Documentário alerta para o incrível número de suicídios e
estupros de soldados dos dois sexos nas
Forças Armadas norte-americanas
Por Francisco Quinteiro Pires, na Carta Capital
Estupros e suicídios. Os adversários mais ameaçadores das Forças
Armadas norte-americanas são internos. Nos dois últimos anos, ao menos
21 mil soldados sofreram violência sexual. Atualmente, um militar da
ativa se mata a cada 24 horas. E um veterano, segundo o Department of
Veterans Affairs, tira a própria vida a cada 80 minutos. Do início da
Guerra do Afeganistão, em 2001, até 10 de junho deste ano, mais
combatentes se suicidaram (2.676) do que morreram em atividades bélicas
(1.950) no país asiático.
Apesar de os números alertarem para a gravidade da situação, as
Forças Armadas estão perdendo a batalha contra essas duas ameaças.
Segundo uma reportagem da revista Time, citada no plenário do
Congresso dos Estados Unidos, os militares “não conseguem vencer o seu
inimigo mais insidioso”. “Esse problema talvez seja o desafio mais
frustrante com o qual me deparei desde que fui nomeado secretário de
Defesa”, admitiu Leon Panetta, em entrevista recente. A mesma
dificuldade é vista no combate aos estupros de soldados, sendo do sexo
feminino a maioria das vítimas. O belicismo, o espírito de corpo, o
respeito cego à hierarquia e o medo de ameaça à promoção na carreira
inibem o pedido de ajuda. Mesmo aqueles que procuram auxílio são
ignorados pelos superiores.
“Instituições poderosas preferem acobertar crimes a admiti-los”, diz o documentarista Kirby Dick a CartaCapital.
“Podemos confirmar esse tipo de reação com o atual esforço da Igreja
Católica para esconder os casos de abuso sexual cometidos por clérigos.”
Dick é o diretor de The Invisible War (A Guerra Invisível,
em tradução livre), filme muito comentado durante o Human Rights Watch
Film Festival, realizado em Nova York há cerca de um mês, e ganhador do
prêmio de melhor documentário segundo a audiência no Sundance Film
Festival. O longa-metragem, cuja exibição no Brasil a HBO Latin America
ainda negocia, mas que estará disponível em DVD nos Estados Unidos a
partir de 23 de outubro, apresenta entrevistas com 12 militares mulheres
decididas a falar sobre a violência sexual contra elas.
O filme mostra que as combatentes em zonas de guerra correm um risco
maior de ser estupradas por um colega do que de morrer sob fogo inimigo.
A frequência desse tipo de violência entre os militares é o dobro na
comparação com a da sociedade civil. Mas apenas 8% dos casos são levados
a julgamento. Desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mais de 500
mil militares foram estuprados. “Instituição mais poderosa dos Estados
Unidos, as Forças Armadas transformaram em política não oficial a
negação das acusações, o descrédito das vítimas, a classificação dos
críticos como antipatrióticos e a ameaça implícita de cancelamento de
contratos com entidades privadas que sabem dos delitos.”
Existem duas fortes razões para que esse crime
sexual tenha sido ignorado por décadas, segundo Dick. “Quem está
servindo não tem permissão de falar com jornalistas sem o consentimento
dos superiores. De acordo com uma decisão tomada pela Suprema Corte em
1955, ninguém pode processar as Forças Armadas por crimes cometidos
enquanto estiver em serviço.” Para o documentarista, se as vítimas de
estupro pudessem ir à Justiça, muitos crimes seriam evitados ou, ao
menos, revelados, pois atualmente “a chance de o público saber é muito
pequena”.
Após a exibição de The Invisible War em Sundance, no início
deste ano, Leon Panetta anunciou a criação de uma unidade de
atendimento especial às vítimas de estupro em cada ramo das Forças
Armadas. O documentário segue a linha de outros trabalhos de Kirby,
cineasta sem receio de tomar partido quando ataca a hipocrisia e os
desmandos de poderosos e instituições. Em Outrage (2009),
indicado a um Emmy, ele tratou de políticos republicanos que são
homossexuais enrustidos, mas votam contra leis como a do casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Ao confrontar os abusos sexuais do clero
católico em Twist of Faith (2004), indicado ao Oscar de melhor
documentário, o diretor acompanhou os efeitos da decisão de Tony Comes
de tornar público um trauma pessoal. Comes decidiu fazer isso após
descobrir ser vizinho do padre que o estuprou 20 anos antes, quando era
adolescente.
Kirby teve a ideia de dirigir The Invisible War após ler The Private War of Women Soldiers (A Guerra Privada das Mulheres Militares),
uma reportagem de Helen Benedict publicada pelo website noticioso Salon
em 2007 e transformada em livro dois anos depois. Durante a produção do
filme, Kirby e a sua equipe descobriram em primeira mão o acobertamento
contínuo de numerosos casos de assédio e violência sexuais em Marine
Barracks, em Washington, D.C., posto mais antigo dos fuzileiros navais
norte-americanos onde fica o alto comando dessa força de elite.
