Fé
Minha mãe dizia-me, quando era já grandinho: Em
pequeno foste muito doente; tive de te levar de médico em médico, e
velar-te noites inteiras; acreditas? Como poderia eu dizer: — Mãezinha,
não te acredito? Sim, acredito-te, acredito no que me dizes, mas
acredito especialmente em ti. Assim é na fé. Não se trata unicamente de
crer nas coisas que Deus revelou mas n'Ele, que merece a nossa fé, que
tanto nos amou e tanto fez por amor de nós.
Difícil é também aceitar algumas
verdades, porque as verdades da fé são de duas espécies: algumas
agradáveis, outras desagradáveis ao nosso espírito. (...)
Procuremos melhorar a Igreja, tornando-nos
melhores. Cada um de nós, toda a Igreja, poderia rezar a oração que eu
costumo rezar: Senhor, aceita-me como sou, com os meus defeitos, com as
minhas faltas, mas faz que me torne como tu desejas. (...)
13.9.1978
Esperança
Têm surgido de vez em quando no decurso dos
séculos afirmações e tendências de cristãos demasiado pessimistas
quanto ao homem. Mas tais afirmações foram desaprovadas pela Igreja e
esquecidas graças a uma falange de santos alegres e ativos, graças ao
humanismo cristão, aos mestres de ascética que Saint-Beuve chamou "les
doux" e graças ainda a uma teologia compreensiva. São Tomás de Aquino,
por exemplo, coloca entre as virtudes a iucunditas ou seja a
capacidade de converter num sorriso alegre — na medida e no modo
conveniente — as coisas ouvidas e vistas. Jucundo deste modo — explicava
aos meus alunos — foi aquele pedreiro irlandês, que se precipitou do
andaime e quebrou as pernas. Levado ao hospital, vieram o médico e a
Irmã enfermeira. "Pobrezinho — disse esta última feriu-se muito
caindo". Replicou o ferido: "Madre, não foi precisamente caindo, mas
chegando ao chão é que me feri". Declarando ser virtude gracejar e
fazer sorrir, São Tomás encontrava-se de acordo com a "alegre nova"
pregada por Cristo, com a hilaritas recomendada por Santo
Agostinho. Vencia o pessimismo, revestia de alegria a vida cristã,
convidava-nos a tomar ânimo também com os gozos sãos e puros que se nos
deparam no caminho".
Quando eu era rapaz, li alguma coisa sobre Andrew
Carnegie, escocês, que imigrou com os pais para a América e chegou
pouco a pouco a ser um dos maiores ricaços do mundo. Não era católico,
mas impressionou-me que falasse com insistência das alegrias genuínas e
autênticas da sua vida.
"Nasci na miséria — dizia —, mas não trocaria as
recordações da minha meninice com as dos filhos dos milionários. Que
sabem eles das alegrias familiares, da terna figura da mãe que junta em
si os cargos de encarregada de crianças, de lavadeira, de cozinheira,
de mestra, de anjo e de santa?". Muito novo empregara-se numa fiação de
Pittsburg com 56 míseras liras mensais de salário. Uma tarde, em vez
de lhe dar logo a paga, o tesoureiro disse-lhe que esperasse. Carnegie
tremia: "Vão-me agora despedir". Pelo contrário, depois de pagar aos
outros, o tesoureiro disse-lhe: "Andrew, tenho reparado atentamente no
seu trabalho; concluí que vale mais que o dos outros. Subo-lhe o
salário para 67 liras". Carnegie de corrida voltou a casa, onde a mãe
chorou de contentamento devido à promoção do filho.
"Falais de milionários — dizia Carnegie muitos
anos depois —, todos os meus milhões colocados juntos não me deram
nunca a alegria daquelas 11 liras de aumento". Certamente, estas
alegrias, ainda que boas e animadoras, não têm o valor todo; são alguma
coisa, não são tudo; servem de meio, não são o fim último; não duram
sempre, mas só breve tempo. "Delas usem os cristãos — escrevia São
Paulo —, mas como se delas não usassem, porque a aparência deste mundo
passa" (Cfr. 1 Cor. 7, 31). Cristo já dissera: Procurai primeiro que
tudo o reino de Deus (Mt. 6, 33).
20.9.1978
Caridade
Numa palavra: amar significa viajar, correr com o
coração para o objeto amado. Diz a Imitação de Cristo: quem ama
"currit, volat, laetatur": corre, voa e alegra-se (Imitação de Cristo,
1. III, c. V, n. 4). Amar a Deus é portanto um viajar com o coração
para Deus. Viagem belíssima, embora comporte por vezes sacrifícios. Mas
estes não nos devem fazer parar. Jesus está na cruz: queres beijá-l'O?
