quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Evanildo Bechara, da ABL: "A língua portuguesa não mudou, quem mudou foi a roupa

Evanildo Bechara — Foto: Fernando Lemos/Agência O Globo  

Evanildo Bechara — Foto: Fernando Lemos/Agência O Globo

Para o gramático e acadêmico, as mudanças no português são superficiais e não modificam sua estrutura

Por Rubem Barros, para o Valor — São Paulo

12/10/2021

Aos 93 anos, o professor, gramático e escritor Evanildo Bechara, ocupante da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL), está sempre disponível quando o assunto é língua portuguesa. Questionado pelo Valor sobre mudanças observadas no português nos últimos anos, foi enfático ao considerá-las apenas alterações superficiais que não atingem a essência da língua, que é a gramática. E recorre a uma analogia para dizer: a língua é o corpo, que continua o mesmo — a mudança está na roupa que veste o corpo.

Autor de diversos livros, entre os quais o mais recente é “Fatos e dúvidas de linguagem” (Nova Fronteira, 2021), primeiro de uma série de três intitulada “Uma vida entre palavras”, Bechara credita à pouca leitura e ao mau ensino da língua portuguesa, o domínio precário que a maioria da população tem da norma culta. “A escola, infelizmente, não está preocupada em produzir a língua.”

Valor: Do ponto de vista do sr., a língua portuguesa está sendo muito modificada em razão de fenômenos contemporâneos?

Evanildo Bechara: A língua não muda, nós é que mudamos a língua. A falta de cultura, o desinteresse pela maneira de falar e quase sempre o excesso de popularismos em seu uso, tudo isso faz com que a língua vá perdendo uma série de características. E acaba se transformando naquilo que os franceses chamam de “patois” (patoá), que é pior do que dialeto [Segundo o Houaiss, em sua origem, “patois”, do francês, queria dizer “língua grosseira, incompreensível”. Mais tarde, adquiriu o sentido de “falar local”, ou “dialeto ou jargão oral”]. É um patoá, uma linguagem a serviço de uma comunidade pouco culta e pouco interessada em falar bem. E não há o exercício da leitura, pois a língua entra não só pelo ouvido, mas também pelos olhos, na língua escrita. Você vê a palavra escrita e se corrige. Na língua falada, nem sempre se tem a capacidade de perceber como a pessoa pronunciou, e o resultado é que a língua escrita é mais fiel à tradição. E como hoje pouca gente utiliza a língua escrita, e a maioria se contenta quase que exclusivamente com a língua oral, ela vai se fragmentando. E até mesmo pessoas que têm uma educação razoável, como, por exemplo, os locutores de televisão e de rádio, cometem enganos muito facilmente.

Hoje, infelizmente, na escola, em vez de estudar a língua, a pessoa estuda a ciência que estuda a língua. Em vez de saber empregar bem os substantivos, os adjetivos, os verbos, a preocupação da escola é ensinar ao aluno o que é verbo, o que é adjetivo, quer dizer, a teoria da língua. A língua espontânea, então, vai perdendo o cuidado que merecia e que deve merecer — e o resultado é esse patoá que corre até entre pessoas de certa cultura, que fizeram o curso colegial, quer na vertente literária, quer na vertente científica [correspondente ao atual ensino médio, antes dividido entre clássico e científico]. A pessoa vai perdendo não somente o interesse, mas a preocupação de falar corretamente.

Valor: O sr. acha então que a forma como é proposto o ensino da língua portuguesa afasta o interesse dos estudantes pela língua?

Bechara: A escola, infelizmente, não está preocupada em produzir a língua. Por exemplo, faça uma redação sobre isso, escreva o que você sabe sobre aquilo, fale o que você sabe sobre determinado fato. Em vez de você estudar o uso da língua, a escola se preocupa em ensinar a linguística, ou a teoria linguística, e isso não interessa ao falante. A não ser que o falante se destine, na faculdade, a um curso de língua portuguesa. Mas, quando ele chega à sala de aula, em vez de ensinar o aluno a falar e escrever corretamente, ele se preocupa em exigir do aluno a teoria gramatical — o que é um verbo, o que é um adjetivo, um substantivo etc. —, isso só interessa a quem estuda a língua de maneira científica.

Valor: Hoje temos três vertentes mais fortes que agem sobre a língua: a influência das redes sociais e suas formas próprias de escrita, a incorporação de estrangeirismos diversos e as lutas identitárias, com a briga principalmente pelo uso do gênero neutro. Como o senhor vê isso?

