Paulo Ghiraldelli Jr*
A
juventude é sempre prisioneira da falta de experiência. O garoto chega à
universidade, vindo de um ensino médio destruído, e então é solicitado a
construir narrativas. No entanto, não viveu o suficiente para que as
narrativas tenham frases impregnadas pelo que aconteceu com ele. Ou
então, até viveu, mas não domina os instrumentos da linguagem para que
as frases possam dar às vivências o caráter efetivo de vivências. Nessa
hora, é vítima das fórmulas e esquemas abstratos que, enfim, decora
rapidamente de modo a poder conversar com os professores, virar
“peixinho”, ganhar uma bolsa ou simplesmente “tirar a nota para passar”.
Fica revoltado com aquele professor que insiste em fazê-lo pensar, que o
empurra para refletir sobre suas vivências. Pois para quem não tem a
linguagem, pensar dói.
É difícil fazer um garoto assim entender
que frases do tipo “o capitalismo é injusto” não podem significar nada
para ele e, vindo da boca dele, não ter valor algum. Outro professor
disse que é tal frase que significa! Como ele está vazio, ele absorve
esse “saber” abstrato e, então, tendo êxito nas conversas e provas,
imagina que está com a chave do sucesso escolar nas mãos. Um garoto
assim fica revoltado com o filósofo. Quando ele aparece para mim, eu
quero que ele narre experiências vividas, e não as não vividas ou
impossíveis de serem vividas.
É impossível viver a realidade da frase “o capitalismo é injusto”. É
uma frase filosófica, quase que teórica. De teoria filosófica, é claro.
Não é uma frase empírica. Nem o mais pobre dos trabalhadores pode sentir
“a injustiça do capitalismo”. O que pode talvez sentir é o enfiar a mão
no bolso e não tirar nada mesmo tendo trabalhado o mês todo. Assim, a
frase “trabalhei o mês todo, ganhei e, enfim, o que ganhei não deu para
comprar o pão de hoje cedo” espelha uma experiência. É uma vivência. Ao
narrar isso o pensamento começa a funcionar. Mas quem começa pelo “o
capitalismo é injusto”, mesmo que tenha vivido a pobreza, não terá
narrado absolutamente nada de válido. Não começando pelo vivido, nunca
conseguirá dizer com propriedade a frase teórica de modo a fazer o
interlocutor compreender que há também vida na frase abstrata.
A frase “o capitalismo é injusto” é abstrata e filosófico-teórica e,
então, não é da experiência individual. Cada um de nós não vive no
âmbito da universalidade do campo filosófico teórico, mas no campo da
individualidade concreta dos relatos históricos. Por isso é a história e
não a filosofia a matéria pela qual se pode começar a filosofar. Mas se
a própria história, antes de ser história, já é teoria da história,
então fica ainda pior. Desse modo, também estudantes de história – até
de história! – se revoltam ao ter de conversar comigo, filósofo. Para
eles, também, pensar dói!
A revolta é maior ainda quando eu os forço a escrever e falar e
pensar. Eles querem fazer isso, mas sem esforço. Fogem da reflexão.
Pensar dói. Eles querem viver de fórmulas prontas, jargões, que
descansam a mente. Funcionam como aquele que vê o pai morto e, então,
para fugir da dor diz para si mesmo “ele estava velho, viveu a vida e,
enfim, todos morrem”. Todos morrem? Ora, vá dar os pêsames a alguém cujo
pai morreu e diga isso! Caso o filho seja inteligente, mas sem
paciência com a sua grosseria e burrice, você levará um tapa na cara. E
bem merecido.
Não estou dizendo que não podemos generalizar. Generalizar nós não só
podemos como devemos. Quem diz “não vale generalizar” é, em geral,
completamente ignorante ou quase um retardado mental. Tudo que temos é a
indução e a dedução, vamos do particular para o geral e do geral para o
particular a todo o momento. Além disso, uma das figuras de linguagem
que mais usamos é a sinédoque (o carioca é malandro, o são paulino é
bambi, etc.). Não é a respeito disso que falo. Refiro-me à situação de
vida que nos faz não conseguir pensar e escrever. Essa situação tem um
correspondente num drama filosófico medieval, o conflito entre
universais e particulares.
