o comentário de Simone Weil à oração do Pai-Nosso
Talvez, para introduzir o comentário que Simone Weil faz ao Pater e
à possibilidade de o rezar, valha a pena reler um testemunho hodierno
que tematiza precisamente o contrário, o interdito radical face à
experiência orante. Recorro às páginas iniciais de um pequeno texto
autobiográfico de Erri de Luca, intulado "Caroço de Azeitona". Diz o seu
autor: «Como leitor assíduo das Sagradas Escrituras percorro o
hebraico antigo das primeiras histórias, dos profetas, e dos salmos
recolhidos no Antigo Testamento. Este uso quotidiano não fez de mim um
crente. A experiência de ser um marginal provém, para mim, de dois
obstáculos. O primeiro é a oração, este poder e possibilidade do crente
se exprimir. Tratar a Deus por "Tu", com variações que vão da
imprecação à súplica, arbítrio maravilhoso da criatura que regressa à
origem e a interroga, chama, agita. Quem exclamou pela primeira vez a
primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um
chamamento com uma resposta. [...] Não o sei fazer, não me sei dirigir a
ele. [...] Falo de Deus na terceira pessoa, leio sobre ele, ouço falar
dele e sinto outros viverem dele. [...] Com tudo isto permaneço alguém
que fala de Deus na terceira pessoa. O meu pé tropeça todos os dias
nesta pedra da oração, não a pode ultrapassar, porque a oração é o
umbral. O outro obstáculo é o perdão. Não sei perdoar e não posso
admitir ser perdoado. [...] Na minha vida existe o limite do
imperdoável, do jamais reparável. Não posso admitir ser perdoado, não
sei perdoar aquilo que cometi. Eis as minhas pedras de tropeço pelas
quais permaneço fora da comunidade dos crentes».
A arte de desejar Deus
Na base da oração está o binómio
familiaridade/distância aplicado à relação do homem com Deus. Há uma
familiaridade que assinala a crença como convicção de que o destino
humano não é indiferente a Deus. A experiência religiosa que, por
exemplo, a Bíblia descreve assenta na epifania de Deus na história,
manifestação complacente e comprometida com as vicissitudes da condição
humana. Deus é o ouvido do homem, o seu refúgio, como o Salmo 18
(2-4.7) literalmente enuncia:
«Eu te amo, ó Senhor, minha força.
O Senhor é a minha rocha, fortaleza e proteção;
o meu Deus é o abrigo em que me refugio,
o meu escudo, o meu baluarte de defesa.
Invoquei o Senhor, que é digno de louvor,
e fui salvo
Na minha angústia invoquei o Senhor
e gritei pelo meu Deus.
Do seu santuário, Ele ouviu a minha voz;
o meu clamor chegou aos seus ouvidos».
O Senhor é a minha rocha, fortaleza e proteção;
o meu Deus é o abrigo em que me refugio,
o meu escudo, o meu baluarte de defesa.
Invoquei o Senhor, que é digno de louvor,
e fui salvo
Na minha angústia invoquei o Senhor
e gritei pelo meu Deus.
Do seu santuário, Ele ouviu a minha voz;
o meu clamor chegou aos seus ouvidos».
O homem é capaz de desejar Deus, é capaz de
Deus, porque Deus inclina-se benevolamente para ele. O impressionante
conjunto de metáforas que o texto bíblico constrói é uma dicção
plástica dessa confiança fundamental que permite que a oração seja um
«face a face do homem e de Deus»: Deus é pai e mãe, pastor e rei
soberano, Deus é forte como o turbilhão das águas ou misterioso como o
sopro ligeiro da brisa, Deus habita o recôndito inacessível do templo
ou vem abraçar-se a nós na fronteira noturna, como o soube o patriarca
Jacob, numa luta que mais se parece a uma dança...
Mas a familiaridade não elide o sentimento da
distância, porque Deus é infinitamente Outro. A oração é um sussurro,
um segredo ciciado, uma sugestão da maior intimidade apenas análoga à
arte do amor, como nos lembra precisamente no Cântico dos Cânticos
(«Arrasta-me atrás de ti. Corramos! Faça-me entrar o rei em seus
aposentos», Ct 1,4). Mas também é uma exposição, um grito lançado à
distância incalculável dos céus, como o testemunham Job ou o grande
grito de Jesus na Cruz: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»
(Mt 27,46).
