A
origem histórica dos ciganos é obscura para a maioria das pessoas que
se depararam com um deles algum dia. São vistos com desconfiança talvez
mesmo até por isso e porque as mulheres, principalmente, costumam
exercer o mister da adivinhação, sempre passível de ser tomado como
charlatanismo caça-níqueis. É curioso que corre no folclore o mito de
que ciganos roubam crianças… Muito mistério envolve toda essa história, e
é por nada.
Os ciganos têm origem bem conhecida e determinada: a Índia, mais
precisamente o Rajastão, ao noroeste do país, de onde começaram a migrar
a partir do ano 1.000 d.C. Seu roteiro de diáspora se iniciou no norte
da Índia de onde acabaram emigrando para o oeste, passando pela antiga
Pérsia e indo parar no Egito, de onde se espalharam por quase todos os
países do Ocidente. Não tinham na origem uma religião definida:
cultuavam as forças da natureza, poderíamos chamá-los de pagãos… ou
xamanistas. À medida que foram se mesclando com outros povos, foram
adotando discretamente as religiões locais.
Na linguagem coloquial, costuma-se designar como cigano uma pessoa
que, por assim dizer, viva de lá pra cá, viajando a toda hora ou parando
pouco nos lugares. Vida cigana é uma vida livre e a expressão tem uma
leve, imperceptível quase, conotação libertina. Pois bem! Podemos
rotular Homero e sua filha Fernanda de ciganos, nesse sentido, extraída,
claro, a conotação licenciosa que se apôs ao termo, que não era do
hábito de nenhum dos dois meterem-se em práticas moralmente
comprometedoras. Homero, vá lá, era afeito a transgressões depois que
conheceu as proposições de Milton Bonder em seu livro A Alma Imoral
– ‘transgressões levam à evolução da alma’, ensina-nos o rabino – mas o
sentido da transgressão que apreciava tinha um caráter mais ideológico
que algo no campo dos bons costumes. Cada qual calibra suas convicções
nos limites do universo em que se move…
Mas voltemos aos ciganos, que divagações dessa natureza podem
confundir e afastar quem busca sentido em leituras deste jaez.
“Ciganos”, então, Homero e sua filha Fernanda seriam, porque não
“assentam o facho”, como se diz na gíria: vivem transmigrando de lá pra
cá, a serviço ou a passeio, ou a serviço criando brechas para o passeio.
Disso têm resultado descobertas e revelações incomuns, porque quando se
está ao léu, a mente meio que se desliga e o coração fica mais no
comando, levando-nos a situações e lugares inesperados que depois
justificamos ter procurado e encontrado intencionalmente – coisas da
alegada racionalidade do ser humano, que põe razões onde não as há. Pois
bem! Desta vez a ciganice de dona Fernanda estava conduzindo-a à Africa
do Sul, precisamente a Pretória. Concorrera com um trabalho num
simpósio de filosofia neo-clássica e fora selecionada, resultando isso
na oportunidade de apresentar-se a um público internacional e, de
quebra, ter todos os custos cobertos pelos organizadores. Coisa de sete
mais sete dias – aí entra aquela história de criar a brecha para dar um
pulinho ao Quênia, passar por Angola e, quem sabe – estava pendente –
voltar pelo Cairo para, lógico, ser fotografada ao lado das Pirâmides e
da Esfinge, de vero, sem manobras de photoshop. Ambos estavam
no aeroporto, o embarque foi em Cumbica e o pai resolveu aparecer e dar
aquele toque indefectível: ‘toma cuidado , hein!’. Esperavam a
vocalização robótica dos autofalantes avisando que o embarque estava
liberado.
