Carla Rodrigues*
"Há um século a filosofia está morrendo. No entanto, ela não consegue
morrer porque sua tarefa não foi cumprida." O diagnóstico foi feito
pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk nos anos 1980, quando a filosofia
parecia ter perdido a importância dos anos 1960 e a rebeldia dos anos
1970. Nascido em 1947, Sloterdijk não integrou a geração glamourosa nem a
rebelde e apontou o fim da filosofia em "Crítica da Razão Cínica", 720
páginas que passam em revista a história do pensamento ocidental. Logo
depois de lançado, em 1983, o calhamaço vendeu 150 mil exemplares,
tornando-se o livro de filosofia mais vendido na Alemanha desde a
Segunda Guerra e provando que a filosofia estava viva e passava bem,
obrigada. São essas 720 páginas que a Estação Liberdade publica no
Brasil, depois de um investimento de R$ 50 mil e cinco anos de trabalho
de uma equipe de cinco professores, estudiosos brasileiros da obra do
autor. A empreitada contou com o apoio do Instituto Goethe para a
publicação de dois mil exemplares a R$ 96,00.
Coordenados por Marco Antonio Casanova, professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e importante tradutor da obra de
Heidegger no país, os outros quatro integrantes da equipe de tradutores
já estudavam a obra de Sloterdijk na Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e se debruçaram sobre o texto em um trabalho de comparação com as
outras traduções, como a espanhola e a francesa.
Para quem pretendia concordar com Sloterdijk e apostar no fim da
filosofia, a boa notícia é o crescimento, no mercado brasileiro, de
títulos de grandes filósofos vivos, resultado do investimento em
traduções de qualidade. Lançado na Alemanha por ocasião do bicentenário
de "Crítica da Razão Pura" - clássico de Immanuel Kant que seria ao
mesmo tempo o auge e o início do suposto fim da filosofia -, "Crítica da
Razão Cínica" é o primeiro de uma lista de 34 livros escritos por
Sloterdijk, dos quais 6 já estavam traduzidos no Brasil pela Estação
Liberdade. A aposta no autor começou por títulos menores, mas só em
tamanho. O primeiro a chamar a atenção dos editores foi "Regras para o
Parque Humano - Uma Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo",
traduzido em 2000, apenas um ano depois da edição alemã, impulsionado
pelo imenso debate que provocou entre Sloterdijk e o filósofo Jünger
Habermas, com trocas de acusações mútuas que em muito se distanciaram de
um debate filosófico.
Se foi a polêmica nas páginas dos jornais alemães que trouxe
Sloterdijk para o Brasil, a amplitude de sua obra ajudou a consolidar o
interesse nas traduções. Títulos como "O Desprezo das Massas", debate
sobre o que o autor chama de "luta cultural", tem atraído pesquisadores
na área de comunicação, e "Se a Europa Despertar", na área de ciência
política, ambos textos mais pontuais. O mesmo não se pode dizer dos três
volumes da série "Esferas", cada um com 800 páginas, cujos direitos
autorais já foram comprados pela Estação Liberdade. "Nosso público-alvo
são alunos e professores universitários da área de ciências humanas em
geral, não apenas na filosofia", diz um dos editores, Fabio Bonillo.
Publicação dos filósofos corre em paralelo
ao
fenômeno de popularização da filosofia,
seja por obras básicas,
seja
por títulos de autoajuda
Vem da Itália outro grande filósofo vivo: Giorgio Agamben, de quem "O
Homem sem Conteúdo" acaba de chegar às prateleiras. Lançamento da
Autêntica, com tradução do professor de filosofia Claudio Oliveira, da
Universidade Federal Fluminense (UFF), estudioso da obra do autor e
coordenador da recém-criada série "FilôAgamben", que integra a coleção
"Filô". Coordenada por outro professor de filosofia, Gilson Iannini, da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), a coleção "Filô" está
subdividida em séries dedicadas a autores, como "FilôBenjamin" e
"FilôEspinosa", ou a temas, como "FilôMargens" e "FilôEstética". "O
Homem sem Conteúdo" é o primeiro livro de Agamben, publicado na Itália
em 1970, e inaugura a série "FilôAgamben", que já tem direitos autorais
comprados, tradutores contratados e previsão de lançamentos para os
próximos anos: "Ideia da Prosa", "A Comunidade Que Vem", "O Tempo Que
Resta", "Bartleby ou a Fórmula da Criação", "Meios sem Fim", "A Potência
do Pensamento".
Nascido em Roma em 1942, Agamben também é destes autores que provam a
força da filosofia. O mercado brasileiro já dispõe de parte de suas
obras traduzidas, com títulos lançados pela Editora UFMG e pela Boitempo
Editorial. Um de seus grandes êxitos recentes, "O Que É o
Contemporâneo", é publicação da pequena Argos, editora da Universidade
Comunitária da Região de Chapecó (SC), cuja aposta em títulos de peso se
constata por títulos como "A Filosofia do Como Se", do alemão Hans
Vaihinger (edição de luxo, capa dura, 724 págs., R$ 79,00). Apoiada pelo
Instituto Goethe, a tradução foi parte da pesquisa de doutorado em
letras, defendido na UFF, do pesquisador Johannes Kretschmer.
"Estamos completando o álbum de figurinhas", diz Claudio Oliveira.
