terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma forma particular de sadismo

Ignácio Ramonet

Ramonet: insistência dos dirigentes europeus no sofrimento social inspira-se em Schumpeter — mas assemelha-se curiosamente às ideias do Marquês de Sade

Sadismo? Sim, sadismo. Como chamar de outra forma a complacência com aquilo que humilha as pessoas e as faz sofrer? Durante estes anos de crise, temos assistido — na Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e outros países da União Europeia (UE) — à impediosa aplicação do ritual de punição “austeritária” exigido pela Alemanha, o que tem provocado um crescimento exponencial dos flagelos sociais (desemprego, pobreza, mendicância, suicídios).
Apesar disso, Angela Merkel e seus aliados continuam a afirmar que sofrer é bom e que, ao invés de suplício, o ato deveria ser considerado um instante de prazer… Segundo eles, cada nova expiação nos purificará, nos regenerará e nos aproximará do fim da tormenta. Essa filosofia da dor não se inspira no Marquês de Sade, mas sim nas teorias de Joseph Schumpeter, um dos pais do neoliberalismo, segundo o qual todo sofrimento social responde a um necessário objetivo econômico; e será errado, em consequência, amenizar o suplício, mesmo que ligeiramente.
Eis que Angela Merkel entra em cena como Wanda, a dominadora, encorajada por um coro de fanáticas instituições financeiras (Bundesbank, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional…) e por todos os eurocratas sectários habituais (José Luís Barroso, Von Rompuy, Olli Rehn, Joaquin Almunia…). Todos apostam na existência de um masoquismo popular, que empurraria os cidadãos não apenas à passividade, mas a clamar por mais punições e mortificações — ad maiorem Europa gloriam [Para maior glória da Europa, trocadilho com ad maiorem Dei gloriam, lema dos jesuítas (Nota da Tradução]. Sonham realmente em administrar os povos por meio daquilo que a polícia chama de “golpe do boa-noite cinderela” —  isto é, fazer uso de substâncias capazes de eliminar total ou parcialmente a consciência das vítimas, deixá-las sem forças para, enfim, torná-las marionetes nas mãos de seus agressores. Mas devem tomar cuidado, porque as massas começam a rugir.
Na Espanha, por exemplo, onde o governo conservador aplica políticas selvagens de austeridade ao limite do sadismo [1], as manifestações de descontentamento social se multiplicam. Neste momento, o país se encontra (com a Grécia) no coração da crise financeira mundial. O presidente do governo, Mariano Rajoy, e sua equipe econômica têm dado, ao longo dos últimos meses, a impressão de avançar sem bússula. Dirigem a crise bancária com uma evidente falta de jeito, notadamente por deixar ocorrer a falência do Bankia e por praticar o negacionismo mais limítrofe, a propósito do plano de resgate europeu dos bancos espanhóis, que o ministro da economia local, Luis de Guindos, apresenta como a concessão de uma simples linha de crédito, que não afeta em nada o déficit público [2].
De fato houve, depois, a Cúpula Europeia de 28 e 29 de Junho — uma pressão conjugada da França, Itália e Espanha a fim de aceitar que o novo Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla em inglês) possa emprestar diretamente aos bancos europeus em dificuldade (notadamente os espanhóis), sem que essa ajuda onere a dívida soberana dos Estados. Em contrapartida, contudo, os Estados deverão aplicar políticas severas de ajuste e austeridade exigidos pela UE, e ceder uma parte de sua soberania em matéria orçamentária e fiscal.
Berlim quer se beneficiar do choque causado pela crise, e de sua posição dominante, para alcançar um velho objetivo: integração política da Europa de acordo com as condições alemãs.  ”Nosso projeto hoje — declarou Merkel num discurso no parlamento alemão, o Bundstag [3] — é atingir o que não foi feito (quando o euro foi criado) e acabar com o ciclo vicioso da dívida infinita e da não-aplicação das regras. Eu sei que isso é duro, doloroso. É uma tarefa hercúlea, porém indispensável”.
Se o chamado “salto federal” ocorrer, e se a Europa avançar rumo a uma maior união política, isso significará, para cada Estado-membro da UE, renunciar a novos elementos de sua soberania nacional. Uma instância central poderia intervir diretamente para ajustar o orçamento público e fixar os tributos de cada Estado, em nome dos compromissos europeus. Quais países estão dispostos a abandonar sua soberania nacional? Porque, se ceder certos aspectos da soberania é inevitável,  em um processo de integração como a União Europeia, é necessário dizer também que não se deve confundir federalismo com neocolonialismo… [4]
Nos países da UE atualmente sujeitos aos planos de resgates, essas perdas de soberania já são uma realidade. Sobre a Espanha, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, também disse que a “troika” (BCE, Comissão Europeia e FMI) irá controlar a reestruturação do sistema bancário[5]. Será que isso mudará depois da decisão adotada na Cúpula Europeia de 28 e 29 de Junho últimos?
Isso é provável porque, como têm apontado os economistas Niall Ferguson e Nouriel Roubini: “A estratégia de recapitalizar os bancos, forçando os Estados a tomar emprestado dos mercados nacionais de bônus — ou do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSF) — foi desastrosa para a Irlanda e Grécia, pois isso causou uma explosão da dívida pública e tornou os Estados ainda mais insolventes. E, ao mesmo tempo, os bancos tornaram-se eles mesmos um risco incontrolável, na medida em que passaram a deter uma parcela ainda maior da dívida pública”[6].
Se isso não funcionou, por que persistir com essas políticas “de austeridade” por tantos anos? A inquietação das sociedades tem conseguido retardar o sadismo econômico encarnado pela Alemanha. Mas por quanto tempo?

