Pensador japonês que trafega por literatura, dança, teatro e
filosofia, dialogando com Deleuze, Nietzsche e
Clarice Lispector, debate
no Brasil
Por Christine Greiner | Imagem: Kandinsky, São Jorge II
Há uma grande lacuna editorial no Brasil (e na maioria dos países
ocidentais) no que diz respeito aos pensadores japoneses contemporâneos.
Quando se fala em “filosofia japonesa”, as referências mais citadas são
divididas entre autores da chamada Escola de Quioto
(interessados em releituras da fenomenologia européia), e aqueles que
trafegam entre a religião e a filosofia, com ênfase no budismo, no zen
budismo e no shintoísmo. Não raramente, a filosofia japonesa aparece
também diluída em pesquisas mais gerais acerca de uma certa filosofia
“oriental” ou “asiática”.
Uno Kuniichi (宇野邦一)transita
por outras redes. Pode ser considerado um pensador contemporâneo, se
lembrarmos da definição proposta por Giorgio Agamben inspirada pelas
considerações intempestivas de Nietzsche. O contemporâneo, neste
contexto, é aquele que não adere a sua época. Trava uma relação
anacrônica e defasada com o tempo e por isso mantém um olhar critico,
capaz de ver através da escuridão.
Mais do que um filósofo no sentido clássico, Uno é um pensador que
faz exercícios filosóficos para trafegar — solitário e errante — pela
literatura, pela dança, pelo teatro, pelo cinema e pela filosofia.
Não é fácil mapear as suas procedências, nem seguir o seu rumo. Ele
não tem nenhuma base estável. Desliza por intertextualidades entre
Rimbaud, Artaud, Deleuze, Foucault, Nietzsche, Bergson, Benjamin,
Bataille, Tanaka Min, Hijikata Tatsumi, Genet, Beckett, Kafka, Pasolini,
Nijinsky e Clarice Lispector, entre muitos outros artistas pensadores
dessa mesma família de inquietações e angustias.
Uno Kuniichi
A escolha e a afeição pela língua francesa, na qual foram
originalmente escritos quase todos esses ensaios, tem a ver com os anos
que passou em Paris, para fazer o mestrado e depois o doutorado,
finalizado em 1980, na Paris VIII sob supervisão de Gilles Deleuze.
Desde então, Uno traduziu para o japonês obras fundamentais de Deleuze (Foucault,
Mille Plateaux, Le Pli, L’Épuisé, L’Anti-Œdipe, L’Image-temps), de
Artaud (Pour en finir avec le jugement de Dieu, Les lettres de Rodez,
Les Tarahumaras) e de Beckett (Compagnie, Mal vu mal dit,Pour finir encore).
Como explicou em entrevista a D’Istria (Kassile,2006:88), a opção
pela língua francesa não foi apenas uma contingência da sua história,
mas também representa a busca da liberdade para escapar da opressão de
sua língua materna, o japonês — embora este seja o idioma com o qual
consegue se revelar mais intimamente.
Em francês, algumas palavras (como advérbios), certos tempos verbais
(que expressam um presente contínuo) e pontuações (vírgulas e
reticências), reforçam a sua narrativa poética sempre inacabada. São
percepções que se articulam umas às outras num fluxo contínuo, nada
determinista.
Em japonês a lógica gramatical é outra. Como explicou em 2007 em um ensaio publicado no n.29 da revista francesa Multitudes; a língua japonesa não tem pronomes relativos como o francês (qui, que, dont, lequel, laquelle…).
Algumas palavras também não contam com uma tradução literal, como é o
caso de “representação”, “sentidos” etc. Para traduzir a obra de Deleuze
e outros autores franceses, foi preciso encontrar soluções que não se
restringiam à tradução dicionarizada, que lhe parecia muito limitada.
Uno sempre esteve muito mais interessado em captar um certo ritmo, as
sutilezas e fissuras do pensamento.
Com seus amigos dançarinos (especialmente Hijikata Tatsumi e Tanaka
Min), aprendeu a perceber o corpo a partir do movimento. É dessa
transgressão corpórea, nem sempre evidente nos discursos filosóficos,
que somos convidados a participar ao ler a sua obra. Uma revolução
interna, potente, que desestabiliza todo tipo de hierarquia e autoridade
(Deus, Governo, Instituições, Modelos de Pensamento).
A sua narrativa fragmentada nasce sempre da vida por um fio, da
metamorfose e da ambivalência: o homem que se desumaniza e se descobre
homem, o movimento que teima em se pronunciar no corpo morto, o caos que
gera criação…
Uno escreveu dezoito livros.1 Os ensaios incluídos nesta
coletânea apresentam, portanto, uma pequeníssima amostra de sua obra. Ao
fazer o exercício de traduzi-los para o português percebi algo que me
deixou encantada e extremamente intrigada. Quando escreve sobre um
artista ou filósofo, Uno parece diluir, logo de saída, a distancia entre
aquele que analisa … e o “outro”. O seu texto abandona a dicotomia
sujeito/objeto uma vez que já nasce contaminado e pronto para assumir
uma nova qualidade empática de existência.
Assim, ao escrever sobre Artaud, Uno é tomado por um devir Artaud. O
mesmo com Deleuze, Nijinsky, Hijikata, Genet, Beckett, Bergson, Genet e
Lispector. Por isso é impossível traduzi-lo sem mergulhar de maneira
absolutamente imprudente na escuridão desses artistas geniais. E talvez a
melhor maneira de apresentar a sua Gênese de Um Corpo Desconhecido, seja através da fala de um deles:
“Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas
por pessoas de alma formada.
Aquelas que sabem que a aproximação,
do que quer que seja, se faz gradualmente
e penosamente – atravessando inclusive
o oposto daquilo que se vai aproximar.
Aquelas pessoas que, só elas,
entenderão bem devagar que este livro
nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, ele
foi dando pouco a pouco uma alegria difícil;
(C.L.)–
2. Este texto é o prefácio de A gênese de um corpo desconhecido. Clarice Lispector escreveu esta epígrafe em 1964 para os possíveis leitores de A Paixão segundo G.H
----------------------
Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/08/21/uno-kuniichi-e-sua-filosofia-intempestiva/
Nenhum comentário:
Postar um comentário