O que é o Pai-Nosso?
O Novo Testamento fornece duas versões da oração
que Jesus ensina aos discípulos: a de Mateus (Mt 6,9-15) e a de Lucas
(Lc 11,1-4). Entre elas há pequenas diferenças, nomeadamente quanto à
extensão, pois Lucas é mais conciso. Olhemos para o texto, em tradução:
Pai nosso (Páter emôn), que estás no Céu,
seja santificado o teu nome,
venha o teu Reino;
faça-se a tua vontade,
como no Céu, assim na terra.
O nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos hoje;
perdoa as nossas dívidas (tá ofeilémata),
como nós perdoámos aos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do Mal. [versão de Mateus]
seja santificado o teu nome,
venha o teu Reino;
faça-se a tua vontade,
como no Céu, assim na terra.
O nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos hoje;
perdoa as nossas dívidas (tá ofeilémata),
como nós perdoámos aos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do Mal. [versão de Mateus]
Pai (Páter),
seja santificado o teu nome;
venha o teu Reino;
o nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos em cada dia;
perdoa os nossos pecados (tàs amartías),
pois também nós perdoamos
a cada um dos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação. [versão de Lucas]
seja santificado o teu nome;
venha o teu Reino;
o nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos em cada dia;
perdoa os nossos pecados (tàs amartías),
pois também nós perdoamos
a cada um dos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação. [versão de Lucas]
Tudo na oração do Pai-Nosso, quer quanto às
circunstâncias da sua proferição, quer no que toca ao apuro retórico da
composição, mostra que Jesus pretende aqui apresentar um modelo. Na
tradição judaica onde ele historicamente se move, há correntes orantes
diversas e um abundante reportório de fórmulas. Mas Jesus inova: não
apenas explica como rezar, mas transmite um ensinamento seu acerca da
oração, começando com um eloquente mandato: «rezai assim» (Mt 6,9).
Constrói, deste modo nítido, um paradigma.
Ora, cartografando a prece de Jesus, percebemos
que tudo se concentra em torno ao sintagma vocativo que abre a oração:
«Pai Nosso» (versão de Mateus) ou «Pai» simplesmente (versão de Lucas).
É verdade que são referidos depois o Nome, a Vontade e o Reino do Pai,
mas é sempre em torno à descoberta do Pai que somos colocados. Mais do
que rogar por esta ou por aquela necessidade ou interceder pela
colmatação de qualquer carência o que se pede ao Pai é que seja pai. O
destinatário da oração, Aquele a quem nos dirigimos, emerge como objeto
da própria súplica.
Outro aspeto significativo é que se dispusermos
retoricamente esta prece, se atendermos ao jogo do seu alinhamento
frásico, detetamos o seguinte: a primeira palavra é "Pai" e a última é
"Mal". O desenho retórico aparece por isso investido de valor semântico
quando nos revela que o mal surge no extremo inverso ao pai, que o mal
é o antipai. O risco do confronto com o mal é uma possibilidade
verificável em todas as existências, mas a oração que Jesus transmite
pede iluminação para não nos enganarmos no Pai, isto é, para sabermos
escolhê-lo a cada momento e não as contrafações que tentam ocultar ou
substituir a sua presença estruturante.
Uma oração que relata o drama da paternidade e
da filiação coloca-se no âmago da identidade do próprio sujeito. Não é
apenas um dispositivo verbal, mas uma expressão de si, uma coreografia
relacional do íntimo, uma consciência do ser que se constrói. Oiçamos
Emanuel Levinas: «O filho não é apenas a minha obra, como um poema ou um
objeto. Também não é minha propriedade. Nem as categorias do poder,
nem as do saber descrevem a minha relação com o filho. A fecundidade do
eu não é nem causa, nem dominação. Não tenho o meu filho, sou o meu
filho. A paternidade é uma relação com um estranho que, sendo embora
outrem é eu; uma relação do eu com um si, que no entanto não é eu.
[...] O filho não é eu; e no entanto, eu sou o meu filho».
E, no entanto, eu sou o meu Pai, diz-nos
igualmente a principal das orações cristãs. Ela, de facto, não é um
argumentário, mas a expressão de uma relação confiante. Essa é a
originalidade de Jesus. O apelo direto ao Pai é invulgar na tradição
judaica. E ele torna-se ainda mais significativo quando, na locução de
uma prece tão sóbria como é o Pai-Nosso, Jesus escolhe voluntariamente
reconduzir o coração orante à sua essência. Esta concentração, como
escreve François Genuyt, culmina «numa demanda que não é apenas dirigida
ao Pai, mas é demanda de Pai».