Não o podes fazer sem te debruçares sobre a cruz e deixar que te fira
algum espinho da coroa, que está na cabeça do Senhor (Cfr.
Sales, Oeuvres, Annecy, t. XXI. p. 153). Não podes fazer a figura do
bom São Pedro, que foi valente em gritar "Viva Jesus" no monte Tabor,
onde havia alegria, mas não deixou sequer que o vissem ao lado de Jesus
no monte Calvário, onde havia risco e dor (Ibidem:. t. XV, p. 140). O
amor a Deus é também viagem misteriosa: isto é, eu não parto se Deus
não toma primeiro a iniciativa. (...)
Com todo o coração. Faço notar, aqui, o adjetivo
"todo". O totalitarismo, em política, é feio. Na religião, pelo
contrário, um totalitarismo nosso, quanto a Deus, está muitíssimo bem.
Foi escrito: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos, que hoje
te imponho, serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus
filhos e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao
deitar-te ou ao levantar-te. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço, e
usá-los-ás como um frontal entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre os
pilares da tua casa e sobre as tuas portas(Deut. 6, 5-9).
Aquele "todo", repetido e levado à
prática com tanta insistência, é com toda a verdade a bandeira do
maximalismo cristão. E é justo: Deus é demasiado grande, demasiado
merece de nós, para que baste deitar-lhe, como a um pobre Lázaro,
unicamente algumas migalhas do nosso tempo e do nosso coração. bem
infinito e será a nossa felicidade eterna: dinheiro, prazeres e
felicidades deste mundo, em comparação com Ele, são apenas fragmentos
de bem e momentos fugidios de felicidade. Não seria acertado dar muito
de nós a estas coisas e dar pouco a Jesus.
Acima de todas as coisas. Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. Não seria justo dizer: "Ou Deus ou o homem". Deve-se amar "não só a Deus mas também o homem"; este último, porém, nunca mais do que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus é certamente dominador, mas não exclusivo. (...)
Acima de todas as coisas. Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. Não seria justo dizer: "Ou Deus ou o homem". Deve-se amar "não só a Deus mas também o homem"; este último, porém, nunca mais do que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus é certamente dominador, mas não exclusivo. (...)
E por vosso amor amo o meu próximo. Estamos aqui
diante de dois amores que são "irmãos gémeos" e inseparáveis. Algumas
pessoas é fácil amá-las. Outras, é difícil: não nos são simpáticas,
ofenderam-nos e fizeram-nos mal. Só se amo Deus a sério, chego a
amá-las a elas, como filhas de Deus e porque Deus mo pede. Jesus fixou
também como há de o próximo ser amado: quer dizer, não só com o
sentimento, mas com obras. Este é o modo, disse: Perguntar-vos-ei:
Tinha fome, e vós destes-me de comer quando assim estava faminto?
Visitastes-me quando estava doente? (Cfr. Mt. 25, 34 ss.). O catecismo
traduz estas e outras palavras da Bíblia no duplo catálogo das sete
obras de misericórdia corporais e sete espirituais. O catálogo não é
completo e convinha atualizá-lo. Entre os famintos, por exemplo, hoje
não se trata só deste ou aquele indivíduo; são povos inteiros. Todos
nos lembramos das notáveis palavras do Papa Paulo VI: "Os povos da fome
dirigem-se hoje de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja
estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder
com amor ao apelo do seu irmão" (Populorum Progressio,
3). Neste ponto, à caridade junta-se a justiça, porque — diz ainda
Paulo VI — "a propriedade privada não constitui para ninguém um direito
incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso
exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário"
(Ibid., 23). Por conseguinte, "torna-se escândalo intolerável...
qualquer recurso exagerado aos armamentos" (Ibid., 53).
À luz destas vigorosas expressões vê-se
quanto indivíduos e povos estão ainda longe de amar os outros "como a
si mesmos", que é mandamento de Jesus.
Outro mandamento: perdôo as ofensas recebidas. A
este perdão quase parece que o Senhor dá precedência sobre o culto: Se
fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te
recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua
oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão;
depois, volta para apresentar a tua oferta (Mt. 5, 23-24).
As últimas palavras da oração são
estas: ó Senhor, ame-vos eu cada vez mais. Também aqui há obediência a
um mandamento de Deus, que estabeleceu no nosso coração a sede do
progresso. Das palafitas, das cavernas e das primeiras cabanas passámos
às casas, aos palácios e aos arranha-céus; das viagens a pé, e sobre o
dorso de mula ou de camelo, aos carros, aos comboios e aos aviões. E
deseja-se progredir ainda com meios cada vez mais rápidos, atingindo
metas mais e mais altas: Mas amar a Deus — já o vimos - é também uma
viagem: Deus quer que ela seja cada vez mais decidida e perfeita.
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João Paulo I
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