Adriano Moreira
O tema da dignidade na política, tal como acontece em
relação a todas as intervenções na vida social, tem em primeiro lugar
relação com a definição do fenómeno identificador da política, e depois
com a escala de valores que é variável, não apenas ao longo dos tempos,
mas também na área cultural que estiver em exame.
Quanto à primeira referência, a do fenómeno
identificador, talvez possa admitir-se que é o que mais interliga todas
as concepções, passadas ou vigentes: trata-se da conquista,
conservação, e exercício do poder de governar a comunidade.
A conquista pelo exercício da violência e força
militar, quer em processo de expansão no sentido de submeter territórios
e povos, quer no sentido de submeter a comunidade originária, tem
essa referência identificadora, que celebrizou a obra de Maquiavel, o
qual se limitou mais a descrever o processo do que a doutrinar sobre
condicionamentos éticos dos agentes. Deste modo, o maquiavelismo ficou
como uma corrente, de narrativa histórica volumosa, abrangente de
procedimentos já não necessariamente militares e violentos, mas do
exercício de enganos públicos e privados, de quebras de lealdades, em
suma, de falta de autenticidade, isto é, de coerência entre o discurso
e a ação.
O século XX teve e sofreu exemplos devastadores desta
atitude, que tem o êxito como valor, e o desastre ético como resultado
final: o nazismo e o sovietismo foram molduras de conceitos
estratégicos exercidos por homens que cultivaram minuciosamente o
maquiavelismo.
Foram essas tragédias, marcadas pelas guerras chamadas
mundiais, mas de facto ocidentais, de 1914-1918 e 1939-1945, que
fizeram regressar a importância do condicionamento do poder político,
na conquista, no exercício, e na defesa, pela ética, e a tentar
condicionar o processo da globalização pela ética internacional. Não se
trata apenas de exprimir essa exigência em normativismos jurídicos,
como são a Carta da ONU e a sua Declaração de Direitos Humanos. O
encontro de todas as áreas culturais em liberdade, que levou Kofi Annan
a procurar, desde 2001, instituir o diálogo entre elas, tornou
evidente a necessidade de formular uma Ética global, a que se dedica a Global Ethic Foundation, actualmente
presidida pelo notável Hans Kung. Este, tendo sobretudo em vista a
questão do Islão, vai propondo soluções pragmáticas, de modo a passar
da imagem hostil à imagem da esperança, tema de que se ocupou o Parlamento Mundial das Religiões, reunido em 1999 na cidade do Cabo.
O confronto das duas percepções, a maquiavélica e a ética, tem
imediato reflexo no conceito normativo da dignidade na política.
Exemplos contemporâneos são, designadamente, Mandela e Václav Havel, o
primeiro com o significado especial da trajectória entre a violência
revolucionária e a santidade laica. E pondo em evidência que a
dignidade na política implica a total devoção ao bem comum da
comunidade, agora a tender para mundial, a autenticidade traduzida na
coerência entre o discurso e a ação, a coragem de manter o eixo da roda,
que são os valores, perante a adversidade, como fizeram líderes da
guerra de 1939-1945, com destaque para Churchill e Roosevelt.
O relativismo que atingiu severamente o ocidente, que
colocou o credo do mercado no lugar do credo do civismo, o preço das
coisas no lugar do valor das coisas, os valores instrumentais acima dos
valores fundamentais, multiplicou os casos de fortalecimento da
corrente maquiavélica, feriu severamente a relação de confiança entre
governantes e governados, levou os povos a tratar os responsáveis
políticos na terceira pessoa (eles), e afastou os melhores do exercício
da política. O regresso à autenticidade como atitude dominante é, para
além dos inevitáveis erros e fracassos, a mais urgente necessidade de
restaurar a dignidade na política, e a relação de confiança entre povos e
governantes.
Quando João Paulo II proclamou Thomas Morus santo
patrono de parlamentares e governantes, não ignorou que fora Chanceler
da Inglaterra, assim como, ao elevar aos altares D. Nuno Alvares
Pereira, não esqueceu que foi condestável do Reino de Portugal, e
exerceu o poder militar contra os inimigos da independência do reino.
Tratou-se, como escreveu Francesco Cossica a respeito
do primeiro, de reconhecer os valores que serviram de cânone a toda uma
vida, e, naquele caso, dando testemunho com a perda da vida.