Agamben é um filósofo de grande produtividade e apenas 12 dos seus 29
livros estavam traduzidos no Brasil quando o professor carioca começou a
trabalhar na tradução, há pouco mais de um ano. "Se é verdade que
outras editoras importantes já publicaram Agamben, é também verdade que,
em alguns anos, a Autêntica será referência no Brasil para sua obra,
pois já negociamos os principais títulos dele", argumenta Iannini, o
coordenador da coleção "Filô". Agamben não é o único filósofo
contemporâneo que a Autêntica vai publicar. O catálogo da coleção inclui
autores como Slavoj Zizek e Arthur Danto, além de filósofos
contemporâneos, como o francês Gilles Deleuze, nome consagrado do
pensamento francês do século XX.
O investimento da editora prevê o lançamento de 20 a 25 títulos por
ano, o que equivale, em dinheiro, a R$ 500 mil, gastos em direitos
autorais e em pagamento de tradutores. "A área de filosofia pede
tradutores especializados, que conheçam a obra do autor", afirma
Oliveira. Fazem parte de uma edição bem-acabada as notas do tradutor e
um posfácio em que ele comenta, situa e contextualiza a importância da
obra. Também é indicação de qualidade da tradução a capacidade do
tradutor de localizar, como fez Oliveira, as referências bibliográficas
usadas pelo autor nas edições brasileiras das obras citadas, grande
ajuda para brasileiros que estejam iniciando os estudos sobre Agamben.
"O mercado editorial ainda não se deu conta do potencial da área de
filosofia", acredita Oliveira, que vê nos investimentos da Autêntica os
primeiros sinais de que, com a expansão do ensino de filosofia, a
tendência é que esse campo de publicação continue crescendo. É o que
anima outras coleções da editora, como "Ensino de Filosofia", voltada
para textos de reflexão sobre o que é ensinar filosofia, e "Estudos
Foucaultianos", já com nove títulos assinados por comentadores da obra
do francês Michel Foucault. A edição bilíngue latim-português da "Ética"
de Spinoza, trabalho do professor Tomaz Tadeu, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), lançado em 2007, marcou os dez anos da
editora e comprovou que investimentos em filosofia podem dar resultado:
são 424 páginas em capa dura, a R$ 68,00, já na terceira edição.
A edição de grandes filósofos vivos e complexos corre em paralelo ao
fenômeno de popularização da filosofia, seja por obras de introdução que
inundam as prateleiras, seja por títulos de autoajuda, dos quais "Mais
Platão e Menos Prozac" é o mais emblemático representante, seja por
livros em que os próprios filósofos se dedicam a tornar acessível seu
pensamento, facilitando as vendas. É o que está acontecendo, por
exemplo, com o americano Michael J. Sandel. Proclamado pela editora
Civilização Brasileira como o "filósofo político mais importante da
atualidade", o professor de Harvard lança sua segunda tradução: "O Que o
Dinheiro não Compra", que chega no rastro do sucesso de "Justiça - O
Que É Fazer a Coisa Certa", edição dos cursos que já levaram mais de 15
mil alunos à sala de aula.
Há outra linha rentável de traduções, a de autores que ganharam
grande notoriedade na mídia, como o esloveno Slavoj Zizek. Suas obras
interessam também pelo caráter ideológico. É como Ivana Jinkings,
diretora editorial da Boitempo, justifica o investimento nos livros
dele, dos quais 7 entre os 16 títulos já publicados estão traduzidos
pela editora. O lado da obra de Zizek mais voltado para a psicanálise
reúne outros cinco títulos editados pela carioca Jorge Zahar Editora. "É
dos autores mais instigantes da atualidade, que contribuem de forma
ampla para reconstruir um arcabouço teórico da esquerda no mundo", diz
Ivana.
O catálogo da Boitempo é ideologicamente orientado para autores de
esquerda e privilegia pensadores como o húngaro István Mészáros e o
francês Alain Badiou. Mesmo do italiano Agamben os títulos escolhidos
("Estado de Exceção", "Profanações", "O Que Resta de Auschwitz", "O
Reino e a Glória") foram os dedicados diretamente a questões políticas.
"São filósofos engajados, que despertam interesse não apenas na
academia, mas também nos meios sindical e político", reconhece.
Por ter identificado crescente interesse de alunos de graduação e até
de ensino médio, a Boitempo se empenha em promover os autores nas
universidades e se orgulha de lotar auditórios com os debates que
organiza. Foi o que ocorreu quando o geógrafo inglês David Harvey esteve
no Brasil, no início do ano, e reuniu multidões nas universidades para
lançar "O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo". A Boitempo já
tem comprados os direitos de "A Companion to Marx's Capital", com
previsão de lançamento para o ano que vem. Sucesso de público em sala de
aula, na Universidade da Cidade de Nova York, e na internet, onde as
aulas estão disponíveis em vídeo, o livro é uma coletânea de seus cursos
sobre Marx. O crescente interesse nesse filósofo alemão do século XIX é
só mais uma prova de que o diagnóstico de Sloterdijk pode estar certo: a
filosofia está morrendo, mas não consegue morrer porque sua tarefa não
foi cumprida.
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*Carla Rodrigues é professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio),
doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq
Fonte: Valor Econômico on line, 31/08/2012 - http://www.valor.com.br/cultura/2811542/filosofia-esta-viva
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