Bechara: Veja, na história da língua, o gênero neutro que havia em latim e no grego praticamente ficou reduzido em língua portuguesa. Mas acontece que o pessoal dá uma importância capital a isso, e o resultado é que em vez de falar e escrever corretamente, a preocupação da escola é ensinar ao aluno a definir corretamente.

Valor: Mas, na questão identitária, essa parece ser uma questão social que transcende a língua, que se quer ver observada também por meio da língua...

Bechara: Pois é, exatamente, quando a língua não está preocupada com essa diferenciação, não é?

Valor: Isso pode prosperar e ser incorporado pela língua escrita?

Bechara: É difícil prever o futuro. No futuro, isso pode ser substituído por uma necessidade maior de a pessoa se expressar corretamente, e isso leva a pessoa a se preocupar com a realidade falada e escrita das pessoas de cultura, que hoje está representada numa pequena porção da sociedade. Então é difícil a pessoa entrar no conhecimento da língua culta, a língua padrão, das pessoas escolarizadas. Hoje em dia é mais comum que as pessoas escolarizadas se dobrem à língua popular, do que a língua popular ascenda a uma gradação da língua das pessoas cultas.

Valor: Até porque essa porção popular está em maior número e agora tem acesso a tudo (escolas, meios de comunicação e consumo etc.)

Bechara: Exatamente. E os órgãos condutores de língua culta vão se dobrando às realidades da língua falada popular.

Valor: No caso dos estrangeirismos, o senhor acha que eles têm sido mais presentes, ou apenas trocamos de influência do francês, que vigorou até meados do século passado, para o inglês atualmente?

Bechara: O estrangeirismo pertence a uma realidade da língua falada. O estrangeirismo pode mudar a norma da língua, mas não muda a gramática da língua. Essas preocupações com gênero neutro, traduzir o neutro etc., essas coisas não se refletem na língua. Então se criam regras que parecem atender à realidade, mas regras que não têm um fundamento científico. Acontece o seguinte: o vocabulário não define uma língua. Se o vocabulário definisse uma língua, o inglês não seria uma língua do ramo germânico, seria uma língua do ramo neolatino. O vocabulário não faz a gramática, o vocabulário é um problema de cultura, e não um problema linguístico. Você pode ter um vocabulário muito rico de estrangeirismos, mas isso não muda a língua. O vocabulário está para a língua assim como a roupa está para o indivíduo. Você muda de roupa quando vai à praia, quando vai a um casamento ou vai trabalhar, mas você continua sendo você mesmo. A gramática é a pessoa; o vocabulário é a vestimenta da pessoa. O fato de usarmos muitos estrangeirismos não modifica a língua, modifica a expressão do vocabulário. É como a pessoa que só tem um terno para as situações sociais; já outra pessoa tem diversos ternos para as variadas situações sociais. Mas tanto num caso como no outro, só existe uma pessoa.

Valor: Mas, nos casos em que a estrutura das frases começa a mudar, como, por exemplo, ao perguntarmos se tal horário “funciona para você” (do inglês “does it work for you”), no lugar de “está bom para você”, não estamos decalcando uma tatuagem nesse corpo?

Bechara: Não, o que há é o seguinte: de acordo com a cultura, o vocabulário ou se estende ou se reduz. Na linguagem de hoje, uma frase como essa, esse verbo, funcionar, não interfere em outras situações linguísticas. A língua é traduzida pela sua gramática, o vocabulário é uma parte externa, cultural, que depende da cultura do falante. Como há pessoas que às vezes usam mais a língua estrangeira que a língua materna, esses estrangeirismos vão sendo introduzidos nesta última.

Valor: Como o sr. vê, mais de uma década depois de sua implementação, os níveis de incorporação do acordo ortográfico no Brasil e em Portugal, onde eles têm se mostrados mais resistentes às novas regras?

Bechara: Portugal, como é o “dono da língua”, está menos afeito às novidades. E no Brasil, como é uma língua nova, uma modalidade nova daquela língua tradicional que é a língua padrão portuguesa, o brasileiro fica mais liberado. E essas liberações dão a impressão a quem não conhece a língua cientificamente que a língua mudou. A língua não mudou, quem mudou foi a roupa. O indivíduo continua sendo o mesmo.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/10/12/evanildo-bechara-da-abl-a-lingua-portuguesa-nao-mudou-quem-mudou-foi-a-roupa.ghtml

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