segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Francisco de Roma e Francisco de Assis: a fraternidade universal segundo Leonardo Boff

 Andrea Grillo*

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"As palavras do Francisco medieval e aquelas do Francisco contemporâneo ressoam não principalmente como uma proposta ascética, mas como inspiração para uma nova ordem mundial, que tem condições institucionais e pessoais. Este é o sonho que Boff apresenta em seu 'pequeno livro', ao mesmo tempo espiritual e político",

Um livro saboroso, apresentado por um rico Prefácio de Pierluigi Mele - L. Boff, Abitare la terra. Quale via per la fraternità universale? (Habitar a terra. Qual caminho para a fraternidade universal?, em tradução livre, Roma, Castelvecchi, 2021, pp. 76) - oferece uma releitura apaixonada do “magistério fraterno” do Papa Francisco, em forte harmonia com a tradição franciscana. E faz isso situando-o no contexto das reações contra a crise ecológica e cultural, econômica e política que está ameaçando a vida humana e o sistema geral de existência do nosso planeta.

Diante das graves ameaças que constam nas primeiras páginas da obra, as grandes reações "públicas" foram sobretudo três: a Carta da Terra (2003) e depois as duas encíclicas Laudato Sì (2016) e Fratelli tutti (2020) de Papa Francisco. Diante desse alarme, que nos últimos vinte anos chamou a atenção de todos, a reação foi muitas vezes a que Boff considera bem representada por um apólogo de Kierkegaard, retomado por J. Ratzinger no início de seu livro talvez mais famoso, Introdução ao Cristianismo: os gritos de alarme são frequentemente interpretados como o truque de um palhaço, como uma brincadeira, e assim o circo queima! A raiz dessa indiferença, semelhante àquela da época de Noé, é o capitalismo liberal e neoliberal: a agressão contra a natureza e o homem, em nome da liberdade-domínio, determina progressivamente uma injustiça ecológica e uma injustiça social que chega a justificar o assassinato. Desse modo, "a racionalidade analítico instrumental provou ser absolutamente irracional" e destinada à autodestruição.

Diante dessa situação, a encíclica Fratelli tutti propõe uma releitura da tradição fundada no conceito de "fraternidade", como condição para incidir realmente sobre a questão ecológica. Em essência, trata-se de passar, no entendimento do homem, da figura do dominus à figura do frater. Esse é o sonho e o projeto de Fratelli tutti, como proposta de um “novo paradigma para a sociedade mundial”. Para chegar a esse novo paradigma, é necessário, em primeiro lugar, questionar o atual modelo de desenvolvimento, baseado em quatro pilares muito frágeis, ou seja, aqueles do mercado, do neoliberalismo, do individualismo e da devastação da natureza: o perfil econômico, político, cultural e ecológicos estão estreitamente ligados e devem ser discutidos de forma unitária.

Como se responde a essa deriva, que mesmo a pandemia global corre o risco de apenas acentuar, com uma concentração ainda mais forte de todo o poder efetivo nas mãos de poucos? A resposta vem do que há de mais típico no homem e na mulher: o amor, um amor liberto de sua dimensão apenas individual e que se torna amizade, fraternidade, instituição de cuidado, princípio de assistência, cooperação. Trata-se de “generalizar e universalizar o que era subjetivo e individual”: essa é a novidade proposta pelo Papa Francisco. Aqui L. Boff encontra a raiz de um “novo paradigma”, o do frater, para cuja ilustração realiza um confronto com o modelo clássico, o do dominus.

O modelo do homem-dominus parece autocentrado e indiferente aos outros e ao meio ambiente. Para além das raízes em que se baseia - que segundo Boff surpreendentemente vão de Descartes à Escola de Frankfurt - pode ser representado por um "punho fechado que submete", enquanto o modelo do homem-frater pode ser entendido como uma "mão que acaricia e que se entrelaça com as outras”. É preciso dizer, no entanto, que o primeiro modelo estruturou muitas experiências políticas e sociais, não apenas na Europa, enquanto o segundo permanece em grande parte uma utopia, um sonho, com poucas realizações confinadas em regiões isoladas do mundo ou em formas limitadas de experiência religiosa.