Despedidas, enfim. “Pai, sei que você está já pensando em outro texto
mas, desta vez, vou passar…”, disse Fernanda toda manhosa nos trejeitos
mas com ar decidido. “Nem celular estou levando, quero ficar
concentrada e desligada. O telefone que deixei é para emergências e só
poderei atender à noite, e isso na primeira semana. Na segunda, aviso
por onde vá passando”, completou. “Tudo bem, Fê, pode deixar comigo”. E
lá se foi céu acima o Airbus da South African Airways, com Fernanda no
seu bojo…
“Eta, cigana! Você vive em aeroportos…”. “Oi Mero, chegando ou
voltando?”, respondeu Toctoc, esse era o apelido que ganhou, porque no
escritório onde trabalharam juntos ela sempre batia com delicado estilo
próprio em todas as portas antes de entrar, mesmo quando estavam
abertas. Doce nos gestos, era sua índole… Com quinze anos de diferença
entre ambos, trabalharam juntos por uma década, ele já assessor sênior
de organização, ela em ascensão na área de comunicações. Chegou a rolar
um certo flerte entre ambos. Rápidos olhares de cumplicidade, alguns
toques furtivos de dedos em happy hours, mas o affaire
não progrediu, desacertos da astrologia, quem sabe… Mais recentemente,
se encontraram no Schumacher College, onde ela cumpria um mestrado de
dois anos e aonde ele foi para um short course de três semanas.
“Nem uma coisa, nem outra, Toc: fui despachar minha filha Fernanda
pro exterior, vai ficar duas semanas lá fora. E você?” “Cheguei ontem,
voltei agora ao aeroporto à busca de uma mala perdida, nada a ver com
Proust, hahaha… Por enquanto, nadinha, droga!”.
Sentaram-se para um café com pão de queijo, continuando o papo. “Por
que você não foi ao jantar do Satish, na semana passada? Foi pros
ex-alunos do Schumacher, ele passou por aqui para umas palestras…” “Eu
soube, mas estava viajando, não deu!” “Olha, tenho umas coisas incríveis
pra te contar, está com pressa?” De fato, resulta que conversaram por
quase duas horas, cinco cafés e umas mil e quinhentas calorias
ingeridas, ao todo.
Antecedentes indispensáveis para prosseguir: Satish Kumar, indiano
como o nome sugere, nasceu, há pouco mais que sete décadas, no Rajastão,
a mesma região onde se originou esse povo vagante, os ciganos. Coisas
que intrigam pela imbricação: filho do Rajastão, Satish autodenomina-se
um peregrino, um andarilho enfim como os ciganos, ou um tanto mais que
isso. O peregrino anda por uma causa, como regra buscando chegar a um
lugar sagrado, fazer uma visita a um sítio mágico ou poderoso, ou
cumprir uma tradição religiosa. Um exemplo: os peregrinos muçulmanos vão
pelo menos uma vez na vida a Meca. Outro exemplo: executivos que deixam
em casa a gravata italiana e o BMW para buscar clarear no Caminho de
Santiago a alma turvada pelo estresse corporativo.
Em Satish, a peregrinação tornou-se um modo de vida. Sua busca é o
contato da alma, que ele sustenta residir no coração, com a fonte da
vida, a Natureza, e com o viabilizador da condição humana, o outro ser
humano, o conjunto dos humanos, a sociedade. O título de um de seus
livros já fala por si sobre sua visão de mundo: “You Are, Therefore I Am – A Declaration of Dependence”, a antítese do cartesiano “Cogito, ergo sum”, que privilegia o pensar sobre todo o resto.
Satish reside no Reino Unido, onde é Diretor de Programas do
Schumacher College, e foi, juntamente com a ambientalista Vândana Shiva,
fundador do Bija Vidyapeeth, escola agrícola e banco de sementes do
noroeste da Índia. Foi lá na fazenda Navdanya, em Dehradun, sede da Bija
Vidyapeeth (em tâmil, ‘universidade da semente’), que Cid Alledi,
professor de ética da Universidade Estadual Fluminense, amigo comum de
Homero e Danuza Milani – este, o nome batismal de Toctoc – desenvolveu
com Satish, durante um estágio que fez no local, um desenho de três
círculos, que dá forma gráfica a um modelo de sustentabilidade que
expressa os valores de um peregrino – peregrino, um ser que age no mundo
pela sensibilidade do coração a partir da Terceira Visão, como Satish
mesmo conceitua.
Na lanchonete do saguão, entre deglutições e sorvos, Danuza e Homero
relembraram os remotos tempos de empresa e o passado mais recente: a
inesperada graça do encontro e a breve convivência dos dois no
Schumacher, situado em Dartington, vilarejo no distrito de Totnes que se
notabiliza, não bastasse a escola, por ali circular a Totnes Pound, moeda criada pela comunidade local, e por ter sido o nascedouro do movimento Transition Towns.
