Entrevista
Fervores de Buenos Aires
RESUMO Especialista na sociologia da intelectualidade brasileira,
Sergio Miceli lança livro que questiona a imagem de Borges como
escritor universal, apolítico e infenso ao contexto histórico. Em
entrevista, ele desenvolve aspectos do argumento e comenta as condições
de produção intelectual no Brasil e na Argentina.
Trinta E quatro anos depois de ter causado celeuma com uma pesquisa que
explicitou as relações de Carlos Drummond de Andrade e de sua geração
intelectual com o poder, o sociólogo Sergio Miceli volta ao vespeiro
político-letrado com "Vanguardas em Retrocesso" [Companhia das Letras,
232 págs., R$ 49,50]. A coletânea reúne 11 anos de leituras comparativas
sobre artistas e escritores argentinos e brasileiros dos anos 1920,
tendo o mestre-sala Jorge Luis Borges na comissão de frente.
Ao pesquisar os escritos de juventude que Borges expurgou de sua obra
completa, Miceli procura ancorar na política e na história argentina dos
anos 20 uma obra que a crítica (não só local) buscou isolar do contexto
sociopolítico, conferindo-lhe um status que Miceli chama de
"extraterrestre".
Ao reiterar o nacionalismo de um autor que se esforçou para apagar os
contornos nacionais de sua obra, Miceli faz o que chama de "crime de
lesa-majestade" e já desperta reações, não só na Argentina. Seus
críticos veem no trabalho uma tentativa de subordinar a análise
"puramente literária" ao contexto sociológico. Miceli contra-argumenta:
para ele, é "ridículo" querer ler a poesia de Drummond como pura
metafísico.
Publicado ao mesmo tempo na Argentina e no Brasil, com pequenas
diferenças na montagem, o livro será lançado amanhã, às 18h30, na
Livraria da Vila do Shopping Higienópolis, em debate com intelectuais
brasileiros e argentinos. Entre seus próximos projetos estão novos
ensaios portenhos, mas sobre os anos 30, quando se dá o recuo
conservador de Borges, e um livro sobre Drummond. "Ele que me aguarde",
alerta Miceli.
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Folha - O que significa o título "Vanguardas em Retrocesso"?
Sergio Miceli - Uma gente, tanto letrados como artistas, que
alardeava que estava inovando formalmente -com novas linguagens, sintaxe
do povo, língua falada, antilusitanismo, a importância do modelo
francês-, mas, do ponto de vista político, era para lá de retrógrada.
Porque era ligada ao sistema oligárquico anterior, num sistema de
dominação de que nem se dava conta.
A Beatriz Sarlo tem um trabalho que mostra a grande coisa que [a
escritora] Victoria Ocampo fez: ela era uma tradutora. A revista "Sur"
era uma espécie de "Serrote" [revista de ensaios do Instituto Moreira
Salles] dos anos 30: achava que era vanguarda porque traduzia autores
franceses de quarta e de quinta categoria.
Com o livro, eu digo: vamos acabar com o relato triunfalista de que o
modernismo é só um avanço. Também é um retrocesso, o horizonte político
estava toldado por essa interpretação, que eles não conseguiam fazer, do
que estava se modificando em termos políticos.
Nos anos 30, momento de baixa inclusive no impacto deles na cena
cultural local, tanto lá como aqui o retrocesso político é mais
dramático ainda. Se você ler a correspondência do Mário de Andrade em
1932, com Bandeira, Drummond, é decepcionante a ingenuidade política
dele, ele não está atinando com o que acontece no país.
Mas havia alternativa? Tinha como atinar naquele momento?
Podia não ter alternativa, mas isso teve consequências para a obra.
Quando escrevo que eles entoam o canto do cisne da oligarquia, quero
dizer: eles estão inovando no linguajar, mas têm muito preconceito
político, muita interpretação equivocada do que está acontecendo
socialmente, da nova coalizão vitoriosa em 30. Lá e aqui, é
parecidíssimo, todos viram antigoverno central. Por exemplo, a reação de
Mário e Oswald de Andrade ao romance social nordestino. Eles destratam,
o Oswald os chama de "búfalos do Nordeste".
Não atinaram com o que estava acontecendo: São Paulo tinha perdido o
controle do sistema político e isso tinha um preço cultural.
Quando a gente discute os autores fora desse contexto, não entende nada,
não entende Drummond, não entende Bandeira. Drummond começa a vida no
Partido Republicano Mineiro como um homem da oligarquia, com um posição
na Imprensa Oficial, trabalha com o Capanema como secretário de Estado.
Acho absolutamente ridículo ler Drummond como se fosse um metafísico.
Essa ideia de ler "A Rosa do Povo" ou "Claro Enigma" fora do contexto
político brasileiro ou internacional é inadmissível. Mas isso se mantém,
as pessoas acreditam nisso, acham que é possível.
Você aplica o mesmo método que utilizou nos anos 70, para "objetivar"
a geração literária de Drummond, tendo despertado grande celeuma. Houve
reação semelhante na Argentina de Borges?
