quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Juan Gabriel Vásquez – Anatomia de um século

 

Luís Ricardo Duarte entrevista Juan Gabriel Vásquez, o autor de A Forma das Ruínas, distinguido em Portugal com o Prémio Literário Casino da Póvoa Correntes d’Escritas

É sabido que muitas vidas dariam um bom romance, outras são capazes de espelhar todos os movimentos que marcam um século. É o caso da de Sergio Cabrera, hoje mais conhecido como realizador, mas que no final dos anos 60 do século XX militou na guerrilha colombiana, depois de uma passagem (e formação) pela Revolução Cultural da China de Maio. Olhar para Trás, a nova ficção de Juan Gabriel Vásquez, um dos mais destacados escritores da América Latina da atualidade, é uma tentativa de compreender esse passado, pessoal mas também coletivo, feito de causas, lutas e fanatismos, que ainda hoje tem repercussões no presente, nomeadamente na aplicação dos Acordos de Paz da Colômbia de 2016. O JL entrevista o autor de A Forma das Ruínas, distinguido em Portugal com o Prémio Literário Casino da Póvoa Correntes d’Escritas

O passado, a memória, as raízes dos problemas presentes. Pode dizer-se que em todos os seus romances procurar confrontar-se com estes temas, sempre com o objetivo de perceber (ou definir) o lugar da Colômbia no mundo. Juan Gabriel Vásquez é, também o poderíamos dizer, um grande viajante do século XX, que tem descrito como poucos em obras já distinguidas com os mais importantes prémios da América Latina e não só.

Em Olhar para Trás, o seu romance mais recente, escrito durante os primeiros confinamentos da atual pandemia, tomou como ponto de partida a vida do seu amigo e realizador colombiano Sergio Cabrera. Da Guerra Civil Espanhola, cujo desfecho determinou o exílio dos seus país, até às crises do presente, passando pela Revolução Cultural da China de Mao, é um retrato da geopolítica internacional das últimas décadas, que tanto marcam os destinos de um país, como as vivências individuais e íntimas.

Nascido em Bogotá, na Colômbia, em 1973, Juan Gabriel Vásquez formou-se em Literatura na Sorbonne, em Paris, e viveu durante muitos anos em Barcelona. Começou a publicar romances com 20 e poucos anos, mas apenas considera Os Informadores, de 2004 (publicado em 2020 em Portugal, pela Alfaguara, como todos os seus livros) o seu primeiro romance. Seguiram-se História secreta de Costaguana (ainda sem tradução portuguesa), O Barulho das Coisas ao Cair, As Reputações e A Forma das Ruínas. Em Olhar para Trás tentou desaparecer do livro enquanto narrador para que as personagens pudessem falar por si só.

Jornal de Letras: “Essas vidas que nos contam uma História maior”, lê-se a meio deste seu novo romance. É um dos seus lemas enquanto escritor?

Juan Gabriel Vásquez: Sim e sobretudo deste romance. Olhar para trás nasceu de uma série de conversas que tive com o Sergio Cabrera ao correr de muitos anos. Eram conversas entre amigos, sem qualquer objetivo profissional, que nasciam da minha curiosidade em saber mais de uma vida que me parecia exótica, certamente pouco usual, fascinante. A certa altura, percebi que esta não era apenas uma vida interessante, mas também um percurso que contava algo maior. Cada episódio que o Sergio partilhava comigo configurava um retrato de todo um momento do século XX, cujas consequências continuam a marcar o presente, nomeadamente o da Colômbia.

Os Informadores, um dos seus primeiros romances, também se inspirava na vida de uma mulher que partilhou a sua vida consigo. Foram experiências literárias semelhantes?

A mulher que inspirou Os Informantes tinha uma vida que me contava um fragmento do século XX em concreto. A vida do Segio Cabrera foi para mim tão sedutora precisamente porque me dava tudo. Através de uma só vida fala-se da Guerra Civil Espanhola, através do seu pai, do surgimento das ideias de esquerda na América Latina, da Revolução Cultural na China de Mao e dos movimentos revolucionários na Colômbia a partir dos anos 60. O meu primeiro pensamento, quando conheci a fundo a vida do Sergio, foi: se isto fosse uma novela ninguém acreditaria, seria inverosímil. O que me interessa desde Os Informantes é contar histórias nas quais as vidas privadas e as públicas chocam. O que acontece nesse momento? E como acontece? Nesse sentido, continuo com essa obsessão.