Na escola, Satish de manhã conduzia uma meditação com aqueles que para
tanto madrugavam, e à noite, ao calor da lareira, dava palestras sobre
sua experiência como monge jainista, sua peregrinação permanente em prol
de várias causas que abraçou – sempre que podia, ia aos lugares
caminhando –, sua visão de mundo e sua filosofia de vida, baseadas na
compaixão e na conexão com o universo natural. Comentaram também como
foi o jantar da turma, ao qual ela não pôde comparecer, quem estava lá e
qual foi o papo que circulou. Num dado momento, Homero abriu uma
pequena pasta de couro que trouxera com alguns documentos de que
Fernanda poderia precisar para a viagem – obsessões paternas… – e
retirou dois papéis, garimpados dentre uma dezena de outros em certa
desordem: eram o modelo gráfico que o Cid ajudou a desenhar e as
anotações da conversa que teve com Satish no jantar.
“Me
explica esse desenho, estou superinteressada. Lá no Schumacher, mesmo
lá, quando se falava de sustentabilidade acabávamos sempre caindo no Triple Bottom Line
– Economia, Ambiente e Sociedade, um modelo criado para servir à
atividade econômica, concebido para as empresas. Tanto que ainda é a
base dos relatórios organizacionais do Global Reporting Iniciative, aqui
no Brasil todos tratam pela sigla ‘gê-erre-i’, acho gozado… Eu volta e
meia reclamava de que não se podia colocar a economia com mesmo status
que o meio ambiente, pois aprendíamos, também, que a economia era um
subsistema do meio ambiente, um deveria englobar a outra, e não integrar
o mesmo modelo em nível de igualdade. Porém não havia uma resposta
definitiva para isso. Mas… nesse modelo gráfico que você tem aí, sumiu a
economia. Onde ficaria?”. “Bem, a economia está presente em todo o
modelo”, esclareceu Homero, “pois a bactéria, a célula orgânica, o macro
organismo, todos os sistemas vivos e abertos têm que obedecer aos
princípios da economicidade, que se traduzem num equilíbrio entre
entradas, consumo interno do sistema e saídas. Talvez você esteja se
referindo às empresas, que não estão em destaque. É que aí fazem parte
da Sociedade, pois a ela devem servir, esse é o pressuposto do
modelo….”.
O burburinho do local, em que entravam e saíam aeromoças e
comandantes, funcionários do local, e passageiros com malas e pacotes,
acompanhados ou solitários, tornava às vezes a interlocução penosa, mas o
assunto era eletrizante para Danuza, e Homero se derretia com o
interesse de sua amiga Toctoc.
“Em inglês, os três elementos são “Soil, Soul & Society”,
que o Cid traduziu como está no gráfico, para manter os três S
iniciais. As intersecções também dizem muito: entre Solo e Ser, deve
haver uma atitude de comunhão, de identidade da nossa natureza com a
Natureza como um todo; o Ser retribui em serviço a acolhida e o apoio
que recebe da Sociedade, numa relação de reciprocidade; e à Sociedade
cabe exercer a curadoria do Solo, do bem comum, dos recursos que
sustentam a vida e viabilizam os confortos do dia a dia. Com tudo isso
se mantendo em equilíbrio dinâmico, se traça o caminho para a verdadeira
Sustentabilidade”. Homero tomou fôlego e prosseguiu: “Como em todo
jantar desse tipo, no do Satish o falatório, a barulhada mal permitia
conversar de uma forma consequente. Quando houve uma oportunidade, me
sentei à beirada da mesa dele e pedi ao Satish que me desse alguns
esclarecimentos, eu faria umas três ou quatro perguntas. Ele, atencioso e
sorridente, foi respondendo uma a uma, e anotei o que pude num
bloquinho que levara para isso mesmo. Está tudo nesse papel. Vou ler pra
você, Toc”.
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Registro da conversa com Satish Kumar – jantar da turma do Schumacher
H – Pode o coração ser o órgão pensante do corpo humano?