Não vivemos no âmbito do mundo das palavras universais. Janela é
universal. Não encontramos com janela e, sim, com esta janela que está
aqui no meu escritório neste momento ou com a janela da sala de aula em
que estarei amanhã etc. Minha vivência não é da janela, mas de cada
janela em particular que, aliás, são bem diferentes umas das outras. Não
posso ter vivência do que é universal, só do particular. No entanto,
sem pestanejar não posso dizer que o universal não existe – se ele não
existe então como podem existir seus exemplares, as janelas? Em parte,
esse drama da filosofia medieval é, mutatis mutandis, o drama
do jovem que não consegue pensar. Ele quer escrever sobre janelas, mas
como não tem experiência delas, e não pode ter, teria de começar a
escrever sobre a janela do seu quarto, que realmente representa algo
para ele. No entanto, não aprendeu a escrever sobre isso. Ele foi
sequestrado no ensino básico, levado para uma terra da ignorância, e ali
onde ele teria de ter vivido a experiência de relatar experiências ele
viveu um nada. Então, ele se matricula na universidade e capta um
discurso abstrato que fala da teoria das janelas, que fala da janela
universal. Ele começa a relatar o mundo da abstração e da
universalidade sem ter chegado a ele pelos caminhos normais, a passagem
da vivência à teorização, e eis que sua fala soa artificial ou então
maluca. Sabe falar da janela e, no entanto, tem uma dificuldade imensa
de reconhecer a janela da sala em que está como janela! Alguns percebem
isso. Percebem que esse tipo de coisa os torna esquisitos e tolos. Mas
muitos estudantes não percebem essa situação por que são premiados pelos
seus professores quando repetem a conversa em nível teórico, como
papagaios ou até mesmo como quem entendeu o básico da teoria das
janelas, mas nunca escreveu sobre o caso de ter de pular uma janela na
infância.
Como hoje em dia a sala de aula nos serve pouco, dado que, na maioria
das universidades, a pressão para não ensinar – vinda de colegas e de
alunos – é muito forte, os estudantes que querem aprender procuram na
internet os intelectuais que ganharam algum renome. Às vezes os
encontram. Muitos recorrem a mim, na internet, para ter um professor –
não raro o único que vão ter durante toda uma vida escolar. Os mais
corajosos querem ouvir de mim um diagnóstico que lhes dê condições de
avançar. Ora, sem a pressão da escola, eles e eu somos livres. Posso
dizer-lhes abertamente: você está sendo burro, pare com frases do tipo
“o capitalismo é injusto” e comece a ver as frases que fazem sentido na
sua carne, na sua mente como um todo, e não somente na sua memória ou
nos esquemas que você absorveu. Ou seja, eu digo: pense! Mas, pensar
dói.
Uns nem sabem mais o que é que eu quero dizer quando digo “pensem”.
Eles acreditam que “pensar” é falar o que têm na cabeça. Mas não é.
Pensar é refletir. Pensar é ter a linguagem para falar das experiências
que tem a ver antes com o sentido que com a verdade. Lembro a eles que
Sócrates, segundo o filósofo positivista Schlick buscava o significado,
não a verdade. A verdade tem a ver com a ciência, o significado tem a
ver com a filosofia. Então, digo para o jovem: pense, mas pense como
filósofo, ou seja, busque o sentido e o significado, veja se antes de
tudo a coisa que pensa “bate em você”, isto é, lhe causa o “sentimento”
de fazer sentido. Peço que escreva sobre o namoro, imaginando que então
terão um bom começo. Mas aí descubro que o namoro é vazio, que não há
planos, não há conversa, não há sonhos, não há esmero recíproco (a
relação erótica de Platão, no Fedro) e nem mesmo o sexo é bem feito. Não há namoro. Nem mesmo a vivência do namoro ele possui.
Isso se agrega à experiência ou, melhor, à falta de experiência que é
não terem podido escrever e usar da linguagem para que esta pudesse
desenvolver o pensamento. E pior, se são religiosos, adeptos dessas
novas religiões de hoje no Brasil, a própria linguagem é castrada,
porque muitas palavras são malignas, são “palavrões”, são pecados, e ao
ficarem sem palavras ficam impedidos de fazer o próprio cérebro
funcionar. Não tendo linguagem não há pensamento, não havendo pensamento
não há propriamente atividade mental digna. O cérebro torna-se um órgão
que perde para o cerebelo. Muitos ficam adultos assim. Terminam a
universidade assim. Serão os burros, os idiotizados, os imbecilizados.
Para estes, não haverá mais cura. Poderão viver bem até, uma vez que, no
Brasil, é proibido chamar o burro de burro e o imbecil de imbecil.
Oficialmente somos um país de gênios. No entanto, para uma boa parte
desses gênios, pensar dói.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJFonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/21/para-muitos-pensar-doi/
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