Borges é particularmente sensível. Ele é o grande mistagogo, o homem que
detém o mistério dessa escrita imaculada. Mexer com o cara que é o
centro nervoso da autoimagem argentina é complicado. Existe também toda
uma ortodoxia interpretativa sobre ele, na qual esse meu trabalho é
lesa-majestade pura, é sacrilégio, embora haja pessoas na crítica
literária argentina que remaram contra a corrente e escreveram obras
importantes contra Borges.
Na tradição de uma crítica literária pouco sociológica como a argentina,
os textos desfrutam de um estatuto de extraterritorialidade. São nuvens
mágicas, estão infundidos pela magia. Os argentinos falam de textos
como se fossem pessoas vivas. Por que essa maluquice? No Brasil,
escreveu-se "Raízes do Brasil", "Casa-Grande & Senzala", de gente
que já tinha formação como cientista social. No Brasil, todo mundo está
mais acostumado a isso.
Em termos comparativos, como vê as condições de produção intelectual lá e aqui hoje?
Lá eles têm menos recursos, menos gente, todos têm dois, três empregos,
ganham mal, a coisa é mais acanhada do ponto de vista institucional, mas
eles mobilizam muita gente, têm uma atividade intelectual muito
intensa.
Aqui tem muito dinheiro para você fazer o que quiser, tem mais
autonomia, tem uma hierarquia na academia, tem uma elite que conseguiu
condições excepcionais para fazer as coisas. Mas isso é também uma
espécie de servidão. A inserção nesse mundo tão protegido da academia,
poder ter um emprego só (falo de uma elite), tem um lado de servidão e
de cegueira para uma porção de coisas. É preciso refletir sobre as novas
condições de produção dessa geração.
E quanto à relação com o governo? A intelectualidade na Argentina está basicamente alinhada ao kirchnerismo...
Não está. Tem a Beatriz...
Ela é uma voz solitária.
Não é tão solitária, tem gente que pensa como ela. Mas eles estão numa
situação mais complicada do ponto de vista econômico, social. Aqui tem
esse mensalão, que é um enrosco. Eu acho que é complicado e dilacerante.
Se não houvesse [o julgamento] seria trágico: como ficaria a Justiça
neste país? Seria ridículo. Mas, da forma que está se dando, se virar
uma vitória da direita, também não acho legal. O lulismo talvez esteja
se tornando essa linha divisória entre os intelectuais.
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Polêmica é bem-vinda, mas força interpretação
DAMIÁN TABAROVSKY
Em seu diário sobre Borges, Bioy Casares anotou, em 1949: "Borges
contou a Martínez Estrada que recebemos ameaças anônimas por causa da
'Antología Poética'. Martínez Estrada disse a ele que já se sabe que
foram escritas por Manuel Gálvez ou Ramón Doll".
A anedota expressa bem o clima da época, e mais ainda o dos anos 1920 e
30. Gálvez e Doll são alguns dos mais importantes representantes do
nacionalismo intelectual argentino, com o qual Borges e Victoria Ocampo,
na juventude, travaram relações, amizades, intercâmbios e, é claro,
conflitos.
O nacionalismo cultural era uma forte tendência literária e política, à
qual o jovem Borges -nascido em 1899- não podia ficar alheio. Em
"Ensayos Porteños - Borges, el Nacionalismo y las Vanguardias",
recém-publicado pela editora da Universidade Nacional de Quilmes, Sergio
Miceli se esforça em contextualizar essa relação.
Este livro agudo, que vai além do próprio Borges, desmonta certa
tentação -ou lugar-comum- de ler Borges como autor universal,
internacional, apolítico, distante dos problemas nacionais e do contexto
sociocultural argentino.
Não é o primeiro a ir nessa direção, já explorada por Beatriz Sarlo,
entre outros, mas é bem-vindo por contextualizar a trama nacional que
atravessa a obra de Borges. Seria, contudo, um erro -no qual Miceli às
vezes cai- supor que o Borges dos anos 1920 e 30 foi, quase, um escritor
nacionalista.
Mesmo sob risco de forçar o viés nacionalista (em frases como "Borges se
afirmou como um nacionalista cultural com rasgos típicos de crítico
literário competente"), o livro é interessante naquilo que tem de
provocador, de polêmico.
Afinal, o que é um bom crítico literário, um ensaísta cultural, senão
alguém que força uma interpretação, que a leva ao extremo? A moderação
não é o que caracteriza Miceli, e isso sempre é bem-vindo.
Se Borges não foi nacionalista no sentido estrito, quer dizer que não
foi católico, não participou ativamente do golpe de Estado de 1930, não
apoiou o fascismo, não foi antissemita e não combateu o cosmopolitismo;
esteve comprometido com o clima das primeiras décadas do século 20, no
qual a busca pelo nacional esteve presente como nenhuma outra.
Borges ocupou um lugar preponderante nesse debate que Miceli, com rigor
intelectual, põe em questão -debate que mantém uma surpreendente e
necessária atualidade.
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Fonte: Folha on line, 29/09/2012
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