João Pereira Coutinho*
O mundo midiático, na sua estupidez, continua a olhar para Assange como um herói da "transparência"
Julian Assange aparece na janela da embaixada do Equador, em Londres.
Prepara-se para falar às massas. Não consegue. Uma quantidade generosa
de tomates e ovos podres atinge o seu rosto adolescente e pretensamente
rebelde. A multidão aplaude. Os jornalistas também. Acabou o circo.
Envergonhado com a humilhação, Assange regressa para dentro da
embaixada. Depois de um duche (frio) e de um café (forte), o foragido
australiano decide ser homem pela primeira vez na vida e entrega-se às
autoridades inglesas. Segue-se a extradição para a Suécia.
"The end."
Foi mais ou menos por essa altura que eu acordei. Assange ainda falava.
Imbecilidades sobre imbecilidades. Infelizmente, ninguém jogou tomates
ou ovos podres na cara dele. Deprimi.
Na janela da mesma embaixada, o fundador da Wikileaks vestia o traje de
grande mártir da liberdade de expressão -um insulto para qualquer
jornalista sério- e pedia aos Estados Unidos para pararem a "caça às
bruxas" contra o Wikileaks.
Na cabeça alucinada e apedeuta de Assange, o comportamento de Barack
Obama só é comparável à perseguição anticomunista movida pelo Estado
americano a alguns dos seus cidadãos em finais da década de 1940.
A comparação deveria ser repulsiva para qualquer criatura com erudição e
neurônios. As perseguições anticomunistas do senador Joseph McCarthy
foram uma deriva securitária lamentável contra supostos inimigos
ideológicos que Washington suspeitava estarem infiltrados no serviço
público, no ensino ou na indústria do espetáculo.
As ações de Julian Assange são diferentes: goste-se ou desgoste-se,
houve uma revelação objetiva de documentos secretos do governo
americano. As vítimas do macartismo eram inocentes. Assange não é
inocente.
Mas esse nem sequer é o ponto. Na janela da embaixada do Equador, em
Londres, esteve um homem procurado pela Justiça sueca por alegadas
agressões sexuais contra mulheres.
E a Suécia, convém lembrar aos amnésicos, é uma democracia europeia
civilizada, onde a investigação judicial é séria, os direitos humanos
são respeitados -e as garantias de um julgamento justo também. A Suécia
não pretende deter e julgar Assange por seus pecadilhos com a Wikileaks.
Deseja detê-lo e julgá-lo pelos seus alegados crimes contra duas
mulheres em 2010.
"Seria preferível optar por tomates e ovos podres. Assange não passa de
um foragido vulgar e de um manipulador de massas talentoso."
Curiosamente, crimes desses costumavam inflamar as feministas de
carteirinha. Não mais. Será que o antiamericanismo de Assange perdoa
tudo?
Em caso afirmativo, um conselho ao leitor: violar uma mulher pode não
ser grave desde que você seja um inimigo declarado da política
americana.
Claro que, a pairar sobre esta grotesca novela, existe um equívoco e uma farsa.
O equívoco, alimentado pelo próprio Assange, resume-se em poucas linhas:
se houver extradição para a Suécia, a Suécia poderá extraditar Assange
para os Estados Unidos onde ele seria julgado por espionagem (um crime
punível com a morte).
A hipótese não passa de um delírio teórico e qualquer aluno principiante
de direito internacional sabe por que: o Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem não permite processos de extradição para países onde existe a
séria possibilidade de aplicação da pena capital. Não é a Justiça
americana que Assange teme. É apenas a Justiça sueca.
Finalmente, a farsa. E dois nomes sobre ela: Rafael Correa.
Honestamente, serei mesmo a única pessoa a sentir genuína náusea quando o
presidente do Equador surge em cena como um grande defensor da
liberdade de expressão?
Por motivos puramente antiamericanos, o Equador resolveu conceder asilo a
Julian Assange. Mas, se Assange fosse verdadeiramente um defensor da
liberdade de expressão, ele recusaria os favores de um país onde essa
liberdade é artigo raro.
Será preciso lembrar aos colegas de ofício os constantes atropelos que o
governo de Quito comete sobre jornalistas críticos do presidente?
O mundo midiático, na sua estupidez bovina, continua a olhar para Julian
Assange como um herói da "transparência" e da luta contra o
"imperialismo".
Seria preferível optar por tomates e ovos podres. Assange não passa de
um foragido vulgar e de um manipulador de massas talentoso.
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* José João Pereira Coutinho (Porto, 1 de Junho de 1976) é um jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.É professor da Universidade Católica Portuguesa e comentador do Correio da Manhã e da TVI24.
jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha on line, 21/08/2012
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