ELIANACARDOSO*
No julgamento do mensalão, acusadores e defensores
reconheceram os empréstimos bancários tomados pelo PT por intermediação
de agência de publicidade e os repasses em espécie a petistas e
associados. A acusação contou uma história bem articulada de desvio de
dinheiro público, corrupção de parlamentares, fraude de contratos e
compra de apoio parlamentar a um governo prejudicado pela falta de
maioria no Congresso.
A defesa, fraca, disse que José Dirceu se desligara do PT e nada
sabia. Mas quem se lembra da época do ocorrido também se lembra de José
Dirceu como loquaz porta-bandeira das diretrizes do governo e dos
interesses do PT. A defesa alegou ainda que José Genoino - um político
que se gabara da capacidade do governo de formar uma base aliada
mediante vantagens concedidas pelo Estado - não se envolvera em assuntos
financeiros.
Onde está a evidência que poderia contrariar a tese da acusação? Em
lugar nenhum. Os advogados abrigaram-se atrás de qualificativos e
alegaram que o mensalão não passou de "ilusionismo jurídico" e
"construção mental", seguindo a afirmação pós-moderna de que verdades e
fatos não existem. Isso mesmo. O relativismo ensina que os fatos
dependem de quem os interpreta: os homens atribuem à história bem
contada - que seduz o ouvinte ou leitor com sua retórica de persuasão - a
categoria de verdade. Troque o narrador e a verdade será outra.
Mas parece improvável que a defesa consiga convencer a opinião
pública da procedência dessa tese relativista sobre a justiça, tese que
encontra voz no livro de Janet Malcolm Anatomia de um Julgamento:
Ifigênia em Forest Hills. A autora sugere que julgamentos não passam de
competição entre duas narrativas rivais. A vitória não pertenceria aos
fatos, mas à narrativa que soa mais convincente a nossos ouvidos
viciados pelos romances do século 19.
Janet Malcolm conta a história da condenação de Mazoltuv Borukhova e
Mikhail Mallayev pelo assassinato de Daniel Malakov. Um divórcio amargo
condenara Daniel a visitas supervisionadas, porque sua mulher alegara
abuso sexual da filha, Michelle. Quando Daniel recuperou a guarda da
criança, foi assassinado, em plena luz do dia, por Mikhail a mando de
Mazoltuv Borukhova.
O desejo de vingança formou a base da narrativa da promotoria.
Michelle é a Ifigênia do título do livro de Malcolm. No mito grego,
Agamenon, o pai, sacrifica Ifigênia, a filha, para que os deuses lhe
concedam os ventos que levarão seus navios à guerra em Troia. Mais
tarde, Clitemnestra, a mãe, se vinga apunhalando o marido.
Usando a etnia da acusada para fazer o retrato mítico da assassina
vingativa, o promotor traçou o perfil de Borukhova, imigrante usbeque,
judia da seita de Bukhara, como integrante de um grupo estranho. E se
valeu da narração de testemunhas que descrevem os membros dessa seita
como tribais, capazes de violência e até mesmo de assassinato. A imagem
de Borukhova como o espírito de vingança materna serviu de cola para
emendar pedaços de informações, como a gravação quase inaudível e mal
traduzida de uma conversa entre os acusados, provas forenses que não
cumpriram normas de pesquisa e um depósito de US$ 40 mil na conta
bancária do assassino.
Relutante ou incapaz de aprender o valor do desempenho simpático,
Borukhova errou tanto no figurino - saia comprida, paletó preto e,
depois, branco - quanto na atitude. Em vez de encarar o júri, ela
manteve a cabeça erguida e o olhar fixo no interrogador diante dela. Não
seguindo o roteiro padrão, sua aparência inescrutável provocou ira e
desconfiança.
Janet Malcolm não está interessada em condenar ou exonerar Borukhova.
Sua briga é com as instituições e nossa capacidade de autoengano. Por
isso coleciona fatos desconcertantes para argumentar que Borukhova não
teve um julgamento justo. O sistema tê-la-ia condenado por causa de sua
personalidade desagradável e estranha, capaz de causar reação alérgica
na maioria das pessoas. O júri não teria avaliado corretamente a culpa
da acusada, que tinha inimigos poderosos - como o guardião da lei que
recomendou a transferência da custódia ao pai com base no seu desagrado
pessoal de Borukhova e como o juiz, que apressava decisões para não
atrasar as próprias férias.
O discurso de Janet Malcolm nada tem daquele que o juiz imparcial
profere. Ela se arroga direitos de romancista. Coloca toda a ênfase na
tendência humana de se deixar seduzir por narradores carismáticos. Expõe
o nosso impulso de autoengano sempre que insistimos em representações
coerentes, próprias das histórias sujeitas às convenções da ficção
realista.
A tese de Malcolm, embora fascinante, não convence o leitor que
reconhece o poder da narrativa, mas se sente capaz de separar a história
persuasiva da desalinhavada, porém verdadeira. Da mesma forma que
reconhece a diferença entre bons e maus advogados e acredita que a
incompetência para levantar a evidência relevante se soma a narrativas
fracas ou à venalidade dos juízes quando há condenação de inocentes ou
exoneração de culpados.
Nos EUA, todos sabem que não são os piores criminosos que recebem a
pena de morte, mas aqueles com os piores advogados. Estimam-se 100 mil
inocentes entre os 2 milhões de norte-americanos encarcerados. Os
culpados que andam soltos são ainda mais numerosos. O maior erro de um
acusado é tentar economizar em honorários advocatícios.
Esse erro os réus no julgamento do mensalão não cometeram, pois
pagaram fortunas a advogados famosos. Ainda assim parecem sujeitos à
derrota. Os 11 ministros do STF decidirão. Eles interpretarão fatos e
argumentos. Seus veredictos revelarão suas análises e muito mais. Pois,
para ouvidos atentos, as falas dos juízes exibirão não apenas o que eles
querem contar, mas também seus egos, vaidades e motivações.
------------------------------
* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM
FONTE: ESTADÃO ON LINE, 22/08/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário