domingo, 31 de outubro de 2021

Sorria, você não está sendo filmado

 Juliana Sayuri* 

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Getty Images

De condomínios fechados a ilhas particulares, quanto mais exclusiva, mais cara ela é: por que a privacidade se tornou um dos maiores luxos da atualidade

Isolar-se em uma ilha paradisíaca, com areia branca e água azul cristalina do Oceano Índico, o melhor spa, as melhores frutas da estação, as melhores iguarias servidas por chefs estrelados, todos os caprichos atendidos por concierges habilidosos como gênios da lâmpada de Aladim, dançar como se ninguém estivesse olhando – e sorrir pois você não está sendo filmado. Se instalar-se num lugar assim já é exclusivo a poucos afortunados, poder fazer tudo isso sem precisar se expor é a cereja dos privilégios. Isso porque a privacidade se tornou um plus, um valor agregado ao mercado de alto luxo.

Um publicitário poderia divulgar um destino assim com uma campanha carpe diem sobre sombra e água fresca finalizada com a frase “não tem preço”. Mas tudo tem. No caso, são cerca de US$ 75 mil (R$ 415 mil) a diária. Era este o valor para se hospedar na maior ilha particular no arquipélago das Maldivas quando ali se abriram as portas do Waldorf Astoria Maldives Ithaafushi, informou a revista Forbes.

Parte da lógica que rege o mercado de luxo, portanto, é a da ostentação, o contrário da privacidade

Ithaafushi, como foi batizada a área privada no Atol Malé Sul, quer dizer “ilha das pérolas”. A proposta, definiu o gerente do resort dias antes da inauguração, era transformá-la em “um destino de primeira classe altamente requisitado, mas para poucos”. Para atender aos hóspedes, poucos como pérolas, o hotel conta com equipe especializada em “garantir que todas as suas necessidades sejam atendidas com a máxima discrição”, destacou o porta-voz.

Luxo, lato sensu, significa “privilégio, raridade, suntuosidade”, define André D’Angelo, especialista em marketing e mercado premium e autor de “Precisar, Não Precisa: Um olhar sobre o consumo de luxo no Brasil” (2018) e “Por uma Vida Mais Simples” (2015). Serviços e produtos de luxo são considerados caros e bons, distribuídos de maneira seletiva ou exclusiva. São supérfluos também, no sentido de serem “substituíveis” por um equivalente funcional não tão caro, acrescenta ele.

Luxo atrai consumidores por dois motivos: status e prazer, e ambos podem estar associados, diz D’Angelo. “Parte da lógica que rege o mercado de luxo, portanto, é a da ostentação, o contrário da privacidade. Friso a palavra ‘parte’ pois nem todo o mercado é assim. As marcas, inclusive, se identificam por serem mais ou menos adeptas da privacidade, ainda que indiretamente”, pondera.

Há marcas que investem em logomarcas e monogramas para se ver de longe e há clientes que as procuram justamente pois imaginam que serão notados com elas – basta lembrar de grifes que incluem logos gigantes em suas peças, como o cavalo da Ralph Lauren depois de um anabolizante no canto da camisa polo.

Achava-se que experiências exclusivas eram a nova fronteira do luxo, discretas, não ostentatórias. Mas esqueceram de combinar com as redes sociais

Outras marcas, ao contrário, apostam em peças mais discretas, sem identificação imediata. E isso se estende aos serviços, inclusive na indústria de turismo. “Antes, achava-se que experiências exclusivas eram a nova fronteira do luxo, por serem discretas, não ostentatórias. Esqueceram de combinar com as redes sociais, em que tudo virou imagem postável.”

Isto é, muitas vezes, privacidade é uma miragem num mundo de influenciadores digitais, artistas e aspirantes a celebridades.

Estratégia emoji

Para Jayme Drummond, 50, especialista em hospitalidade, a pandemia dividiu os clientes em dois tipos: os hedonistas, que agora querem curtir a vida ao máximo pois ficaram muito tempo dentro de casa; e os minimalistas, que passaram a priorizar um estilo de vida mais reservado. “Privacidade faz parte do universo de alto luxo”, diz Drummond, o carioca do Carioca NoMundo no YouTube, que explora experiências de viagens de alto padrão. Isso se nota, exemplifica ele, desde a busca por cabines na primeira classe nos aviões até a preferência por resorts e hotéis exclusivos, estruturados em vilas particulares, às vezes com mordomo 24 horas.

“Há quem prefira privacidade total e nem sequer têm contas em redes sociais; são extremamente bem-sucedidos, fazem viagens incríveis e não têm perfil no Instagram, por exemplo”, conta Drummond. “Outros querem compartilhar suas experiências em redes sociais e transformam sua vida quase num reality. Outros ainda as usam como ferramenta de trabalho. Mas mesmo quem trabalha com isso quer uma certa privacidade em determinados momentos”, avalia.

Ele, por exemplo, mostra no YouTube suas experiências a bordo de aviões e flanando por hotéis e destinos desejados, de um resort superexclusivo na Polinésia Francesa ou um safári na África do Sul – mas preserva sua vida pessoal ou da intimidade de sua casa, família e amigos. “Consigo separar isso de forma confortável. Todo mundo, num determinado grau, gosta de privacidade.”