O documentarista conta ter enfrentado vários obstáculos para produzir The Invisible War.
“Convencer vítimas de estupro a falar para a câmera a respeito da sua
experiência foi um desafio significativo.” Ele teve a ajuda de
psicólogos, advogados e jornalistas para localizar e entrevistar mais de
cem mulheres. Conversou também com especialistas que atuaram para a
Justiça Militar e comentaram “os procedimentos enviesados e ineficazes
de investigação e julgamento”.
O diretor delegou a tarefa de entrevistar as vítimas para Amy
Ziering, produtora do filme. “Decidimos que Amy conduziria as
entrevistas, porque as mulheres se sentem mais confortáveis para relatar
a violência sexual a outra mulher.” Segundo o documentarista, a
reconstituição do trauma em palavras e diante de terceiros era uma forma
de enfrentar o medo de represália pelo alto-comando, contrário à
revelação dos crimes. “Relatar o estupro para quem tinha consciência da
gravidade da situação foi reconfortante.” Kirby conta que o marido de
uma das vítimas disse não compreender o estado emocional da companheira
até assistir a The Invisible War. “Ao perceber que a reação da sua esposa era similar à das outras vítimas, ele foi capaz de assimilar a experiência dela.”
A maioria das mulheres estupradas por colegas culpa a si mesma, pois
acredita ser, de alguma maneira, responsável pelos ataques sexuais.
Mesmo quando prejudicados, os militares são relutantes em se rebelar
contra uma instituição que aprenderam a admirar, diz Dick. Em muitos
casos, a carreira militar fora antes seguida por avós e pais. Além de
sofrerem de estresse pós-traumático e agorafobia, as entrevistadas de The Invisible War confessaram ter considerado ou tentado o suicídio em várias ocasiões.
De acordo com estatísticas do Departamento de
Defesa, 95% dos militares suicidas são homens, 83% tiraram a própria
vida em território norte-americano e 47% têm menos de 25 anos. Ao menos
um terço dos que se matam nunca lutou em uma guerra. Um dos casos mais
recentes envolve o julgamento e a absolvição do sargento Adam H. Holcomb
pela morte do soldado Danny Chen. Em 2011, enquanto servia no
Afeganistão, Chen disparou um tipo na cabeça após sofrer maus-tratos de
Holcomb e reclamar de perseguição dos seus companheiros.
Quando tratou da onda de suicídios nas Forças Armadas, a revista Time
contou em detalhes as histórias de dois militares. Michael McCaddon,
médico, sofria de depressão e se enforcou em uma sala do hospital onde
trabalhava, no Havaí. Após realizar 70 missões no Iraque em nove meses,
Ian Morrison, piloto de helicóptero, voltou aos Estados Unidos. Ele
teve dificuldade para se adaptar à rotina. Matou-se com um tiro no
pescoço. Os dois vinham desenvolvendo carreiras promissoras antes de se
suicidarem, por coincidência, no mesmo dia: 21 de março deste ano.
Incentivados por suas esposas, tanto McCaddon quanto Morrison
procuraram a ajuda dos superiores, apesar do medo de essa atitude
comprometer possíveis promoções. Seus pedidos foram desprezados. O
alto-comando atribuiu os distúrbios psicológicos dos dois militares a
problemas familiares. Ambos estavam satisfeitos com as suas vidas
profissionais, segundo a interpretação oficial. Essa negligência se
reflete em cifrões. Por ano, o Pentágono destina apenas 2,1 bilhões de
dólares (4% das suas verbas médicas) ao tratamento de doenças mentais. A
situação pode piorar com o corte de 500 bilhões de dólares no orçamento
da Defesa previsto para janeiro de 2013.
Os suicídios de McCaddon e Morrison desafiam as explicações fáceis.
Ambos mostravam sentir vergonha de si mesmos, relatam as esposas. Diziam
não estar à altura da sua vocação. Os dois padeceram às avessas da
loucura de Travis Bickle. Protagonista de Taxi Driver (1976),
filme de Martin Scorsese, Bickle (Robert De Niro) é um fuzileiro naval e
veterano da Guerra do Vietnã. Após voltar do campo de batalha com
honrarias, ele passa a viver em Nova York, onde trabalha à noite como
taxista, pois não consegue dormir. Cada vez mais isolado, vê a sua saúde
mental se deteriorar na cidade que considera um esgoto a céu aberto.
Ele conhece Iris (Jodie Foster), prostituta de 12 anos, e decide matar
os cafetões que exploram a adolescente. Promove uma carnificina e é
tratado como herói pelos jornais. Bickle atribuía aos outros a origem
dos seus problemas. Ele se considerava um anjo vingador. McCaddon,
Morrison e milhares de outros militares norte-americanos pensavam o
contrário e se puniram por isso.
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Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/08/22/inimigo-interior/
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