Do site espanhol:
Citações do artigo.
(1) Sólo perdió, por ínfimo márgen, el referéndum del 2 de diciembre de 2007 sobre un “proyecto de reforma constitucional”.
(2) Además de Hugo Chávez,  otros seis candidatos se presentan a las eleciones del 7 de octubre: Henrique Capriles Radonski, por  Mesa de la Unidad (MUD), Orlando Chirinos, por el Partido Socialismo y Libertad (PSL), Yoel Acosta Chirinos por el partido Vanguardia Bicentenaria Republicana (VBR), Luis Reyes Castillo por la “Organización Renovadora Auténtica” (ORA), María Bolívar por el Partido Democrático Unidos por la Paz y la Libertad (Pdupl) y Reina Sequera por el partido Poder Popular (PP).
(3) Léase Gilberto Maringoni, “En Venezuela, Chávez sigue favorito”, Le Monde diplomatique en español, mayo de 2012. Léase también: Romain Mingus, “Henrique Capriles, candidat de la droite décomplexée du Venezuela”, Mémoire des luttes, 28 de febrero de 2012. http://www.medelu.org/Henrique-Capriles-candidat-de-la
(4) Fue cofundador de su rama venezolana.
(5) Lula le envió, el pasado 6 de julio, a Chávez, un mensaje público en el que le aportó pleno apoyo en su campaña electoral, afirmando: “Tu victoria será nuestra victoria”.
(6) A mediados de julio pasado, las principales encuestas de opinión daban un ventaja a Chávez de entre 15 a 20 puntos sobre el candidato de la derecha Henrique Capriles.
(7) Propuesta del candidato de la patria Comandante Hugo Chávez para la gestión bolivariana socialista 2013-2019, Comando Campaña Carabobo, Caracas, junio de 2012.
-------------------------------------------
* Ignacio Ramonet é presidente da Associação Memória das Lutas (Medelu) e editor do Le Monde Diplomatique, edição espanhola.
Tradução: Hugo Albuquerque
Fonte:  http://www.outraspalavras.net/2012/08/20/uma-forma-particular-de-sadismo/

Nenhum comentário:

Postar um comentário