A obsessão pela memória?

Sim. E pela convicção de que o passado só é acessível através das histórias. O que consegues contar com o jornalismo ou com a história é muito valioso, mas há um espaço da experiência do passado que só está ao alcance do romance. É outro tipo de conhecimento.

Em que sentido?

O romance é uma forma de conhecimento ambíguo, não se pode quantificar ou medir, mas sem o qual não compreenderíamos totalmente nenhum episódio do passado. Isto é, para entender o passado público e o seu impacto na vida privada é preciso conjugar todos esses saberes: do jornalista, do historiador e do romancista.

O século XX todo e a vida um amigo muito próximo. É um escritor que gosta de desafio ou de correr riscos?

Tudo neste livro era um enorme problema, de facto [risos]. Contar a vida de um amigo sem causar dano e sem dizer uma só mentira. Sem maquilhar ou camuflar a realidade, no fundo. O objetivo era esse, tal como falar de assuntos que ainda hoje no meu país são focos de conflito. Quando o livro estava prestes a sair, o Sérgio escreveu-me a dizer que estava nervoso e com medo da reação das pessoas: de esquerda, de direita e da sua família [risos]. Na verdade, vivemos num tempo e, no meu caso, num país em que é difícil falar do passado. Por ter essa vontade, também percebi que a melhor estratégia era desaparecer do livro, ausentar-me, para que a história, o passado e os intervenientes a contassem na primeira pessoa.

Já não publicava um romance há seis anos e em várias entrevistas lhe perguntaram pelo próximo. Ter um desafio tão grande foi importante para si, inclusive em tempos de pandemia?

Acredito de sim. Este livro foi, na verdade, um refúgio extraordinário. Depois de sete anos de conversas, a pandemia apanhou-me com 20 páginas escritas que não me convenciam de todo. Durante as dúvidas e incertezas dos primeiros confinamentos, este romance foi o antídoto perfeito. Como digo na nota final do livro, estou convencido de que a sua escrita conferiu ordem e propósito aos dias caóticos da quarentena e permitiu-me em mais de um sentido conservar uma certa sensatez no meio daquela vida centrífuga.

Antes de ser romance, a história de Sergio Cabrera foi um guião de cinema. Foi um percurso com muitas alterações?

Algumas. Esse guião surgiu de um convite de uma produtora chinesa ao Sergio. A ideia era contar apenas a sua passagem pela China num filme, para o qual ele me convidou para escrever o argumento de uma ficção. Os produtores acabaram por achar que o filme nunca iria passar na censura. Nessa altura, contudo, eu já percebera que a sua vida era iluminadora. O filme podia nunca ser feito, mas o romance tinha de existir. Até porque a morte do pai do Serio apanhou-o em Barcelona, no meio de uma crise matrimonial e na altura em que os acordos de paz foram recusados pelos colombianos. Pareceu-me a metáfora perfeita de uma grande crise existencial a partir da qual se recorda o passado para perceber o que se passou. Ou seja, a construção de todo este livro deve ao romance, não à biografia.

A decisão de escrever esta vida foi sua ou tomou-a com o Sergio?

Foi só minha. Quando a certeza se formou na minha cabeça disse-lhe que queria escrever um romance e ele concordou. Nunca pediu para ler uma página, nem nunca soube o que eu estava a fazer.

Não teve a sensação de estar a falar com uma personagem?

Isso foi mudando ao longo do livro. Sempre tive presente que a minha estratégia como romancista era escrever como se o Sergio não existisse ou como se tivesse morrido. Tinha de escrever a sua história como a Virginia Woolf escreveu a da Mrs. Dalloway, como uma personagem de ficção. Mas sabia que terminado o manuscrito dá-lo-ia a ler ao Sergio, para ter a sua opinião ou cortar o que ele achasse necessário. Com uma enorme satisfação percebi que, pelo contrário, apenas quis acrescentar uma ou outra informação. Foi muito comovedor, sobretudo porque usou os diálogos do meu livro para dizer ao seu pai o que não conseguiu dizer enquanto ele ainda estava vivo.