Esse cânone foi chamado virtude por Cícero e por
Aristóteles, uma moral que se manifesta na política com a flexibilidade
exigida pelos interesses a servir.
Isto significa, no conceito, que, tal como é evidente
na esfera militar, é compatível com danos infligidos às pessoas (não só
materiais), porque também o homem virtuoso é condicionado pelas
circunstâncias.
Muitos entenderam que o melhor discurso sobre a
virtude se deve a Aristóteles, o qual, entre mais detalhes, a considera
como a disposição de obedecer à razão contra quaisquer oposições,
definir os objetivos da ação e não apenas os meios de agir, dando como
exemplo a coragem prudente, que não evita o risco por ceder às
tentações de evitar o dever, tomando a honra como motivo sejam quais
forem as circunstâncias.
A evolução ocidental para a democracia procurou
definir juridicamente, nas Constituições, os normativos que,
observados, garantem a dignidade da política. Todavia, a mundialização
do objetivo de tornar o modelo democrático imperativo, rapidamente
demonstrou que antes das normas jurídicas está uma conceção do mundo e
da vida que orienta as definições codificadas, que tais paradigmas são
variáveis com as áreas culturais, e por isso os compromissos entre os
valores e os interesses são condicionados não apenas pela prudência,
mas frequentemente pelos interesses. No mundo ocidental a distinção
entre moral de convicção e moral de responsabilidade, em que
Weber insistiu, tem expressão visível no normativismo das relações
internacionais, cada vez mais influenciadas pela libertação do
colonialismo que dominou várias áreas culturais. É assim que o direito humanitário parece um compromisso entre os Direitos Humanos (essenciais) e os limites supostos pelo conceito de guerra justa, o
que teve uma expressão histórica, primeiro no Tribunal de Nuremberg
que rejeitou a justificação da obediência, e, depois, pela instituição
do Tribunal Penal Internacional, este a contribuir para as indagações
sobre um possível paradigma mundial (Kung) que se imponha às
diversidades.
Por isso, a busca de uma nova diplomacia global, destinada a conciliar o mundo, o que procura são padrões comuns de
dignidade na política, fiando da autenticidade, isto é, da concordância
entre o discurso e a prática, a paz para os nossos dias.
Tal como já escrevi (DN, 3-1-12), provavelmente é
ainda necessário, e duradoira apersistência, que os intervenientes mais
notados do processo atualizem a relação entre as convicções históricas
que lhes moldaram a identidade e a realidade que mudou em termos de
ser a outra coisa que não estava prevista nos seus planos por vezes
seculares.
É a isto que Blancheri chama "a necessidade de
conciliar o mundo", já nem sequer bipolar estrategicamente, mais
bipolar do ponto de vista da balança económica e financeira, mas de
qualquer modo a exigir redefinir a conciliação entre a política de
imagem e a política consistente, entre a reserva de soberania e a
interdependência, entre um paradigma ético global e um pragmatismo de
conciliação. Realmente colocar o diálogo diplomático construtivo e
criador no lugar da competição de interesses contraditórios e
inconciliáveis, que dominaram a história não apenas europeia, mas
mundial.
O processo europeu cedo levou a avaliar as exigências
da querida unidade, não só de mercado, mas política, na área
diplomática, ficando célebre o depoimento de fim de carreira do
diplomata italiano Roberto Ducci, o qual terminava com um - Good bye to all that, ao
imaginar que a cooperação dentro da comunidade europeia implicaria uma
reformulação total da relação da nova estrutura dessa unidade com o
mundo.
O fecho de consulados e embaixadas, que também
praticamos, tem menos que ver com esta prevista evolução do que com a
ideologia de orçamento e contenção, imposta pelo desastre financeiro e
económico global. Mas em qualquer caso, uma estrutura específica para
realidades específicas de cada membro da União, articulável com a
unidade desta, exige engenho e arte que a preserve e torne eficaz,
porque se trata das janelas de liberdade a que nenhum país vai
renunciar.
Um mundo ideal não é necessariamente um mundo
simplificado, em que valores e interesses se agregam num só resumo
participado por todas as comunidades ao redor da terra. Conciliar o
mundo não é uniformizar o mundo.
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*Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes 2009
In Communio, 2012/1
27.08.12
*Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes 2009
In Communio, 2012/1
27.08.12
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