las poderá ser ainda mais difícil do que domesticar um vírus.

Fonte:  https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2021-10-08-a-missao-do-jornalismo-independente-nunca-foi-tao-importante-como-hoje/

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