S – O coração está presente no corpo inteiro. Pensar
e sentir começam juntos no corpo inteiro e então migram para o processo
do cérebro.
H – O cérebro é como uma fábrica que apenas processa…
S – Sim, sim…
H – Você crê que os seres humanos são naturalmente compassivos?
S – Sim, por que os seres humanos somente sobrevivem
em relacionamentos, nada pode acontecer sem a compaixão. Compaixão é
sentir junto, e nos relacionamentos você sente junto.
H – Soil, Soul & Society – o que mesmo quer dizer isso, pode explicar melhor?
S – Necessitamos de uma filosofia que abrace o meio
ambiente, o mundo natural, a espiritualidade e a sociedade. Todos os
nossos relacionamentos ocorrem em três níveis: recebemos a nossa vida e
nossa nutrição do mundo natural, mas temos que cuidar de nossa alma, dos
nossos valores espirituais – compaixão, confiança e humildade, que são
valores da alma – e levar isso para a sociedade.
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“Que você acha disso, Toctoc?” “Quer que eu seja sincera, Mero? Bem…
quando eu vejo uma abordagem dessas fico pensando em quanta enrolação,
em quanto ‘mais do mesmo’ com nova roupagem têm essas novidades, como a Green Economy,
ou Economia Verde, como se a sobrevivência da espécie dependesse dessa
cor… hahaha! É uma maneira de continuar, por um tempo extra, sem mexer
na essência do modelo econômico. O Zé Eli já disse, num de seus artigos
recentes, que se alguma cor teria que ter essa economia pretensamente
salvadora, que levaria à sustentabilidade, seria a cor turquesa, que é a
combinação do verde com o azul celeste do ar e o azul escuro dos mares…
Isso de Economia Verde é mais uma moratória com que o sistema
instituído procura iludir a credulidade dos ingênuos, para que possa
continuar no seu modo habitual de atuação, de vantagens máximas no mais
curto lapso de tempo. Para outros, militantes e estudiosos até bem
intencionados nos seus esforços, não vai além de um entretenimento, um
passatempo intelectual; ou uma ilusão levada a sério que dá um propósito
temporário à vida.”
“É, faz sentido. Difícil discordar de você, Toc! Mas voltando ao
Satish, eu acho que o que ele nos procura fazer ver é que para além,
para longe mesmo desses modelos racionais, essas fabricações engenhosas e
manhosas, o que falta ao ser humano é agir com o coração, com esse
nosso coração que inspira o cuidar, o respeito, a sensibilidade para o
com o semelhante, e a noção de que, afinal, dependemos uns dos outros. A
aparente fragilidade dessa posição é ao contrário uma enorme força, a
única capaz de nos transformar de verdade, porque é mimética da Natureza
e com ela sintônica, é ecológica. Os ‘três S’, enfim, são uma trindade
holística, o oposto da trimúrti invertida, aquela onde se entronizam os
deuses da modernidade: Morte, Ciência e Mercado”.
Já era mais de meia-noite e o movimento começava a rarear. Deram-se
conta de que ainda tinham uns trinta quilômetros para chegar ao destino
de cada qual e, já levantando-se para sair, atualizaram reciprocamente
os telefones, que anotaram nos respectivos celulares. Queriam mais para a
frente continuar conversando sobre essas coisas… e, pelos olhares
trocados, as piscadelas meio aceleradas pela emoção ao se fitarem e o
abraço prolongado da despedida, também sobre “outras coisas” gostariam
de conversar, aquelas que o passado havia posto em espera…
Cinco dias após, Homero rompeu com o combinado e chamou Fernanda no
telefone que lhe deixara. Após breves trocas de atualidades entre os
dois, ela denotando certa pressa e uma mal disfarçada contrariedade,
Homero contou em linhas gerais a conversa que tivera com Danuza e
perguntou se ela tinha algum comentário. A resposta de Fernanda foi
curta e definitiva: “Anota aí essa frase de Blaise Pascal, é a minha
contribuição ao seu texto: ‘O coração tem razões que a própria razão desconhece’. Boa noite, pai!” “Boa noite, filha! Te cuida… ”.
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(Blog Repaginando/Mercado Ético)
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