A busca por essa tal privacidade às vezes se manifesta não em palavras, mas em emojis. Mais precisamente, em emojis cobrindo os rostos das pessoas: há perfis abertos de pessoas públicas, como influenciadores digitais e artistas, que vêm utilizando essa estratégia para preservar a identidade dos fotografados.

Um dos primeiros exemplos está do outro lado do globo, onde a food influencer Margaret Lam, de Hong Kong, fez sucesso com o perfil @little_meg_siu_meg perambulando por Tóquio. Little Meg foi quem guiou o chef norte-americano David Chang a um dos endereços gastronômicos na capital japonesa na segunda temporada da série “Ugly Delicious”, lançada em 2020 – no episódio, o rosto dela foi digitalmente mascarado por um smiley o tempo todo.

Mais recentemente, a autora Olivia Harrison destacou num artigo na revista Refinery29, um braço da Vice Media, celebridades que estão cobrindo o rosto de seus filhos ao postar fotos no Instagram, de atores hollywoodianos como Orlando Bloom, Kristen Bell e Chris Pratt a modelos como Ashley Graham e Gigi Hadid. “O que torna esse fenômeno tão interessante”, ela escreveu, “é que muitas das celebridades que usam emojis para talvez pôr uma barreira de privacidade em torno de seus filhos são também as que compartilham quase todo outro aspecto de suas vidas com seus seguidores e fãs”.

“Se não pode vencê-los, renda-se logo a eles” talvez seja a lógica por trás de decisões na direção oposta. Foi o caso da atriz Déborah Secco, que desde cedo expôs sua filha, Maria Flor. “Sempre tive certeza de que não conseguiria evitar a exposição dela”, ela disse à Veja, em 2017. “Então quis evitar que, cada vez que ela aparecesse, isso causasse uma comoção. Acho que, ao divulgar a imagem da Maria, ela vai ficando mais comum e não desperta tanta curiosidade”, justificou, ao dizer que não conseguiria blindar a filha, que então tinha menos de 2 anos, por não ter “o dinheiro da Sandy”, ilustrou a atriz.

Exclusivo a 1%

Paparazzi à parte, a pandemia expôs desigualdades nas mais diversas áreas e na privacidade não foi diferente. Afinal, a quem é possível isolar-se com acesso ilimitado a serviços, produtos e lazer, com segurança digital e integridade física, um teto sob a cabeça e três refeições quentes por dia, sem necessidade de se deslocar para trabalhar – aliás, sem necessidade de sequer trabalhar? Ter tudo isso com uma pitada extra de luxo, a privacidade, talvez seja imaginável apenas para os mais ricos dos mais ricos, o 1%.

“A vida dos 99% hoje é forçadamente mediada pelas mídias digitais ligadas ao capitalismo de vigilância”, diz o antropólogo Rafael Evangelista, pesquisador do LabJor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

A vigilância vai desde a esfera do Estado (por exemplo, com coleta de dados necessários para elaborar políticas públicas) até a iniciativa privada (cujo modelo de negócios conta com tecnologias de monitoramento e o big data para nutrir análises de mercado, identificar comportamentos e moldar tendências). “Um nível de vigilância faz parte da nossa vida social moderna e não é necessariamente ruim. Nociva é a exploração autoritária ou comercial dessa vigilância de modo a aprofundar assimetrias de poder”, critica.

A privacidade se tornou um tipo de moeda de troca. Os dados acabam sendo usados no mercado

Assimetrias que se notam nos mínimos detalhes do dia a dia na internet e nas ruas: depender do Wi-Fi grátis de um parque público ou ter o próprio 5G; alugar um AirBnb ou arrematar uma ilha particular; ou, acrescenta Evangelista, pedir um Uber ou ter um motorista particular e não deixar rastros de deslocamento, nem digitais. “É um exemplo trivial, mas mostra como quem tem mais dinheiro tem mais possibilidade de se proteger mais da vigilância de aparelhos, apps e serviços que usariam nossos dados como fonte de lucro. Escapar disso é mais difícil para quem tem menos poder aquisitivo.”

No Brasil, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) vale não apenas no âmbito digital, mas inclui todas as dimensões da vida, lembra a jornalista Mariana Gomes, 23, cofundadora da Conexão Malunga, cujo foco é tecnologia, e pesquisadora do Cepad (Centro de Estudos e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia) da UFBA (Universidade Federal da Bahia). “Isso porque a privacidade se tornou um tipo de moeda de troca. Os dados muitas vezes acabam sendo usados no mercado, extrapolando a esfera digital”, assinala. E, como os algoritmos não são neutros, sempre há quem está mais exposto que outros: corpos negros são mais visados do que brancos, por exemplo; corpos femininos, mais que masculinos.

“’Poesia não é um luxo‘, dizia a autora Audre Lorde [1934-1992], ativista negra e referência da teoria feminista contemporânea. Pois é, muitos elementos da nossa vida são tratados como privilégios, como algo além e para poucos. Mas, tal como a poesia, a privacidade não é um privilégio, um luxo. Ou, ao menos, não deveria ser.”

*Jornalista. Historiadora

Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/tem-alguem-olhando/privacidade-virou-luxo/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama

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