O músico de Nápoles, ex-back vocal em turnês de James Brown e Tina Turner nos anos 1980, é a alma de "Enzo Avitabile Music Life". Exibido em caráter hors concours, com toda a pompa, na Sala Grande do Palazzo del Cinema, o documentário foi uma das principais atrações na primeira noite do 69º Festival de Cinema de Veneza, na quarta-feira. Com passagens pelo subúrbio de Marianella, onde o músico passou a infância, e pelo cemitério de Fontanelle, onde estão enterradas vítimas de praga (do século XVII), que inspirou uma de suas canções, o filme mostra como Avitabile conseguiu criar um estilo próprio na música folk. Inspirado em tradição nascida na era medieval, ele resgatou o uso de tonéis e barris como instrumentos de percussão, misturando essa batida do "bottari", como é conhecida essa prática ancestral, com jazz e blues. Avitabile chegou a ser indicado a quatro prêmios do BBC World Music Awards, pelo álbum "Let's Save the World''.
"Há dois anos, enquanto eu dirigia a caminho de casa, descobri Enzo ao ouvir um programa de rádio chamado 'New sounds with John Schaefer'. Naquela noite, era apresentado um especial com a nova música de Nápoles'', contou Demme ao Valor. "Assim que tocaram uma obra de Enzo Avitabile, passei a olhar de maneira diferente a ponte George Washington que eu atravessava naquele momento. Soube então que tinha de conhecê-lo'', disse o diretor, que recentemente encerrou a trilogia de documentários musicais com Neil Young: "Neil Young: Heart of Gold'' (2006), "Neil Young Trunk Show" (2009) e "Neil Young Journeys'' (2011). "Sou apaixonado pelo humanismo na obra de Neil. Podia fazer mais uns dois filmes com ele.''
A seguir, os principais trechos da entrevista, em que Demme não descarta voltar ao território da ficção, em que também se consagrou com "Filadélfia'' (1993) - com o qual Tom Hanks conquistou seu primeiro Oscar. O diretor acabou de rodar uma adaptação da peça "Solness, o Construtor", de Henrik Ibsen, com Andre Gregory e Wallace Shawn no elenco - que escreveram e estrelaram o filme "Meu Jantar com André" (1981), em que o diretor Louis Malle registra (como o título adianta) um jantar entre amigos em tempo real. "É ficção, mas muito distante de um filme 'mainstream'. Não seguimos qualquer fórmula, rodamos numa única locação e gastamos menos US$ 1 milhão.''
Valor: Como nasceu sua paixão por música?
Jonathan Demme: Sou filho da geração do rádio. Foi essa a primeira forma de entretenimento que conheci, muito antes da televisão. Desde menino, a música alimenta a minha alma. Como o cinema também é outra de minhas paixões, devo me considerar o cara mais sortudo do mundo por ultimamente estar ganhando a vida aliando as duas coisas.
Valor: Seus personagens musicais de documentários, filmes concerto ou videoclipes até então eram mais conhecidos do público internacional, como Neil Young, Talking Heads, Bruce Springsteen e The Pretenders. Como abordou o napolitano Enzo Avitabile, cuja obra é tão particular?
Demme: O mais importante num documentário é que o tema seja forte o suficiente. E Enzo é. Não acredito existir uma barreira a ser superada só pelo fato de a música dele ser napolitana. Acho que o documentário ganhará o espectador pela profundidade e pelo caráter de festa. A música leva essa vantagem sobre outras formas de arte. O que importa é o sentimento que ela desperta, independentemente de nacionalidade do autor ou do entendimento das letras. Comercialmente, o filme seguirá o caminho de todos os outros documentários que fiz. Quando conseguem distribuição, o circuito é sempre limitado.
Valor: É mais comum o cineasta jovem fazer suas experimentações no documentário, para depois chegar ao cinema "mainstream". Mas o sr. fez o caminho inverso...
Demme: Nada foi planejado. Sempre gostei de documentários, mas nunca pensei em dirigi-los. Minha vida mudou após uma viagem que fiz ao Haiti, país que mal conhecia e que me fascinou. Daí surgiu a ideia de ficar mais tempo por lá e de rodar um documentário ("Haiti Dreams of Democracy", de 1988) para o Channel 4, o que acabei fazendo.
Valor: Inicialmente, pensou que estaria apenas tirando férias dos filmes de ficção?
Demme: Essa era a ideia. Por um lado, sentia que já tinha dado minha contribuição em Hollywood e precisava respirar novos ares. Só que uma coisa acabou puxando outra. Quando vi, já estava filmando um novo documentário sobre um pastor radical ("Cousin Bobby'', de 1992), a convite de uma emissora espanhola. Foi a primeira vez em que trabalhei com o cameraman Declan Quinn, que me acompanha até hoje. Foi nesse momento que percebi que filmar um documentário me dava muito mais prazer do que rodar uma produção de ficção, por causa de todas as exigências de um grande estúdio que o diretor precisa atender.
Valor: A experiência em "O Casamento de Rachel" (2008) provou que rodar história de ficção como se fosse um documentário pode dar certo. O senhor tem mais projetos combinando essas duas possibilidades?
Demme: Sim. Isso me anima a filmar ficção novamente. Estou muito acostumado ao estilo de improvisação e a trabalhar com equipe pequena e orçamento modesto. Sem falar que é muito divertido rodar ficção fingindo se tratar de um documentário. A melhor parte é gritar "ação!" sem qualquer plano de filmagem pré-estabelecido. Basta deixar a cena acontecer. Algo do gênero poderá acontecer no projeto que desenvolvo atualmente com Walter Mosley, uma série de detetive de 12 episódios baseada no seu último livro, "The Long Fall". Mas será para TV.
Valor: E no cinema?
Demme: Minha volta com um filme de ficção no sentido mais tradicional provavelmente será com a adaptação do livro de Stephen King "11/22/63''. Estou cuidando também do roteiro, que pretendo estruturar como uma viagem no tempo em ritmo de "thriller". Um personagem do mundo atual conseguirá ser transportado ao passado, para tentar impedir o assassinato de John Kennedy. É só isso que posso dizer no momento.
Valor: Onde guarda o Oscar que ganhou?
Demme: Na cozinha, claro. Existe lugar mais visitado numa casa?
Nenhum comentário:
Postar um comentário