Paulo Ghiraldelli Jr.*
Os
liberais inventaram a igualdade perante a lei. Nada de ser julgado pelo
dono da terra, segundo seus critérios voláteis e idiossincráticos. A
lei é a lei: escrita, sempre igual, aplicável da mesma maneira ao rico e
ao pobre, ao coxo e ao lépido, ao homem e à mulher, ao branco e ao
negro etc.
Os conservadores tradicionais nunca
gostaram do liberalismo. Diziam eles: não somos iguais, então, por que a
lei deve ser igual em sua aplicação? Partindo dessa ideia, sempre
tentaram criar situações especiais, de modo que a justiça pudesse ser
cega, mas não tanto a ponto de não querer notar o rosto magnânimo dos
ricos e poderosos.
A esquerda descobriu um dia que talvez
os conservadores tivessem lá alguma razão: não somos iguais. E mais: se
quisermos lutar por uma comunidade de igualitarismo rasteiro, vamos
acabar construindo antes uma granja industrial que uma sociedade. Então,
a esquerda, ao menos a mais inteligente, começou a redirecionar sua
oposição aos liberais, sem se igualar à oposição dos conservadores
tradicionais. Passou a dizer que não somos iguais e, por isso mesmo, não
conseguimos nem ser iguais perante a lei. Para sermos iguais perante a
lei teríamos de ter mecanismos de compensação no meio do caminho, de
modo que, ao fim e ao cabo, pudéssemos ser iguais perante a lei.
Foi assim que do liberalismo tradicional
chegamos ao primeiro neoliberalismo, como se dizia na América, e à
social-democracia, como se dizia na Europa. Nos Estados Unidos, foi a
época do New Deal, na Europa, foi a época do pós-Guerra.
O liberalismo social americano e a
social democracia europeia tiveram seus altos e baixos, nós sabemos bem,
mas estão longe de ser uma ideia descartável. São boas políticas. São
de base inteligente. Todavia, nos dois casos, elas demandam um
carreamento dos recursos dos impostos para as políticas sociais que
visam fazer com que os menos ricos e menos poderosos não cheguem aos
tribunais de um modo tão desvantajoso que, enfim, acabe por gerar uma
justiça não cega. Sempre há o perigo que a justiça tire a venda dos
olhos e privilegie o rico se o pobre, ao seu lado, é muito pobre a ponto
de ser insignificante. Afinal, se a justiça é cega, é para olhar para
dois e não ver nenhum dos dois. No entanto, se um dos dois é muito
insignificante a ponto de nem ser uma pessoa, de nem existir, qual a
razão da justiça ter de ficar com venda nos olhos? Não há dois, há um só
para ser julgado. Então, não há mal em tirar a venda e ver quem é o
réu. Fazer com que o mais humilde não chegue ao tribunal tão pobre e tão
sem poder a ponto de ser descartado como alguma coisa que nem é
existente, é a função das políticas sociais que vieram após o
liberalismo clássico.
A direita democrática quer diminuir a
ação dessas políticas sociais. Ela invoca o perigo da feminilização da
sociedade. Ela diz que cada um, na sociedade, venha de onde vier, deve
trilhar o seu caminho de fracassos. O fracasso, diz ela, faz com que
cada um se torne humano, isto é, saiba o que é a dor, e então possa
compreender a dor do outro. Sentir o fracasso e a dor torna todos menos
maricas, cria uma sociedade com pessoas não cruéis, porque o
conhecimento da dor produz pessoas másculas, que sabem que para sair do
buraco é preciso coragem e determinação, porque não haverá nada que
possa ajudá-las. Assim, os conservadores entendem que ao fazer das
pessoas “gente máscula” terminará por ter uma sociedade com menos
problemas, com menos manha, fintas e matreirices.
A esquerda duvida muito que o fracasso
individual de cada um ajude a se ter, ao final, um conjunto social
melhor. Para a esquerda o fracasso cria antes de tudo o ressentimento. A
esquerda nem precisaria ler Nietzsche para aprender isso. Marx falou
disso quando comentou sobre o “comunismo de inveja”. Os ressentidos não
desejariam o fim da propriedade privada para organizar uma nova
sociedade, mas apenas para ter o gosto de ver o patrimônio dos ricos em
suas mãos, enquanto funcionários públicos da nova ordem.
Fracasso e perda, para determinada
esquerda, nunca foi atrativo. Nisso, ela se opôs à direita. Esta, por
sua vez, acusou a esquerda de ser “religiosa”, ou seja, de usar da
política social como que um segundo cristianismo, uma forma de proteger
os pobres, então tomados como “coitadinhos”. A esquerda retrucou dizendo
que o cristianismo estava era na direita, que queria que todos
passassem, efetivamente, pelo pecado e expulsão do paraíso, uma vez que
só o fracasso e a dor dariam condições de fazer o homem ser alguma coisa
digna para uma sociedade justa. Para a esquerda, ter o estado
fornecendo um apoio nunca foi um modo de gerar “coitadinhos”, pois o que
gera este tipo de personalidade, segundo a esquerda, é justamente a
vida em condições indignas que anos e anos de pobreza podem produzir. O
que gera o “coitadinho”, efetivamente, para a esquerda, é chegar aos
tribunais e, tendo razão, sempre perder.
Esse debate entre esquerda e direita não
está empatado. Por que as vitórias de um lado e outro não se dão em
simetria. Nenhuma sociedade ocidental cedeu à direita totalmente, mesmo
após a onda de mais de vinte anos de políticas autodenominadas
neoliberais (em uma segunda forma), caracterizadas pela tese da retirada
do estado do comando das políticas sociais. Assim, em termos práticos,
os Welfare States do mundo não foram destruídos. Mas, é certo, há muito
mais gente hoje que ontem acreditando que talvez não seja bom pagar
impostos como pagamos, porque esse dinheiro vai ser carreado para a
política social e esta, enfim, não irá necessariamente gerar uma
sociedade de pessoas melhores. A tese da direita é que gente que é
ajudada por política social cresce sem fibra moral e, enfim, terá pouco a
oferecer em qualquer tipo de organização social.
Desse modo, o resultado que temos hoje,
no Ocidente, é que em termos de estrutura da organização legislativa dos
países, o Welfare State não perdeu muito, mas, em termos de
mentalidade, estamos longe daquela ideia dos anos sessenta, de
generosidade de todos para com todos, quando vários dos que educam os
educadores começaram a insistir que nenhum de nós precisava do Calvário
para ser gente.
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*Filósofo. Escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/29/direita-e-esquerda-o-que-e-isso/
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