O romance começa com a Guerra Civil Espanhola. Estamos sempre a regressar a esse momento tão importante, mesmo quando o ponto de vista é o da América Latina?

Foi Juan Villoro quem primeiro me disse que os grandes vencedores da Guerra Civil Espanhola, entre republicanos e nacionalistas, foram os países latino-americanos. Porque receberam os exílados republicanos, uma série de intelectuais e de pioneiros com vontade de inventar coisas novas em países que ainda estava à procura do seu lugar no mundo. Vivendo num país como a Colômbia, que nessa época não se abriu a esse exílio, a Guerra Civil Espanhola e as suas consequências na América Latina sempre me interessaram. O que seríamos hoje caso tivéssemos sido um país mais aberto? É preciso imaginá-lo.

Todas as personagens deste livro, e da família de Sergio, são de grandes convicções. Também o cativou essa dimensão?

O que mais me seduziu foi a reflexão sobre as decisões que tomamos. Em 1969, Sergio toma a decisão de se unir à guerrilha colombiana, mas à medida que me contava a sua história era evidente que essa decisão não a tomou sozinho, mas com o passado familiar, as convicções do tio e do pai, a tradição de uma família com heróis e todo o enquadramento histórico. Esse mecanismo é muito interessante: acreditamos que tomamos decisões autónomas, mas há, na realidade, outras forças.

E o fanatismo, no qual Sergio também chega a cair, no sentido de fazer a revolução até ao limite. Como o entendeu?

Fanatismo é uma palavra que, de facto, o Sergio usa, por isso a usei também. A causa é um tema fascinante, essa capacidade que os seres humanos têm para sacrificar tudo — família, amigos, amores — em nome de um ideal. Por que o fazemos? Até aonde podemos ir?

Será mais fascinante ainda num tempo em que o ativismo se faz com likes e a partir do sofá?

Sim, claro. Os novos mecanismos de conversa entre cidadãos são inseparáveis de uma certa forma de fanatismo. As redes sociais constroem uma realidade para cada utilizador, diferente da do vizinho. É feita apenas para ti segundo o teu historial de consumo, das páginas que visitas, das tuas viagens ou do tempo que gastas a ler um texto a favor de Trump e outro contra. Isso vai-nos convertendo em fanáticos de pequena intensidade. Nas conversas que tivemos, o Sérgio disse muitas vezes que atrás da narrativa que eu construí há uma necessidade de entender por que razão uma geração inteira, em todas as partes no mundo, decidiu que a luta armada era o único caminho para os seus ideais. Os ideais eram os corretos, mas os meios para os concretizar desvirtuaram-nos imediatamente. É um das grandes lições que recebemos, hoje, de histórias como a sua: a capacidade da violência para envenenar tudo, para destruir até os melhores ideais. Em O Homem Revoltado, Camus põe a pergunta fundamental: temos direito a matar ou a ver alguém ser assassinado como meio para a Revolução? A minha resposta é não. Nada justifica o sacrifício de uma vida humana.

Em vez de fechar a Colômbia nos seus conflitos, este livro mostra-lhe as suas raízes em outros momentos históricos. Isso pode ser importante para um novo olhar para os problemas do presente?

Acredito que sim. Sem nenhum intenção programática, todos os meus livros perguntam pelo lugar da Colômbia no mundo, estabelecendo um diálogo com uma História mais global. Porque nunca acreditei que as histórias dos países sejam fenómenos isolados. Acredito num diálogo e numa ligação de acontecimentos que parecem separados mais que estão a conversar a toda a hora. E os romances são capazes de encontrar esse vínculos secretos, que não ocorrem na realidade visível, mas numa dimensão essencialmente emocional, psicológica, existencial.

Fonte:  https://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2021-10-20-juan-gabriel-vasquez-anatomia-de-um-seculo/

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