Uma página da autobiografia espiritual
A descoberta que Simone Weil faz do Pai-Nosso
ocupa uma das páginas mais intensas da sua autobiografia espiritual.
Tudo começa por um desejo, manifestado ao seu conselheiro espiritual, o
Padre Perrin. Ao longo do ano de 1941, ela declara a necessidade de
voltar a uma atividade dos verãos da sua adolescência: contactar
diretamente com a terra, colaborando no trabalho de produção dos
alimentos. Não é um projeto fácil de explicar este de se tornar uma
rapariga do campo, quando os amigos mais próximos fazem coro para que
ela se concentre nos seus domínios de saber: a filosofia, a poesia, a
escrita e a palavra. Nesses meses ela multiplica-se em cartas e em
razões, para justificar que a purificação do esforço agrícola lhe traz
instantes de alegria profunda, uma seiva que ela não encontra em mais
lado nenhum. É então por sugestão do Padre Perrin que ela contacta
Gustave Thibon, que tanta importância viria a ter na difusão do
pensamento da jovem filósofa. Thibon era, já naquela altura, um
filósofo camponês que chegava às academias, mas a partir de um
improvável baluarte: uma quinta agrícola em saint-Marcel-d'Ardèche.
Simone aportará ali nos começos de agosto de 1941 onde passa dois
meses. Há ainda um primeiro incidente a resolver: ela rejeita ficar na
casa grande da quinta e vai residir num precário barracão solitário e
sem grandes condições, deixando contrariados os seus anfitriões. Mas
Gustave Thibon conta que num desses primeiros dias, quando não sabia
bem o que pensar daquela rapariga, viu Simone, pendurada no tronco de
uma árvore, a contemplar em silêncio o vale: «eu vi - há de testemunhar
mais tarde - o seu olhar emergir pouco a pouco da visão; a intensidade
e a pureza deste olhar eram tais que sentia que ela contemplava abismos
interiores ao mesmo tempo que o esplêndido horizonte se abria a seus
pés. A beleza da sua alma correspondia a terna majestade da paisagem».
Foi o selar de uma grande amizade. Nessa estação Simone encontra-se com
o Pai-Nosso, talvez por um inusitado caminho. Ela conta:
«O verão passado, estudando grego com T....
(Thibon), passei-lhe palavra a palavra o Pater em Grego. Tínhamo-nos
prometido aprendê-lo de cor. Creio que ele não o fez. Eu tão pouco, até
essa altura. Mas, algumas semanas mais tarde, folheando o Evangelho,
disse-me a mim mesma que, uma vez que mo tinha prometido e que assim
estava bem, devia fazê-lo. Fi-lo. A doçura infinita deste texto grego
tomou-me então de tal forma que durante alguns dias não consegui
impedir-me de o recitar continuamente. Uma semana depois, comecei a
vindima. Recitava o Pater em grego todos os dias antes do trabalho, e
repeti-o não poucas vezes na vinha. Desde então, impus-me como única
prática recitá-lo uma vez, cada manhã, com uma atenção absoluta. Se
durante a recitação a minha atenção se desvia ou deixa adormecer, mesmo
que de modo infinitesimal, recomeço até que tenha obtido, por uma vez,
uma atenção absolutamente pura. Acontece-me então, por vezes,
recomeçar, uma vez mais, por puro prazer, mas só o faço se o desejo me
instiga.
A virtude desta prática é extraordinária e
surpreende-me toda e cada uma das vezes, porque apesar de a
experimentar todos os dias, ela ultrapassa sempre, de cada vez, o que
era a minha expectativa. Por vezes, logo as primeiras palavras arrancam
o meu pensamento ao meu corpo e transportam-no a um lugar fora do
espaço onde não há nem perspetiva nem ponto de vista. O espaço abre-se.
