A.P . Quartim de Moraes*
Em artigo anterior (19/6) propusemos a proliferação de
editoras sem fins lucrativos como uma das medidas capazes de atenuar as
distorções da mercantilização do livro imposta pelo predomínio da razão
de mercado na produção editorial brasileira, especialmente no que diz
respeito à crescente redução de espaço para obras de ficção de autores
nacionais. Na 22.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, promovida
pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e encerrada no último dia 19,
tive a honrosa e a gratificante responsabilidade de fazer a curadoria de
um novo espaço da programação alternativa, o Livros & Cia.,
dedicado à discussão de temas de interesse dos profissionais de todos os
elos da cadeia de produção do livro. Na mesa que marcou o encerramento
da programação, com o tema "A literatura brasileira pede passagem",
abriu-se um debate amplo e fecundo também sobre a questão do cumprimento
da missão civilizadora do livro, em contraponto à enorme variedade de
assuntos até então tratados nesse espaço, todos eles relacionados
"apenas" à gestão do negócio do livro.
Depois de ouvir de tudo, inclusive a assustadora afirmação de que "a
vida útil do livro está cada vez mais curta", proferida por
representante de uma das maiores editoras brasileiras, ficou evidente
que a solução, de resto, óbvia, para os problemas que o livro enfrenta
no cumprimento de sua missão civilizadora passa realmente por pôr o
assunto em pauta nos foros adequados. A ameaça ao advento de novas obras
clássicas e permanentes, implícita no fato de que a vida útil do livro
está "cada vez mais curta", é rigorosamente verdadeira quando
considerada do ponto de vista míope e ganancioso do tipo de gestão
predominante no negócio editorial. Mas como este não é, obviamente, o
único ângulo pelo qual a questão pode ser levada em conta, vale a pena
perseverar na discussão, pelo menos para quem ainda acredita que a
literatura brasileira tem um papel importante a cumprir na formação
cultural de nossa gente.
A grande dificuldade é que parece existir, em todos os círculos que
se poderia imaginar interessados nessa discussão, um certo pudor, se não
desinteresse, em pô-la em pauta. De qualquer modo, como sugestão à
reflexão, proponho a hipótese de que o atual status de nosso mercado
editorial - de modo particular no segmento trade, aquele que produz
títulos para comercialização principalmente em livrarias - é sustentado
por quatro pilares.
O primeiro é exatamente a ação do big business, representado pela
conjugação de interesses das grandes casas publicadoras com os das
grandes cadeias do varejo. Aí não há muito a fazer. É assim que a banda
toca mundo afora. Livro também é negócio e os negociantes têm o direito
de agir como se livro e lata de salsicha fossem, como produto, a
mesmíssima coisa. Alguns deles, talvez por desencargo de consciência,
ainda abrem seus catálogos e estantes a escritores brasileiros de
ficção, mas para edições limitadas a tiragens mínimas e sem nenhum
investimento importante em divulgação. Quando se trata de ficção, o
grande negócio editorial reserva-se o direito de investir pesado quase
que exclusivamente em títulos com histórico de sucesso lá fora, que aqui
chegam precedidos pelos ecos desse sucesso.
É a lógica do mercado, em que o consumo de massa - coisa que ainda
estamos longe de ter por aqui - implica necessariamente conteúdos mais
acessíveis ao leitor comum, menos exigente ou preparado
intelectualmente. A diferença é que culturas mais sólidas e enraizadas,
como as do Primeiro Mundo, são naturalmente mais imunes às apelações
editoriais que, entre nós, acabam concorrendo predatoriamente com a boa e
necessária literatura brasileira.
O segundo pilar é a mídia, que, quando se trata de livro, se limita -
competentemente, justiça seja feita - às questões estritamente
literárias, de preferência as mais sofisticadas, passando ao largo da
discussão, quando não ignorando olimpicamente o fato de enorme
relevância cultural de que o nível dos conteúdos publicados está cada
vez mais sofrível e, principalmente, de que a dispendiosa loteria do
best-seller está sitiando a literatura brasileira no reduto das pequenas
e médias editoras, ou das casas publicadoras públicas ou acadêmicas,
que atuam quase que marginalmente no mercado.
O terceiro pilar é a falta de políticas públicas destinadas a
corrigir as distorções do mercado editorial, como a concentração, que
favorece os interesses econômico-financeiros em detrimento dos
culturais. Se é o pequeno e médio negócio editorial que ainda se
preocupa com os conteúdos relevantes, embora frequentemente
problemáticos do ponto de vista comercial, por que não se desenvolve uma
agressiva política de apoio a esse pequeno e médio negócio? Entidades
representativas desses segmentos dispõem de sugestões para políticas
públicas inovadoras e reguladoras das distorções do mercado, como
programas de financiamento e incentivos fiscais mais generosos e
eficientes do que aqueles que já são compartilhados com as grandes
empresas do setor. O brasileiro já lê pouco. Não faz sentido permitir
que leia cada vez pior.
Finalmente, uma questão delicada, com enorme potencial de ferir
melindres: o quarto pilar a sustentar o atual status do mercado
editorial brasileiro é o comportamento dos próprios escritores
brasileiros. Especialmente daqueles que desfrutam de reconhecimento e
prestígio e que, exatamente por isso, teriam condições de se fazer
ouvir. Mas a maioria prefere se instalar na zona de conforto que
conquistou e se conformar até mesmo com o fato de que a venda de suas
obras está quase sempre muito aquém de seu potencial mínimo, pelo
simples fato de que as editoras se recusam a investir nelas em tiragem e
divulgação. Lista de mais vendidos, portanto, nem pensar!
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* JORNALISTA E EDITOR
Fonte: Estadão on line, 23/08/2012
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