Marcelo Coelho*
Há quem assinale a gestualidade iconoclástica e a reapropriação metacrítica presentes no trabalho dela
Antes de ser crucificado, Jesus Cristo passou por muitos tormentos
físicos e morais. Houve açoites (que o evangelho de Lucas não menciona) e
zombarias, como sua falsa coroação como rei dos judeus.
A coroa de espinhos, o falso manto e um caniço como cetro faziam parte da encenação humilhante a que o submeteram.
Com esses paramentos, Jesus foi novamente apresentado à turba. Pôncio
Pilatos apontou para ele, dizendo "Ecce Homo" (eis o homem).
Para alguns intérpretes, havia nisso ainda uma tentativa de aquietar a
multidão. Pilatos continuava alegando que não encontrava motivos para
condenar Jesus, e sua frase seria uma espécie de apelo: "Olhem aí o
suposto criminoso; já não está bom o que fizeram com ele?".
Para outros intérpretes, Pilatos estava participando da galhofa.
Parodiava o ritual de apresentação de um novo monarca, um pouco como
ainda hoje se mostra o papa recém-eleito numa sacada do Vaticano.
Pode-se ainda imaginar que, dizendo "eis o homem", Pilatos estivesse
mostrando apenas a triste condição carnal de toda pessoa que sofre.
Seja como for, o rosto de um Jesus coroado de espinhos tornou-se
componente clássico da iconografia religiosa. Inúmeros pintores fizeram
suas versões do "Ecce Homo".
Entre eles, um obscuro espanhol chamado Elías García Martínez
(1858-1934), que em começos do século passado pintou um afresco com esse
tema na cidadezinha de Borja, perto de Zaragoza.
Era apenas uma imagem clássica de Jesus, com os olhos voltados para o
céu, e estava bastante descascada até alguns meses atrás, quando a
senhora Cecilia Giménez, de 81 anos, encarregou-se de restaurá-la. Os
resultados da intervenção da paroquiana chegaram à imprensa, e daí se
alastraram para as redes sociais.
A restauração, como sabe quem viu as fotos, foi um desastre total -e um sucesso maior ainda.
O Cristo de García Martínez tornou-se uma espécie de polegar moreno,
metido numa névoa de Bombril enferrujado, com dois olhinhos de viés,
como se implorando para sair dali.
Desde "O Grito", de Edvard Munch, não se via um rosto tão desesperado e
tão parecido com um boneco de cartunista. Com a agravante de que a
imagem de Borja nem boca apresenta.
Todo mundo se divertiu com a inépcia da restauração. É o equivalente
pictórico de uma daquelas "videocassetadas" dos programas dominicais.
As autoridades, como não podia deixar de ser, logo se comprometeram a corrigir a presepada -vá lá o termo- da sra. Cecília.
Como assim? Internautas de todas as partes do mundo reagiram. Querem que
o "E.T. de Borja", ou o "Ecce Mono" (eis o macaco), seja mantido tal
como está. As justificativas para o movimento, que já conta com
abaixo-assinado, variam.
Há quem imite o jargão dos especialistas, assinalando a gestualidade
iconoclástica e a reapropriação metacrítica presentes no trabalho da
velhota. Outros, mais atualizados, veem na obra a inconfundível
influência de grafiteiros internacionalmente célebres, como a dupla
brasileira Osgemeos.
Um bocado do velho anticlericalismo espanhol também se reacende. Nada
melhor do que ver padres e fiéis se descabelando diante da profanação,
ainda que involuntária, de um tradicional objeto de culto.
Outros já realizam suas peregrinações ao local. A cidade começa a viver
um boom econômico, o que não deixa de ser milagre nas condições atuais
da Espanha.
Enquanto proliferam as brincadeiras na internet, noticia-se que a autora
da proeza está recolhida, com os nervos no estado que se pode imaginar.
Sou dos que assinaram o manifesto pela manutenção da pintura tal como a senhora Cecília a deixou.
Alvo de chacotas, a autora da restauração conseguiu, mais do que nenhum
outro artista, reviver o "Ecce Homo" cristão. É ela própria, agora, o
objeto de escárnio geral, coroada com os espinhos de uma consagração
artística em forma de paródia.
Diante da notoriedade que o fato conferiu à cidade de Borja, pode bem
ser que o prefeito, como Pilatos, termine lavando as mãos diante do
caso.
Só falta, para meus desejos se concretizarem, que a nova imagem comece a verter lágrimas de verdade e cure alguns doentes.
O milagre viria a calhar, e Cecília Giménez seria salva de tanta
humilhação. Fez o trabalho com incompetência total, mas na pureza de sua
fé. E foi Cristo quem disse que será dos pobres de espírito o reino dos
Céus.
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* Escritor. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 29/08/2012
Imagem da Internet
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