A infinidade do espaço normal de perceção é substituída por uma
infinidade elevada à segunda ou, por vezes, à terceira potência. Ao
mesmo tempo, esta infinidade da infinidade preenche-se, de um extremo
ao outro, de silêncio, um silêncio que não é uma ausência de som, que é
objeto de uma sensação positiva, mais positiva que a de um som. Os
ruídos, se os há, não me chegam senão depois de atravessarem este
silêncio. Por vezes também, durante esta recitação ou noutros momentos,
Cristo está presente em pessoa, mas a sua presença é infinitamente
mais real, mais lancinante, mais clara e mais plena de amor do que a
daquela primeira vez em que me tomou».
Para uma exegese da alma
O Comentário ao Pater tornou-se, por razões
óbvias, um género muito frequentado pela tradição cristã, do oriente e
do ocidente, da antiguidade patrística até aos autores modernos. M.-E.
Boismard mostra bem como praticamente a propósito de cada palavra dessa
oração saíram a terreiro importantes teólogos numa discussão que se
prolongava desde as precisões filológicas aos vários e escondidos
sentidos espirituais. O primeiro a redigir um comentário exaustivo foi
Tertuliano, entre 198 e 200, numa obra intitulada "De Oratione", e
destinada aos catecúmenos.
Há afinidades flagrantes entre o texto de Simone
e o de Tertuliano. Afinidades no método de abordagem verso a verso;
afinidades na forma condensada e lapidar; afinidades nisso que o
dramaturgo contemporâneo Valère Novarina chama «la rude tendresse de
Tertullien».
Para Simone o Pater «está para a oração como
Cristo para a humanidade» e «é impossível pronunciá-la uma vez que seja
e trazendo a cada palavra a plenitude da atenção sem que uma mudança
talvez infinitesimal, mas real, se opere na alma». Este enunciado, que
remata o seu exercício exegético, elucida bem o alcance da pesquisa que
propõe. A Simone Weil interessa sondar a eficácia da palavra orante na
alma, isto é, a sua aguda performatividade espiritual. Não lhe importa
o comentário histórico crítico, mas a vertigem, o clarão, o fulgor que
o verbo desperta. Nesse sentido, a sua pesquisa guarda ao mesmo tempo
uma dimensão especular (na oração observamos a paisagem interior da
alma) e uma abertura ao mistério, não apenas como pressuposto
filosófico, mas como atualidade, como drama. Ela pode descrever com
grande simplicidade a mecânica da própria oração, pois está consciente
que a sua arquitetura continuará secreta e viva:
«Os seis pedidos correspondem-se dois a dois. O
pão transcendente é a mesma coisa que o nome divino. É este que opera o
contacto do homem com Deus. O reino de Deus é a mesma coisa que a sua
proteção estendida sobre nós contra o mal; proteger é uma função
própria do rei. O perdão das dívidas aos nossos devedores é a mesma
coisa que a aceitação total da vontade de Deus. A diferença é que nos
três primeiros pedidos a atenção se volta apenas para Deus. Nos três
últimos, fazemos voltar a atenção sobre nós próprios a fim de nos
obrigarmos a fazer desses pedidos um ato real e não imaginário. Na
primeira metade da oração, começa-se pela aceitação. Depois, permite-se
um desejo. Depois, corrige-se este voltando à aceitação. Na segunda
metade, a ordem muda; acaba-se pela expressão do desejo. É que o
desejo tornou-se negativo; ele exprime-se como um receio; por
conseguinte, corresponde ao mais alto grau de humildade, o que convém
para terminar»1
A prece tem uma natureza transitiva, faz-se,
apaga-se, refaz-se. Cada termo, isoladamente tomado, é uma etapa
provisória, sempre prometida a uma seguinte. Mas há um momento em que,
mais do que as palavras, o que conta é o estar ali em relação. Recomenda
o místico Eckhart, mestre amado de Simone Weil: «É preciso que haja
tranquilidade e silêncio ali onde essa presença deve ser percebida. Não
podemos chegar a ela de maneira melhor do que através da tranquilidade
e do silêncio; ali a compreendemos de maneira correta: na ignorância!
Quando não sabemos mais nada, ela deixa-se ver revela-se. [...] É
partindo do conhecimento que devemos chegar ao não conhecimento! Pois
essa é uma forma superior de conhecimento».
Capa do livro que contém o texto
Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé.
---------------- José Tolentino Mendonça (Teólogo. escritor. poeta).
In Simone Weil - Marginalidade e alternativa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, ISBN 978-972-8531-85-0
20.05.11
Fonte: http://www.snpcultura.org 21/08/2012
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