Contardo Calligaris *
Casei, nada depende mais de mim; agora, ele (ou ela) me impede de me tornar o que eu tanto queria ser
No fim de semana, assisti a dois filmes que dialogam na minha cabeça.
Primeiro, vi "Um Divã para Dois", de David Frankel. Após 30 anos de
casamento, Kay e Arnold, sexagenários, vivem uma rotina miserável. Faz
quatro anos que eles não têm relações sexuais, mal se falam e mal se
tocam. Talvez eles tenham se amado no passado, mas pouco ou nada disso
aparece. Um dia, Kay não aguenta mais e decide recorrer a um terapeuta
de casal que propõe terapias intensivas de uma semana no Maine, longe do
Nebraska onde eles moram. Arnold acha bobagem e dinheiro posto fora,
mas acaba seguindo a mulher até lá.
Quis ver o filme porque a história do casamento de Kay e Arnold é, ao
mesmo tempo, trivial e raramente contada. Também me interessava o
terapeuta, que, segundo alguns críticos, era um extravagante.
Bom, o terapeuta do filme não é extravagante. Alguns dos exercícios que
ele sugere ao casal são extremos (e cômicos, como sexo oral num cinema),
mas, no conjunto, não há nada de heterodoxo em pedir que os cônjuges se
esforcem para voltar a se abraçar e tocar ou que revelem suas fantasias
sexuais ao outro.
Uma vez instalada a distância na vida de um casal, "discutir a relação"
não é suficiente (quando não piora o caso): é preciso romper, de
entrada, diretamente, os hábitos constituídos do isolamento.
Em geral, nos dois membros de um casal que não se fala e não se toca,
mas se obstina a conviver, há uma tremenda vergonha de estar traindo um
grande desejo de parar com a palhaçada do afastamento e reencontrar o
parceiro.
Mas trair o próprio desejo da gente é confortável. E, para muitos, o
casamento serve para isso: é um pretexto para descansar da tarefa de
desejar e de inventar a vida. Assim: casei, nada depende mais de mim,
ele (ou ela) me prende nesta rotina e me impede de me tornar o que eu
tanto queria ser -boa desculpa, hein?
O segundo filme, "A Vida de Outra Mulher", de Sylvie Testud, conta a
história de Marie, que, num dia de 2011, aos 41, acorda para descobrir
que ela esqueceu tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos de sua vida.
Ela tem um filho, que ela "nunca" conheceu, e está se divorciando do
homem por quem, pelo que ela se lembra, ela acaba de se apaixonar (só
que isso foi 15 anos antes). Marie tentará reconquistar o marido que ela
ama como o amava na época em que se apaixonou por ele.
A amnésia repentina de Marie (pouco provável clinicamente) é uma ótima
parábola. Por que pessoas que se lançam na vida com paixão um pelo
outro, com planos e apostas comuns, podem acordar um dia no rancor de
uma separação?
Kay e Arnold, na hora de tentar entender o que foi que os afastou, estão
tão perdidos quanto Marie. Mas Marie tem sorte: ela não pode
transformar o que aconteceu nos últimos anos em tema de debate (Quem
está com razão? Quem deixou de amar? Quem não soube cuidar? Quem traiu
quem?). Ela não se lembra de nada e só pode voltar para sua última
lembrança: o momento mágico do encontro e da primeira noite.
Para os mortais comuns, como Kay e Arnold, que podem até se calar, mas
se lembram de tudo o que deu errado, o caminho é mais complicado.
Alguém dirá que, se Marie retomar seu casamento sem poder sequer
refletir sobre os caminhos pelos quais ele se degradou (ela só pode
supor, imaginar), então, inelutavelmente, nada mudará, e, alguns anos
depois, Marie e o marido acabarão se separando numa repetição do mesmo
divórcio.
Não sei se isso é verdade. A degradação de um casal é feita de um
acúmulo de pequenas palavras e condutas, que parecem insignificantes na
hora e mesmo depois, na memória: não liguei naquele dia, cheguei
atrasado no outro, preferi dormir quando você queria outra coisa, não
disse o que eu queria porque tanto faz... Nada precisa ser drástico e,
no fundo, tudo é contingente: se eu estivesse apenas menos cansado,
naquela noite, não teria dormido enquanto você falava... Conclusão:
mesmo recomeçando sem poder recorrer às ditas "lições" do passado,
talvez o desfecho não seja necessariamente o mesmo.
Além disso, mesmo se Marie retomar seu casamento (que, para ela, mal
começou) na ignorância do que deu errado na primeira vez e se por isso,
anos depois, ela divorciar novamente, qual é o problema? Aos poucos,
eles cometerão os mesmos erros que cometeram no passado, e o casal não
será para sempre? E daí, quem disse que só vale a pena o que for para
sempre?
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* Psiquiátra. Escritor. Colunista da Folha.
@ccalligarisFotos da Internet
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