O que fazer então? Com uma série de virtudes - ternura, gentileza, solidariedade - que têm sua figura narrativa na parábola do Bom Samaritano, trata-se de “começar de baixo”. As dimensões local, regional, nacional e mundial seguem-se nessa ordem. Mas a inspiração desse "novo paradigma", que exige formas concretas bastante inovadoras, repousa, em todo o caso, na contribuição que os grandes religiosos poderão dar a essa revolução. A universalidade de Deus e a particularidade dos últimos são o horizonte do sentido primeiro da fraternidade, o único que pode sustentar esse empenho. O Papa Francisco, inspirado pelo Franciscopoverello”, nos mostra o caminho e nos dá esperança.

Para compreender esse intenso texto de L. Boff, como intérprete do Papa Francisco, é necessário lembrar que um, como o outro, são filhos da América Latina. Onde a história moderna começa, de alguma forma, com um "holocausto antecipado". O terrível dado que se lê na pág. 47 - em 70 anos a população do México, no início da conquista, passou de 20 milhões para 1,7 milhão! - deixa claro como os "sonhos de fraternidade" vêm do primeiro papa americano. Mas isso também confirma a tendência intrínseca no homem à "vontade de poder", que anula o amor. Um discurso "ecológico" e um discurso "antropológico" estão assim estreitamente ligados.

Para conter efetivamente essa inclinação destrutiva e autodestrutiva, Boff indica o caminho oferecido por Francisco de Assis: “humildade radical e pura simplicidade” (52). A última parte do texto é uma meditação sincera, também marcada por uma componente autobiográfica, na qual o autor medita longamente sobre as viradas decisivas na vida de Francisco de Assis, para compreender até o fundo como a possibilidade de uma "fraternidade universal" passe por uma conversão do olhar do homem, por uma singular sintonia com toda a criação. Já nele a tensão entre carisma e poder não demorou muito para emergir. Francisco aceitou isso como uma necessidade. Mas os desenvolvimentos de sua experiência foram em grande parte de caráter pessoal, não social. A condição para tal desenvolvimento - que seria justamente o novo paradigma de Fratelli tutti - é “que cada pessoa se coloque em uma posição de humildade, de proximidade com o outro e com a natureza, superando as desigualdades e vendo em cada um, o irmão e a irmã com quem partilhamos o mesmo húmus, terra das nossas origens comuns” (58).

É necessário, portanto, “apostar na fraternidade”. Isso só pode ser feito sob certas condições, ou seja, reconhecendo que:

  1. a "condição humana" é estar em equilíbrio entre sapiens e demens, entre ordem e caos.
  2. a renúncia ao poder-domínio é o único espaço de encontro fraterno
  3. é necessário amar o próximo não só "como", mas "mais" do que a si mesmo.

A síntese que Francisco de Assis ofereceu como um grande profeta no coração da Idade Média torna-se hoje de nova e exigente atualidade, especialmente depois da crise pandêmica, que mostrou de maneira nova e surpreendente a correlação radical em que todos os homens e as mulheres vivem também hoje: diante disso, as palavras do Francisco medieval e aquelas do Francisco contemporâneo ressoam não principalmente como uma proposta ascética, mas como inspiração para uma nova ordem mundial, que tem condições institucionais e pessoais. Este é o sonho que Boff apresenta em seu “pequeno livro”, ao mesmo tempo espiritual e político, que não só é apresentado por Pierluigi Mele com cuidadosa dedicação, mas também a Pierluigi Mele é dedicado com fraterna amizade.

* Teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non.  A tradução é de Luisa Rabolini.

Fonte:http://www.ihu.unisinos.br/613304-francisco-de-roma-e-francisco-de-assis-a-fraternidade-universal-segundo-leonardo-boff

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